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O último disco da série documental sobre a música instrumental popular brasileira, intitulado Brasil, Choro, seria lançado em 1978. O elepê fecharia a coleção iniciada em 1968 com Brasil, Flauta, Cavaquinho e Violão. Para a gravação do sexto fonograma será chamado o violonista Celso Machado, ficando o texto da contracapa a cargo do próprio Marcus Pereira. Como que encerrando um ciclo, Marcus Pereira utilizaria o espaço para realizar um balanço destes 10 anos que separam o primeiro do último disco desta coleção instrumental. Separado de Brasil, Sax e Clarineta por um hiato de dois anos e, uma série de mudanças nos rumos da empresa, Brasil, Violão trará características bem distintas das demais produções.

Se, por um lado, a série instrumental ficou durante dois anos “esquecida”, por outro, o

choro teria lugar de destaque nos lançamentos da gravadora, principalmente em 1977. Para se

ter uma ideia, neste ano, a gravadora lançaria cerca 12 elepês dedicados ao gênero, sendo eles: “Arthur Moreira Lima / Arthur Moreira Lima Interpreta Ernesto Nazareth No.2”; “Canhoto

da Paraíba / O Violão Brasileiro Tocado Pelo Avesso”; “Vários Artistas / Todo O Choro – 1o Encontro Nacional Do Choro” ; “Quinteto Villa-Lobos / Quinteto Villa-Lobos Interpreta” ; “Luperce Miranda / História De Um Bandolim” ; “Altamiro Carrilho / Altamiro Revive Pattápio E Interpreta Clássicos”; “Vários Artistas / Brasileirinho – I Festival Nacional Do

Choro – Choro Novo – Disco 1 e Disco 2” .

Tal volume de discos dedicados ao choro neste período não era gratuita, considerando que 1977 representa no quadro geral da década, o auge da visibilidade do gênero. É neste ano que ocorreria em São Paulo dois eventos que dariam ao choro um lugar de destaque na mídia e, consequentemente, chamariam a atenção do público e da indústria fonográfica.

O primeiro ocorrido no Parque do Anhembi nos dias 1 e 2 de junho, organizado por Marcus Pereira a pedido da Federação Bandeirantes do Brasil. Intitulado como 1º Encontro

Nacional do Choro, o evento reuniu entre outros, os músicos Raul de Barros, Altamiro

Carrilho, Abel Ferreira, Carlos Poiares, Valdir Azevedo e Pernambuco do Pandeiro299. O registro de algumas das apresentações ocorridas nos dois dias do Encontro, culminariam na gravação do LP Todo o Choro pela Discos Marcus Pereira.

O segundo evento que terá grande repercussão na imprensa e entre os interessados na música popular instrumental seria o I Festival Nacional do Choro, subintitulado

Brasileirinho, realizado em 25 de outubro de 1977, pela Rede Bandeirantes de Televisão. O

júri era presidido por Marcus Pereira e integrado por “José Mozart de Araújo, Guerra Peixe, Dino, Tárik de Souza, Maurício Kubrusly, Roberto Menescal, Cláudio Petraglia, Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão e Lúcio Rangel”300.

Recheado de novos valores que surgiram na década de 1970, o Festival expôs a tensão existente entre duas concepções distintas em torno do choro. De um lado os puristas, que defendiam a tradição sonora do gênero, avessos a qualquer inovação, enquanto de outro, artistas que buscavam novas possibilidades de criação musical a partir destas tradições. Estas discussões que colocavam em lados opostos partidários da revalorização e da revitalização do gênero, assim como o Festival em si, serão retomadas no Capítulo 03 desta pesquisa.

Voltando a Brasil, Violão e ao texto de Marcus Pereira, vejamos como este realiza seu balanço com relação ao choro e ao mercado de discos:

“Quando, em 1968, Carlos Paraná e eu decidimos dar consequência à nossa indignação com o predomínio da música estrangeira, e de má qualidade, no rádio, na noite, nas festinhas e bailaricos pátrios, no disco, nós gravamos uma antologia do choro que eu batizei de “Brasil, flauta, cavaquinho e violão”. A gravação foi feita com o regional de “O Jogral, com Dito Costa e Mané Gomes Solando. Eu financiei a gravação e distribui o disco como brinde de fim de ano de uma empresa de publicidade que dirigia. Mais, em 1974, fechei a empresa de publicidade que dirigia. Mais tarde, em 1974, fechei a empresa e fundei a gravadora que ora vos fala. Nela, dei prosseguimento à série e lancei “Brasil, flauta, bandolim e violão”, com o Regional do Evandro, “Brasil, Seresta”, com Carlos Poyares e regional, “Brasil, trombone”, com Raul de Barros, “Brasil, sax e clarineta”, com Abel Ferreira”301.

Afora os caminhos delineados por Marcus, já bastante discutidos ao longo das análises dos elepês, salta aos olhos a centralidade que Pereira denota a si próprio durante todo o

299 VASCONCELOS, Ary. Carinhoso etc. – História do Inventário do Choro. Gráfica Editora-Livros, Rio de Janeiro,

1984.p. 43

300 Ibidem, 43

processo, em trechos como: “uma antologia do choro que eu batizei”; “Eu financiei a gravação”; “fundei a gravadora”; “dei prosseguimento à série” e; “lancei “Brasil, flauta, bandolim e violão””.

Que Marcus Pereira fosse a figura central da gravadora, parece não haver dúvidas. No entanto, em nenhum momento de sua fala, à exceção de “Carlos Paraná e eu”, há menção a outros dos sujeitos envolvidos na produção da série instrumental. Como, por exemplo, os produtores Aluízio Falcão e Pelão, responsáveis pela elaboração e gravação de três elepês da coleção ou ainda, dos próprios instrumentistas que participaram das gravações.

No trecho seguinte passa a expor a revalorização do choro ocorrida durante a década: “O choro foi redescoberto e voltou, há dois anos. A música brasileira ganhou algum alento, mas a música estrangeira continua predominando (...) Um esforço supremo das empresas interessadas na sua comercialização, tornou- se pior do que há 10 anos. Quem duvidar, que ouça um disco de “rock” gênero “punk” que, por sinal, é franco e vai dizendo logo as coisas. Quanto à superação do impasse que permanece na música popular brasileira, há propostas de que se confie às “Frenéticas” a sua superação. O fato é que a música brasileira não tem muitas razões para dar risada”302.

Segundo Pereira, a redescoberta do choro havia ocorrido há “dois anos”, sem justificar com precisão as causas ou eventos que determinaram tal retomada. Outra consideração a ser feita é que o choro, embora afastado de um lugar de destaque na indústria fonográfica e no rádio, sobreviveria através das práticas musicais presentes nas rodas, reuniões particulares, nas ruas, etc. Todo o tempo parece considerar apenas o universo mercadológico da música, ignorando outras formas de circulação desta.

Adverte, ainda, a existência de “um esforço supremo das empresas interessadas” em que os repertórios estrangeiros continuem predominando no cenário nacional, considerando a situação da música popular brasileira frente a indústria cultural, ainda pior do que “há 10 anos”, citando os adventos do punk e da discoteque como exemplos desta paisagem cultural.

Em tom irônico sugere que as Frenéticas303 representariam à “superação para o impasse que permanece na música popular brasileira”. Quanto a discoteque, Marcus Pereira talvez tivesse razões para se queixar, já que o gênero, nesse período, alcançou grandes vendagens. Com relação ao punk a firmação soa algo de equivocado, já que, este movimento musical, ao menos no Brasil, nunca alcançou altas vendagens.

302 PEREIRA, Marcus. Brasil, Violão (1978). Disco Marcus Pereira.

303 Grupo vocal pop formado na cidade do Rio de Janeiro, em 1976, por iniciativa do letrista e produtor Nélson Motta.

Seguindo a linha disco music, no primeiro LP, produzido pelo guitarrista Liminha e lançado em 1977 pela WEA, "Frenéticas", o grupo ganhou o primeiro disco de ouro da gravadora. Disponível em http://dicionariompb.com.br/as- freneticas/dados-artisticos. Último acesso 28/08/2106

Considerações a parte, fato é que Marcus Pereira parecia estar substituindo em seu discurso o lugar anteriormente ocupado pelo iê-iê-iê, ou seja, o contraponto que representava a música estrangeira e de “má qualidade”. Em outro texto publicado na contracapa do elepê anteriormente citado, Todo o Choro – I Encontro Nacional do Choro, o discurso do

empresário é guiado pelos mesmos argumentos, valendo aqui a reprodução de um dos trechos: “Estamos vivendo a época que marca a descoberta do Brasil musical, e o choro é o Porto Seguro onde ancoram estas caravelas de agora. Ocorre que empurradas pelo “marketing” predatório do “rock”, plateias imensas se desencantam, como aconteceu com Alice Cooper, e não caem noutra. Por que é nosso e nós estamos geneticamente condicionados. Porque é surpreendente belo. É a nossa alma, porque é alma de nosso país”304.

Aqui, Pereira reafirma a “descoberta do Brasil musical” da qual o choro seria o “Porto Seguro” onde ancorariam as “caravelas de agora”, deixando subentendido que, até então, os brasileiros não conheciam o próprio Brasil ou pelos menos, sua verdadeira expressão cultural, utilizando a metáfora do “descobrimento do Brasil”. Cita a ação predatória das grandes gravadoras e a imposição, segundo ele, do “rock” às plateias locais, utilizando como contraponto o artista norte-americano Alice Cooper. A referência ao rockeiro deve-se ao fato de em 1974, ter ocorrido no Anhembi em São Paulo um show do cantor, que reuniu de acordo com o jornal O Estado de São Paulo, cerca de 150 mil pessoas 305, mesmo palco do I

Encontro Nacional do Choro.

Termina o trecho fazendo uma estranha associação entre brasilidade e o recente interesse das plateias pelo choro, quando afirma que “nós estamos geneticamente condicionados”, “é a nossa alma, por que é a alma de nosso país”. Essas alusões a um “espírito” ou “alma”, como vimos, são recorrentes tanto em Pereira como em outros defensores da tradição musical, no entanto, a ideia de condicionamento genético aparece pela primeira vez, embora pareça se referir a mesma imanência. Não seria de se espantar, inclusive, se o autor assinasse o texto com a alcunha de “Marcus Álvarez Pereira Cabral”.

Voltando à contracapa de Brasil, Violão, teremos na sequência uma breve descrição biográfica do instrumentista Celso Machado:

“Celso Machado é uma descoberta de Marcus Vinicius, que me propôs este disco. Verdade que Maísa, Orlando Silva e Júlio Medaglia, entre outros, já o tinham descoberto antes. Celso tem 25 anos e este é o seu primeiro disco. Ele toca violão desde os 14 anos e há cinco conheceu o Prof º Oscar

304 PEREIRA, Marcus. Todo o Choro – I Encontro Nacional do Choro (1977). Discos Marcus Pereira.

305 Disponível em http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/alice-cooper-pioneiro-dos-mega-shows-de-rock-no-brasil/.

Magalhães Guerra com quem aprendeu leitura musical, técnicas e outros segredos que deram recursos ao seu talento e vocação raríssimos”306.

Fica claro através da biografia do instrumentista que Celso Machado, diferentemente dos discos precedentes, não faz parte do universo dos chorões. Até aqui todos os instrumentistas escolhidos para as gravações dos elepês tinham suas carreiras ligadas diretamente ao gênero, através de suas composições e atuações em gravações fonográficas e no rádio ao longo das décadas anteriores, compondo o panteão dos artistas arrolados pela bibliografia do choro. Além do que em todas as faixas o violonista se apresenta sem acompanhamento de nenhum instrumento, ou seja, não há nesta gravação a presença de um

regional ou conjunto de choro.

Machado, segundo Pereira, foi uma “descoberta de Marcus Vinícius” que foi quem lhe propôs a gravação do elepê. Como é informado no próprio texto, o instrumentista já vinha realizando alguns trabalhos junto a nomes importantes da música popular e erudita, tais como “Maísa, Orlando Silva e Júlio Medlagia”. Cita o “Oscar Magalhães Guerra”, professor de violão erudito como referência nos estudos do instrumentista.

Nas pesquisas realizadas sobre Celso Machado foram encontradas poucas informações sobre sua atuação na década de 1970. Em seu sítio oficial307, por exemplo, constam apenas seus discos solos e uma breve apresentação do instrumentista. Sua biografia dá ênfase a seus estudos aprofundados em violão clássico e as suas composições “infundidas de influências dos gêneros tradicionais do Brasil, tais como: samba, choro, baião e frevo308. Todos estes gêneros, à exceção do frevo, estão presentes em Brasil, Violão.

Essa diferença com relação à escolha do instrumentista e por consequência do repertório parecem estar vinculadas a figura de Marcus Vinicius, então diretor artístico da gravadora, cuja formação musical também era ligada a música instrumental. Não fica claro, no entanto, se é ele quem produz o elepê. Na ficha técnica a produção aparece como sendo da

Discos Marcus Pereira. É importante ressaltar que, embora, tenha realizado inúmeros

lançamentos entre 77 e 78, a situação financeira da gravadora continuava se agravando, o que exigia corte nos gastos da produção dos discos.

Os anos finais da Marcus Pereira foram marcados pelo agravamento deste quadro. Em matéria publicada no jornal O Globo de 13 de setembro de 1975, Pereira dizia estar com a casa hipotecada pela Caixa Econômica Federal, porém “a sorte é que mesmo os credores se deixavam conquistar por seu entusiasmo”. Entre 1979 e 1981, anos finais da atuação da

306 PEREIRA, Marcus. Brasil, Violão (1978). Disco Marcus Pereira.

307 Disponível em http://www.celsomachado.com/discography.html. Último acesso em 28/08/2106 308 Ibidem

empresa, o “corte de custos foi tamanho que ele passou a trabalhar com free-lancers, incluindo o próprio Marcus Vinicius Andrade, que firmou uma parceria entre seu estúdio

Spalla e a gravadora”309.

Quanto a Brasil, Violão, após a exposição de detalhes técnicos e artísticos sobre o instrumentista, Marcus Pereira encerra apresentando apenas duas das dez faixas do disco, não por acaso, ambas ligadas às composições tidas como tradicionais do choro: Cristal de Jacob

do Bandolim e Odeon de Ernesto Nazareth. É interessante assinalar que diferentemente das

outras contracapas não há alusão aos termos tradição e autenticidade, tampouco a evocação de uma alma ou espírito brasileiro.

Quanto ao restante do repertório, temos as seguintes composições: Luiz Gonzaga &

Humberto Teixeira (Légua Tirana / Assum Preto / Qui Nem Jiló e Asa Branca), Guerra Peixe (Ponteado), Villa-Lobos (Choro N°1), Eduardo Santos (Mágoas De Africano), Armando Neves (Choro N°2), Celso Machado (Estudo N°1) e Zé Keti (A Voz Do Morro).

Pelo repertório elencado percebemos que de fato há um grande distanciamento deste disco para os demais da série instrumental. Apesar da presença de composições populares310, as execuções realizadas por Celso Machado remetem muito mais a uma sonoridade erudita. Aliás, outra característica destoante é que pela primeira vez vemos no repertório músicas de compositores tais como Heitor Villa-Lobos e Guerra Peixe.

Lançado anos dois anos depois de Brasil, Sax e Clarineta e dadas as transformações pelas quais a gravadora vinha passando neste período, tais como o afastamento de uma série de profissionais que estiveram envolvidos nas outras produções, este elepê, Brasil, Violão, soa completamente deslocado da concepção original da coleção. Talvez por isso, tenha sido o último deles.

Em 1981 Marcus Pereira, após viagem feita ao lado dos filhos, retornaria ao Brasil e poria fim a própria vida. No ano seguinte a gravadora encerraria suas atividades com cerca de 142 discos lançados no mercado fonográfico. O catálogo foi absorvido pela Copacabana, que se utilizaria da marca Discos Marcus Pereira como um selo de qualidade dentro da gravadora. Porém, a Copacabana também encerraria suas atividades na década de 1980, quando o acervo seria encampado, ironicamente, por uma das majors do setor fonográfico tão combatidas por Marcus Pereira, a EMI.

309 ARAGÂO, Helena de Moura. Mapeamentos musicais no Brasil - três experiências em busca da diversidade. Dissertação

apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais: CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro: 2011.p.79

310 É importante salientar que embora seja um repertório crivado por composições ligadas a outros gêneros musicais que não

o choro, estas composições em grande parte foram produzidas, ou pelo menos registrados em disco, entre as décadas de 1940 e 1950, tratando-se, grosso modo, do mesmo período abordado nos demais LPS.