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No ano de 1977, um acontecimento em especial colocou em evidência as tensões existentes em torno da retomada do choro. Organizado pela Rede Bandeirantes de Televisão, o I Festival Nacional do Choro, ocorrido na cidade de São Paulo, representou o ápice deste movimento em torno do gênero, como também de sua visibilidade perante o grande público, graças à cobertura intensa dos órgãos de imprensa.

O Festival contou com cerca de 1.200 músicas inscritas, enviadas por compositores de todo o país, reunindo antigos chorões e novos conjuntos que se dedicavam ao gênero311. Com inscrições abertas de 04 de julho a 20 de agosto de 1977, o “Primeiro Festival de Choro da Televisão Brasileira”, conforme anunciava a Rede Bandeirantes, responsável pela organização e transmissão do evento, conclamando “músicos profissionais e amadores” a concorrem, “desde que apresentassem composições próprias e inéditas”312.

Os interessados poderiam inscrever até três composições que deveriam ser enviadas em “uma fita cassete com o título”, “o nome do autor e a gravação da música, que poderia ou não ter letra”. A premiação variava de Cr$ 20.000,00 (quinto lugar) até Cr$ 80.000,00 (primeiro colocado), além de laurear simbolicamente com troféus o melhor instrumentista, intérprete e revelação do evento313.

O Festival, idealizado pelo produtor Roberto de Oliveira, vinha a reboque de uma série de outros eventos que o precederam e que, possivelmente, incentivaram os investimentos em sua realização. Um deles, já citado ao longo do Capítulo 02, foi I Encontro Nacional do

Choro, no Anhembi em São Paulo, entre os dias 01 a 02 de junho de 1977. O evento

composto por uma série de shows, organizados por Marcus Pereira a pedido da Federação

das Bandeirantes do Brasil, contou com nomes tradicionais do choro, tais como: Abel

Ferreira, Carlos Poyares, Altamiro Carrilho, Eudóxia de Barros, Raul de Barros, Waldir Azevedo, etc.

Mesmo antes da realização do Encontro já tinham acontecido, na mesma cidade, o espetáculo Cem Anos de Chorinho no Teatro Municipal e um show no coreto do Jardim da

Luz, onde “quase três mil pessoas cantaram e dançaram ao som da flauta de Altamiro Carrilho

311 AUTRAN, Margarida. “Renascimento” e descaracterização do choro in ANOS 70. Rio de Janeiro, Europa Emp.

Gráfica e Editora Ltda., 1979-1980. 7 v. pp. 65 – 75. P 73

312 SOUSA Miranda B.T. R. Nunes de. O clube do choro de São Paulo: arquivo e memória da música popular na década de 1970. Dissertação apresentada Instituto da Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2009. P. 74

e da voz de Ademilde da Fonseca”314. Além disso, no Rio de Janeiro, espetáculos como o ocorrido no final de 1976 na Sala Cecília Meirelles, com as presenças de “Abel Ferreira, Luperce Miranda, Joel Nascimento, Déo Rian, os Carioquinhas, Paulo Moura e o conjunto de Radamés Gnatalli”, também atraíram um grande público315.

O ponto em comum entre os dois últimos eventos assinalados seria, fora o fato de serem apresentações de choro, a subvenção das respectivas Secretarias da Cultura, marcando, de um lado, uma retomada do gosto do público pelo gênero, e, de outro, a atuação de políticas públicas em prol da cultura popular. Segundo Margarida Autran, em Renascimento e

descaracterização do choro, texto publicado em 1979, essa presença do fomento estatal

estaria desvirtuando as características musicais e sociais do gênero, conforme a própria afirma:

“Ao ser subvencionado pelo Estado e encampado pela indústria cultural, que pretenderam torna-lo competitivo no mercado nacional, este gênero basicamente intimista – que nos seus cem anos de existência nunca deixou de ser tocado amadoristicamente por músicos populares nos quintais dos subúrbios cariocas, onde nasceu – foi levado à descaracterização, o que provocou um rápido esvaziamento de um “boom” criado artificialmente”316 A autora, guardadas as questões ideológicas que perpassam todo seu texto, aponta para uma questão central, não só com relação ao choro, como no que diz respeito à música popular brasileira como um todo, configurada na tensão existente entre a produção musical, o mercado fonográfico e o papel do Estado frente às demandas culturais.

Segundo a Autran, enquanto “a retomada do choro ainda era iniciativa de um grupo de intelectuais interessados em preservar a memória musical brasileira”, apresentando aos “instrumentistas uma opção ao vazio em que se encontravam”, ainda se preservava “o clima que o choro exige”317. Esses intelectuais a que se refere, no caso do Rio de Janeiro, são Sérgio Cabral e Albino Pinheiro que, à frente do Clube do Choro, organizaram concertos reunindo tradicionais nomes do gênero. Nota-se que ambos, ao longo da década de 1970, iriam compor os quadros do Museu da Imagem e Som e depois da FUNARTE, órgãos subvencionados pelo investimento estatal.

O problema, portanto, não parecia residir nas formas pelas quais esses eventos eram financiados, pelo capital estatal ou privado, o que aparentemente causa incômodo é uma

314 AUTRAN, Margarida. “Renascimento” e descaracterização do choro in ANOS 70. Rio de Janeiro, Europa Emp.

Gráfica e Editora Ltda., 1979-1980. 7 v. pp. 65 – 75. P 65

315 Ibidem, p.65 316 Ibidem, p.65 317 Ibidem, p.66

suposta desvirtuação das práticas musicais em torno do gênero. Em suma, não era uma questão de apenas galgar novos espaços de circulação para o gênero, mas também, de delimitar o tipo de choro e sob quais condições ele seria divulgado.

Mas, não somente as políticas culturais eram alvos das críticas em torno da revalorização do gênero. Como vimos, a indústria de discos, acusada pelos seus detratores de não abrir espaços para a verdadeira expressão popular brasileira, irá ser constantemente atacada. Assim posiciona-se o crítico musical Tárik de Souza:

“A indústria fonográfica (...) ‘está sempre a reboque do que considera sucesso, sendo raro investir em alguma coisa cultural’, chegou com algum atraso a esta retomada do choro. Foi quando as vendagens de discos de samba tiveram uma súbita queda, em 77, que as gravadoras começaram a revirar seus arquivos em busca de velhos registros dos grandes mestres do choro, regravadas a toque de caixa e, de maneira mais rápida e barata, aproveitaram os shows e festivais que reuniam velhos e novos chorões e os gravaram ao vivo, quase sempre com inevitável perda de qualidade”318. Para Tarik, a indústria fonográfica estaria utilizando o “renascimento” do gênero para relançar antigos repertórios, visando preencher de maneira “rápida e barata” a crescente demanda do mercado pelo gênero. É visível como as críticas modificam-se na medida em que os espaços dedicados ao choro vão se ampliando. Se antes a questão era pautada na ausência desses repertórios nas produções fonográficas das gravadoras, agora a discussão passava a ser sobre as formas de apresentação e representação dos mesmos.

De modo geral, essas depreciações em torno das organizações de eventos via políticas culturais ou das orientações mercadológicas da indústria, parecem ter como ponto fundamental uma tentativa de apreensão do processo de revalorização do choro. Há um latente apego às práticas musicais e sociais sacralizadas em torno do gênero, tendo como contraponto as várias mudanças ocorridas nos próprios meios de circulação da música ao longo do século XX, que pareciam causar certo desconforto em algumas alas da crítica musical.

É nesse cenário que se realizaria o I Festival Nacional do Choro, onde teríamos um enfrentamento direto entre posicionamentos díspares, relacionados às composições e interpretações, sobretudo, no que tangia a tradicionalidade ou não das músicas apresentadas. O evento, fruto da popularidade recém-adquirida do gênero, consubstanciaria em sua realização uma gama de concepções e diferentes alinhamentos.

318 SOUZA, Tárik apud AUTRAN, Margarida. “Renascimento” e descaracterização do choro in ANOS 70. Rio de