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Capítulo 3 Exercício prático: A mulher como campo de batalha

3.1. O bordado e as mulheres

Por entender que apenas a reflexão teórica não seria suficiente para estudar os usos do bordado, optou-se por realizar também exercícios práticos de criação que envolvessem os aspectos levantados na pesquisa. Para isso, foi escolhida a peça A mulher como campo de

batalha (1996) de Matéi Visniec, como ponto de partida para as discussões e experimentações

propostas na pesquisa.

Antes de adentrar de fato na análise descrição da peça A mulher como campo de batalha e da descrição do exercício proposto a partir dela, é preciso que se faça um preâmbulo para fins de justificativa. Ficou claro que, ao propor estudos sobre o bordado, seria importante partir de temáticas que estivessem ligadas à condição da mulher, uma vez que as artes têxteis foram ao longo do tempo frequentemente associadas e produzidas por mulheres. Em A da mulher como campo de batalha, há não só a discussão da situação da mulher em contextos de guerra, como também no cotidiano, levantando tópicos como a violência de gênero e a posição da mulher na sociedade.

Há diversas teorias do porquê os trabalhos têxteis – e por extensão o bordado – teriam sido deixados a cargo das mulheres em tantas sociedade e momentos históricos. Segundo Barber (1995) há uma razão principal que leva à distinção de gêneros no trabalho: não é uma questão de habilidade, mas sim de conveniência. Ao se pensar no início da vida sedentária do ser humano, no Período Neolítico (8.000 a.C. – 5.000 a.C.), parece ter havido uma divisão de funções de acordo com o que seria mais conveniente para a comunidade. Como as mulheres eram as que engravidavam e os bebês humanos dependiam da mãe por algum tempo após o nascimento, inclusive para alimentação, era preciso que elas realizassem atividades que as permitissem ficar mais tempo em locais protegidos, ou seja, trabalhos mais domésticos. Entre as principais funções domésticas estavam a plantação, o preparo dos alimentos e os trabalhos têxteis; não por acaso “estas são funções que as sociedades ao redor do mundo vieram a entender como centrais no trabalho feminino (ainda que outras tarefas possam ser adicionadas ao grupo, dependendo das circunstâncias de uma sociedade em particular) ” (Barber, 1995, l. 7).

Este não é, evidentemente, o retrato das sociedades contemporâneas. Ao longo do tempo, foram criados uma série de mecanismos sociais que permitem maior flexibilidade na fixação de papeis e ocupações como masculinos e femininos. Como muitos costumes e comportamentos, porém, a delegação dos trabalhos têxteis às mulheres assumiu uma ideia de “naturalização”, ou seja, passaram a ser encarados como habilidades inatas femininas. Como dito por Barber (1995), não há, em princípio, características que tornariam mulheres mais hábeis

ao trabalho com os têxteis do que os homens. Independente disso, os homens se relacionaram menos com essas funções ao longo do tempo ou, quando esta relação existia, parece haver uma diferença essencial entre o modo como ela se dava.

No governo de Elizabeth I (1533 – 1603), por exemplo, a Worshipful Company of

Broderers, companhia de bordadores que existia pelo menos desde o século XIV, foi

reconhecida como parte das empresas que serviam à coroa em 1561111. Esta associação

exclusiva para homens que trabalhavam com bordado no período demostra que se por um lado a técnica era comum a homens e mulheres, para os homens ela representava um trabalho artístico, reconhecido e remunerado, enquanto que para mulheres era tratada como um trabalho doméstico. O bordado era considerado uma atividade essencial às mulheres, sendo ensinada desde a infância para elas, independentemente de sua classe social. Segundo Watt (2010), possivelmente o que diferencia o trabalho com o bordado entre tão diferentes pessoas é o objetivo com que a técnica era aplicada:

Jovens mulheres que tinham que produzir seus próprios trajes e objetos têxteis domésticos, bem como ganhar dinheiro com isso, aprendiam técnicas mais básicas e práticas de bordado. As filhas da nobreza rural e urbana avançavam para pontos decorativos mais elaborados, como parte de sua preparação para o futuro papel de senhoras de grandes casas. Em um tempo em que todos os têxteis eram feitos e decorados à mão, habilidades com a agulha eram necessárias em todos os níveis sociais. Louvores eram dados a jovens mulheres que fossem excelentes no bordado; era visto como um indicador de sua piedade e diligência. (WATT, 2010)

Independentemente de ser realizado por homens ou por mulheres, na revolução industrial o bordado, junto com as outras técnicas artesanais, se vê em um ponto de virada. Aquilo que era produzido de maneira artesanal, cada vez mais podia ser produzido de maneira industrial, ou seja, mais barata e rápida. Além disso, o industrializado atraía, pois era um símbolo de progresso e novidade. Os trabalhos feitos à mão de maneira artesanal foram sendo desvalorizados em grande escala e ficaram restritos aos consumidores de alto poder aquisitivo que buscavam exclusividade.

Se por um lado, o bordado como ofício de um artífice foi perdendo espaço com a industrialização dos processos, houve um espaço em que o bordado não se perdeu: o doméstico. A diferença, assim como no Período Elizabetano, era que no âmbito interno dos lares, o bordado era uma prática feminina. Ainda que não houvesse leis proibindo que mulheres trabalhassem nas oficinas, há séculos o modelo ideal de feminilidade envolvia ficar dentro de casa e tudo o que isso envolvia: a costura, a cozinha, o cuidar dos filhos, etc. Mesmo pré-revolução industrial,

já se fazia uma diferença entre o trabalho masculino e feminino no campo dos têxteis. Segundo Stalinbrass (2016):

“A própria generificação da roupa e das atitudes para ela torna-se materialmente marcada pelas relações sociais pelas quais, fora do mercado capitalista (no qual o tecelão e o alfaiate do sexo masculino iam se tornando a norma), as mulheres eram tanto material quanto ideologicamente, associadas com a confecção, o conserto e a limpeza das roupas.” (STALLYBRASS, 2016, p.26)

O bordado era mais do que uma prática feminina simplesmente: era um traço de nobreza. Parker (2010) diz que o bordado combina a humildade da costura com a riqueza dos trabalhos com fios. Conota opulência e obediência. Assegurava às mulheres horas em casa, retiradas na privacidade, mas fazia uma declaração pública da posição do dono da casa e da condição financeira (PARKER, 2010, p. 64). Uma casa cheia de bordados era uma casa em que a mulher não precisava trabalhar fora e podia dedicar-se à vida do lar. Isso significava que o homem da casa tinha bons ganhos financeiros e podia sustentar sua família. Essa condição doméstica do bordado e sua ligação com o feminino também será uma das razões possíveis pelas quais a técnica foi sendo considerada artesanato e não arte112.

Mas ainda que o bordado tenha sido companheiro de confinamento das mulheres por muitos anos, ele também foi fonte de renda de muitas que vendiam – e até hoje vendem – suas obras bordadas. Justamente por ser uma atividade cotidiana, era possível comercializá-lo a um preço acessível à classe média burguesa que, após a revolução industrial, buscava acesso às artes. Principalmente no sec. XIX, muitas mulheres da classe trabalhadora ajudaram a manter suas casas através da venda de bordados. Segundo Cluckie (2008):

(…) o bordado provia emprego para numerosas mulheres, assim provendo também sua independência, ganhos financeiros e empoderamento. Para isso, o bordado tinha que se tornar uma arte democratizada, comercialmente viável, uma commodity disponível para a classe média consumidora. (CLUCKIE, 2008, l. 638)

Numa perspectiva dialética, portanto, a ligação entre as mulheres e os têxteis promoveu tanto uma restrição a ambientes domésticos e às artes aplicadas, quanto fortaleceu as relações de grupo femininas e lhes deu fonte de subsistência. Para muitas culturas, o trabalho têxtil coletivo representava uma possibilidade de fortalecimento de relações e permanência de tradições. Para Machado (2003):

112 Evidentemente, outras razões levam a essa separação. Há a própria construção da ideia de artista do sec. XVIII;

a ideia de que arte é algo elevado e não do cotidiano, etc. Porém, é inegável que há uma hierarquia nas produções de homens e mulheres.

“(...)esse processo reforçou também as comunidades femininas, de mulheres que passavam o dia reunidas, tecendo juntas, separadas dos homens, contando histórias, propondo adivinhas, brincando com a linguagem, narrando e explorando as palavras, com poder sobre sua própria produtividade e autonomia de criação.” (MACHADO, 2003)

Este caráter ambíguo é, possivelmente, um dos responsáveis pelo forte aparecimento do bordado como plataforma para obras de arte de cunho questionador, principalmente no tocante ao gênero. Se no Capítulo 2 falou-se sobre o surgimento de uma possível poética têxtil, o bordado também parece se alinhar a uma tendência de tecer político. O termo, utilizado por Bryan-Wilson (2017) tenta abarcar as possibilidades revolucionárias e de ruptura dos trabalhos têxteis:

Com a frase tecer político não pretendo apenas sugerir como os têxteis tem sido usados para avançar agendas políticas mas também indicar um procedimento de fazer do material político: tecer como verbo transitivo. Referindo a outra palavra de raiz latina, texere, afirmo que tecer político é dar textura à política, recusar binarismos fáceis, reconhecer complicações: texturizado como irregular, mas também, como mostrarei, como trabalhado de maneira tangível e mantendo em si alguns traços do trabalho, seja ele suave ou rasgado. (BRYAN-WILSON, 2017, p.7)

Estas duas instâncias em que o bordado se encontra, a poética têxtil e o tecer político, foram norteadoras para o exercício que será descrito neste capítulo.