• Nenhum resultado encontrado

2. Processos e fases da produção do bordado de Caicó

2.3. Modos de bordar

2.3.1. Bordados à mão

Em Caicó, encontrei as bordadeiras que bordam à mão e as que bordam à máquina. O primeiro grupo tende a ser menor, seu trabalho é demorado e mais caro104, de rara concepção e labor. O material usado é muito simples e de fácil acesso: tecido, agulha, linha e bastidor, usualmente pequeno, cujo diâmetro varia de 10 a 15 cm. É um bordado de pontos muito pequenos, em que os mais utilizados são: ponto cheio, matiz, ponto atrás, ponto arroz, sombra e aberto.

103 Bittencourt (s/d), ao refletir sobre os museus e a cultura material, inspirado em Pearce (1992), acentua

a relação entre objetos e sociedade como ―inscrições intencionais‖ que ―corporificam significações sociais‖. Para o autor, os objetos revelam que ―ideia e expressão não são duas partes separadas, mas a mesma construção social‖ que se cria em um processo contínuo.

104 O consumidor final chega a pagar R$1.500,00 por uma camisola de batizado se ela for feita à mão,

Foram entrevistadas quatro bordadeiras que atuam neste tipo de bordado: Ana Maria, Robéria, Rosalba e Risoleta. Apesar de integrarem gerações distintas (Ana Maria é aproximadamente 20 anos mais nova), elas afirmam que não aprenderam a bordar visando qualquer pretensão econômica. O bordado era parte da vida, parte da formação feminina. Com o tempo, descobriram que era possível trabalhar e ganhar dinheiro, sem sair de casa, com aquilo que faziam bem, com beleza. Bordaram enxovais, camisolas e roupas de festa, principalmente aquelas que trabalhavam em parcerias com as modistas da região.

Ana Maria (com cerca de 40 anos, casada e com uma filha) contou que era comum aprender a bordar para ocupar o tempo. Aprendeu com sua tia, ainda criança, e durante alguns anos fazia e bordava as roupas para as suas bonecas. Conforme foi crescendo, percebeu que poderia deixar suas próprias roupas mais bonitas, quando bordadas, e assim o fez. Conta que suas amigas começaram a gostar de seus bordados, ao mesmo tempo que algum dinheiro para gastar no final de semana e comprar as suas coisas seria bem-vindo. Foi então que passou a comercializar as suas peças.

Robéria (com mais de 60 anos, solteira e sem filhos), no entanto, diz que nem se lembra de quando começou a bordar, e nem quem a ensinou, porque sua mãe, suas tias e primas, as vizinhas, as professoras da escola, enfim, todas as mulheres que a cercavam, eram bordadeiras. Dessa forma, para ela, aprender a bordar e comercializar o seu bordado ―foi algo natural‖.

A afirmação ―bordar como algo natural‖, pode trazer algumas interpretações sobre o lugar do bordado na vida de Robéria e, por consequência, na vida de outras bordadeiras. ―Algo natural‖ indica o destino comum do ofício de bordadeira, compartilhado pelas mulheres de Caicó, definindo a atividade que fez parte da formação feminina, inserida no cotidiano, que cercou a sua vida, a sua família e que cada uma conheceu e aprendeu desde pequena. Denis (2005) assinala que o bordado foi uma parte importante na educação feminina porque ensinava as meninas a se manterem tranquilas, com a mente ocupada e, com o tempo, acabou se tornando um labor.

Os bordados à mão, normalmente, são feitos por encomenda. São poucas as mulheres que praticam este tipo de bordado, exigindo um grau de especialização e de distinção. São bordados mais valorizados e, consequentemente, mais caros. Nem

sempre é fácil conseguir uma vaga (fazer um agendamento) no planejamento de trabalho da bordadeira, demandando muita antecedência105. Há um tempo considerável para a preparação do produto, até porque esse tipo trabalho envolve grande complexidade. São levados em consideração: os usos da peça, para quem a peça é produzida e qual é a ocasião a ser usada.

O processo do bordado à mão parte, sempre, da escolha dos motivos negociados entre a bordadeira e quem encomenda a peça, somada à adaptação aos materiais disponíveis. Esses desenhos podem ser inspirados em alguma roupa que viram na novela, em alguma artista de televisão, em revistas ou, ainda, pode ser ―algo original‖, pensado exclusivamente para a cliente.

Uma vez o desenho escolhido e adequado ao corte de tecido, é hora de bordar. A bordadeira procura um lugar claro e calmo. É comum bordarem perto das janelas, às vezes com o rádio e TV ligados, mas com volume baixo. A vida na rua, assim como os aparelhos, sons e imagens são apenas um cenário. O foco está no bordado, no cuidado com os pontos e com o tecido. Errar um ponto significa, por vezes, recomeçar o trabalho e isso é frustrante.

A agulha é um ―prolongamento da mão‖, indica Dreyfus (1959), somente com ela sendo possível introduzir, no tecido, os ornamentos. O bordado à mão é o bordado que está próximo ao corpo. Na mão, a agulha é precisa e os pontos tendem as ser menores e mais complexos, o que deixa o trabalho com um traçado mais delicado. São feitos bordados em branco - principalmente para enxovais de crianças e camisolas para batizado - e bordados coloridos, que podem ser feitos em uma única cor ou em matizes. Esse processo de matiz é também conhecido como ―pintura de agulha‖, porque essa técnica é capaz de representar temas e cenas com mais definição (Freitas, 1954; Dreyfus, 1959; Denis, 2005). No entanto, em Caicó, não vi ninguém nomear o bordado

105

Acredita-se, comumente, que o tempo de demora para entrega de uma encomenda de bordado depende do tempo de feitura deste mesmo bordado. No entanto, durante a etnografia, foi notável perceber a quantidade de peças que se avolumam e a dificuldade de entregar as peças aos clientes, mesmo quando o tempo para a feitura de cada uma não seja tão grande. Há, além do mais, uma prioridade para as clientes mais fiéis ou quando o bordado exigir maior desafio criativo.

desta forma106. À mão, os motivos do richelieu podem ser ainda mais rebuscados, porque podem ser feito em tamanho menor, incluindo mais pontos.

Algumas vezes, nos discursos das bordadeiras que bordam à máquina de pedal como Iracema ou à máquina industrial, como Irene, as mulheres que bordam à mão, aparecem como ―as guardiãs de uma forma de bordar que a cada dia tem sido mais abandonada e que é a matriz do bordado de Caicó‖ (termos de Iracema). Rosário soma- se à voz de Iracema e diz que ―para ela, esses bordados guardam a lembrança do jeito de praticar o ofício de bordadeira de suas tias, de seus antepassados, por isso sendo algo de muito valor, muito raro‖. Nesse sentido, o bordado à mão é valorizado como algo que remete a uma tradição, a um passado, sendo também valorizado porque se perde, se transforma.

Essas falas remetem também às reflexões do poeta Paul Valéry, em ensaio de 1934, que vê o bordado como um poema, que demanda esforço e trabalho prolongado. Afinal, as bordadeiras não se importam com o cansaço ou com a duração de seu trabalho que pode durar semanas, meses, anos. No bordado à mão, conclui o ensaísta, houve:

(…) paradoxalmente, sacrifício, graça e magnificência para a realização de sua obra, alternando a tenacidade de um inseto e a ambição aficionada de um místico que combina a abertura de si e de todos aqueles que não desejam o mesmo. (Valéry, 1934, 17)107

Bordar, para o poeta é, portanto, um exercício de paciência. E as mulheres de Caicó, por mim entrevistadas, concordariam com as afirmações de Valéry. As que bordam à mão sublinham a ―falta de paciência presente nos espíritos modernos‖ (Valéry, 1934, p. 16). Para Risoleta: ―ninguém mais quer ficar sentada, bordando, bordando‖, enquanto Rosalba diz que ―as mulheres de hoje querem tudo muito rápido, tudo fácil‖, por isso rejeitam aprender este tipo de bordado. Estão de acordo com o ensaísta, que insiste no enfraquecimento da ―ideia de eternidade‖ na época moderna, ―que coincide com o asco crescente dos longos afazeres‖ (Valéry, idem).

106 Essa nomenclatura está presente na maioria dos manuais do século XIX e da primeira metade do

século XX. Apenas as bordadeiras mais velhas falam, ainda que vagamente, do termo ―pintura de agulha‖, o que, provavelmente, foi aprendido na escola, com as freiras.

107

Assim como Valéry, as bordadeiras que bordam à mão falam de uma angústia frente ao bordado realizado de modo mais rápido por meio das máquinas de bordar. Rosário olha para o bordado feito à máquina e diz que o ritmo mais apressado pode distorcer as composições, e que bordar à mão é ―produzir uma relíquia‖. Ana Maria fala da transformação do bordado, que se tornou algo mais simples, mais acessível. Iracema, que borda à máquina, diz que o bordado à mão é o mais delicado, mas que é possível reproduzir esses bordados por meio da máquina de pedal e que o problema são as máquinas industriais. São três olhares distintos, mas que introduzem o bordado à mão a partir de uma lógica hierarquizada (e, também, saudosista).

É possível observar tais versões, na discussão sobre autenticidade apresentada por Benjamin (1988). A noção de autenticidade está localizada no centro do conceito de tradição; que se relaciona à questão do tempo, do espaço, da perpetuação e do testemunho histórico. É sobre estas questões que Rosário, Ana Maria, Iracema se debruçam ao falar sobre o bordado à mão. O bordado perderia a sua ―aura‖108? Veremos.

É notável uma diferença na composição dos riscos, uma vez que o desenho é concebido considerando como será bordado - à mão, a máquina de pedal ou industrial. Quando se borda à mão, os desenhos podem ser menores, devido à precisão dos movimentos, o que provavelmente gera uma percepção de que é ―mais delicado‖. Na máquina de pedal são produzidos praticamente os mesmos desenhos e composições, mas a bordadeira precisa ser minuciosa e experiente para ter a dimensão espacial exata da formação dos pontos, evitando que eles escapem ao desenho. Na máquina industrial, por sua vez, os motivos são, geralmente, florais e maiores do que aqueles feitos nas máquinas simples, uma vez que este tipo de máquina não consegue ser muito precisa no detalhamento das peças, por conta de sua velocidade.

O resultado dos bordados, somado aos discursos e às visões das bordadeiras sobre eles indicam uma hierarquia da produção – estabelecida, principalmente, pelas próprias bordadeiras – que situam o bordado à mão como ―o mais artístico. Para justificar essa hierarquia, sustentam a distinção do bordado, afirmando que é usada uma técnica mais minuciosa, que costuma ser mais demoradamente mais trabalhada e que os

108 Assim Benjamin reflete sobre o tema: ―Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de

elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja‖. (Benjamin,1988, p. 170).

pontos tendem a ser menores. O bordado à mão aparece assim no topo da classificação, seguido pelo realizado na máquina à pedal e, depois, por aqueles feitos à máquina industrial.

Essa classificação aparece nos discursos das bordadeiras, mas é interessante perceber como essas distinções hierárquicas não são rígidas, sobretudo quando outros personagens entram em cena, como, por exemplo, o corpo e o mercado. Helena, que bordou a vida toda na máquina à pedal, disse que se cansou desta máquina, que seu corpo dói, suas pernas ficam cansadas e, por isso, daqui por diante só quer fazer bordados na máquina industrial. Segundo ela: ―é muito fácil de bordar, não cansa a perna porque os movimentos são muito curtos e como não se faz o matizado, o esforço com as mãos também é pequeno‖. Há outro estímulo para abandonar os bordados à mão e à máquina de pedal, em favor da inserção da máquina industrial: o mercado. Helena baseia sua opção no comércio e afirma que:

Os melhores compradores são de São Paulo e, para eles, o matiz não é tão importante, eles querem tudo branco porque dá menos trabalho e combina com tudo, então, porque ficar se matando?

A fala de Helena levanta, talvez, o tema mais polêmico dessa hierarquização da produção do bordado, uma vez que ela se posiciona a favor de um modelo rápido e utilitário, em detrimento das formas reconhecidas como de produção mais tradicionais. Usar a máquina industrial significa participar de um modelo que impacta e renova a produção do bordado no Seridó.

A valorização do bordado à mão permanece. Ainda que exista uma coexistência de visões - a valorização da tradição e o apelo do mercado mais amplo - a estética do bordado à mão se apresenta como meta a ser alcançada, ou seja, quanto melhor o bordado, mais próximo do estilo gerado pelo bordado à mão. Ainda que seja uma imitação, o bom bordado (industrial) deve se parecer com o modelo mais tradicional.

Uma das características da modernidade, segundo Benjamin (1998) é a possibilidade de atração das coisas e a cópia torna isso possível. Assim, se não é

possível ter um bordado feito à mão, por uma bordadeira determinada, mas se é possível ter um bordado que se pareça com ele, do modo mais fiel possível, ao primeiro, a necessidade será suprida. Esse é, nas palavras de Benjamin, ―um novo caráter‖ associado à produção artística, que revela uma emancipação da aura que acompanhava as obras de arte e que, aqui, projetamos para o bordado de Caicó.

Nesse contexto de reflexão sobre tradição, renovação e de motivação do trabalho é que se percebe outra cisão entre as bordadeiras. Para isso, vale a pena observar a inserção das máquinas na região.