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CAPÍTULO 02 – DISCOS MARCUS PEREIRA: O BRASIL INSTRUMENTAL

2.1. O CHORO E A DÉCADA DE

Como explicitado, a empresa dedicaria sua produção àquilo que nomeia como sendo a música popular autenticamente brasileira. Seguindo tal critério irá lançar no mercado de discos um total de 142 elepês. Dentro deste universo de fonogramas dedicará uma parte às

146 ARAGÂO, Helena de Moura. Duas experiências de mapeamento musical no Brasil. XIV Encontro Regional da

ANPUH-RIO, Rio de Janeiro, 2010. P. 37

147 ARAGÂO, Helena de Moura. Duas experiências de mapeamento musical no Brasil. XIV Encontro Regional da

ANPUH-RIO, Rio de Janeiro, 2010. P. 78

manifestações musicais populares de cunho folclóricos regionais e, outra, destinada aos gêneros populares urbanos, entre eles o choro.

Da mesma maneira que buscou mapear e identificar as manifestações folclóricas através de registros sonoros que representassem nossa brasilidade, também levou a cabo um mapeamento de nossas “tradições” musicais no ambiente citadino. Esse mapa, contudo, perpassaria por uma cartografia que já vinha sendo traçada e definida pelos debatedores da “autêntica” música popular brasileira.

Para melhor compreender a elaboração deste mapa urbano e as aproximações entre os discursos da gravadora e dos narradores, tomaremos como aporte os registros sonoros vinculados ao universo do choro. A escolha deste repertório está relacionada à importância que adquire o choro e seus intérpretes, na elaboração de uma sonoridade representativa dos “genuínos” traços de nossa brasilidade. Representação que será compartilhada e readensada ao longo de toda a década de 1970, tendo como um de seus interlocutores a Discos Marcus

Pereira.

A década de 1970 demarca um importante momento de rearticulação e de revitalização do choro. Se de um lado ocorre a “redescoberta” do gênero e de seus artífices, por outro, concorre uma nova safra de compositores e instrumentistas que passam a pensar o choro para além dos modelos “tradicionais” de composição e execução. Essa tensão entre “preservação” e “revitalização” dos repertórios de choro será amealhada ao longo da exposição, compondo parte do cenário em que circulariam os discos da Marcus Pereira.

Ary Vasconcelos, em sua já citada obra, Carinhoso – História e inventário do choro,

aborda tal revalorização utilizando como referência o ano de 1975 e a realização, sob sua tutela, da Semana Jacob do Bandolim. Segundo o autor, naquele momento “como a Bela

Adormecida, o choro parece despertar de seu letargo149” e emenda:

“Chegamos a 1975 e à Semana Jacob do Bandolim que promovi, no Museu da Imagem e Som, entre 16 e 22 de junho, para comemorar a doação ao MIS, do Arquivo de Jacó – acontecimentos, então, amplamente divulgados pela imprensa (...) A partir daquele evento, como em obediência a um sinal convencionado, começa a se verificar uma mobilização geral dos aficionados do gênero, cujo número aumenta de forma surpreendente, provocando grande interesse entre os jovens” 150.

Se por um lado dá demasiada ênfase ao evento por ele produzido, exagerando na amplitude de seu alcance, colocando-o em uma situação de centralidade unívoca no processo

149 Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc.- História e inventário do choro, Gráfica Editora-Livros, Rio de Janeiro, 1984.p. 40. 150 Ibidem p. 40

de retomada do choro, por outro, não ignora uma série de outros fatores que colaboraram para tal acontecimento.

Entre eles, aponta para o show Sarau, realizado dois anos antes, em 1973 no Teatro da Lagoa, onde Paulinho da Viola se apresenta ao lado do Conjunto Época de Ouro, sob direção de Sérgio Cabral. Paulinho da Viola será responsável, ainda, pela gravação, em 1976, do LP

Memórias, Chorando (EMI/Odeon). Neste disco ele surge “solando ao cavaquinho e ao violão

choros de Pixinguinha, etc”., emprestando ao gênero, “a força de seu grande prestígio pessoal” 151.

Aponta para a formação no Rio de Janeiro, a partir de 1975, do Clube do Choro, ambiente por onde circulariam nomes como Conjunto Época de Ouro, A Fina Flor do Samba e o pianista Artur Moreira Lima, executando obras de Ernesto Nazareth152. Esses clubes de choro surgiram também em São Paulo, Brasília, Recife, Belo Horizonte e Goiânia, sempre com destacado apoio da imprensa. O autor cita ainda, um conhecido espaço dos chorões cariocas, o botequim Sovaco de Cobra, que irá “consagrar-se como o templo carioca do gênero153”.

Mas quem fará, de acordo com Ary, “o melhor trabalho de divulgação do choro” neste período, será a “Secretaria Municipal de Educação e Cultura do Município” do Rio de Janeiro, ao lançarem o “Projeto Concerto de Choro, que realiza apresentações do gênero em vários pontos da cidade154”. Esse investimento estatal consistiu em “campanhas nas escolas e locais públicos e numa série de doze concertos (iniciada em 75), realizados em praças públicas, escolas, quadras de pequenas escolas de samba, e encerrada apoteoticamente no espetáculo da Sala Cecília Meirelles155”.

Com relação à indústria fonográfica Vasconcelos assinala a gravadora Discos Marcus

Pereira como a “que realiza os melhores lançamentos de choro, nessa fase”, passando a listar

as principais gravações realizadas em 1975 e 1976, registros esses, considerados como “esplêndidos discos de choro156”. Arrola outras gravações consideradas como importantes para o gênero e expõe outra série de eventos tais como o 1° Encontro Nacional do Choro e o

Brasileirinho - I Festival Nacional do Choro, ambos ocorridos em 1977. O Encontro foi

realizado a pedido da Federação das Bandeirantes do Brasil, tendo sido organizado por Marcus Pereira que presidiria, ainda, o júri do I Festival. Os dois eventos culminaram na

151 Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc.- História e inventário do choro, Gráfica Editora-Livros, Rio de Janeiro, 1984.p. 42 152 Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc.- História e inventário do choro, Gráfica Editora-Livros, Rio de Janeiro, 1984.p. 40 153 Ibidem p. 40

154 Ibidem p. 40

155 AUTRAN, Margarida. “Renascimento” e descaracterização do choro. ANOS 70. Rio de Janeiro, Europa e Emp. Gráf.

E Edit. Ltda., 1979-1980. 7 v. Il. p. 69

gravação de três elepês: Todo O Choro – 1o Encontro Nacional Do Choro e Brasileirinho – I

Festival Nacional Do Choro – Choro Novo – Disco 1 e 2, lançados no mesmo ano de 1977.

Essa relevância da gravadora com relação à revalorização do choro na década de 1970 é comentada num artigo para a coleção de livros intitulada Anos 70, publicada em 1979. Na edição dedicada a Música, Margarida AUTRAN estabelece uma diferenciação da proposta da

Discos Marcus Pereira com relação ao que era comumente veiculado pelas grandes

gravadoras no período:

“Esta atividade apressada e descuidada (referente às gravações e repertórios) resultou numa avalanche de discos de choro, um ou outro inegavelmente antológicos, mas a imensa maioria apenas oportunistas (90% são regravações), que levaram a saturação do mercado e o declínio da febre do chorinho. Contudo é importante ressaltar o papel de Marcus Pereira, que enquanto publicitário teve a ideia de oferecer a seus clientes, no Natal de 68, o disco “Brasil, flauta, cavaquinho e violão”, choros gravados com artistas de sua casa de música, o Jogral. Assim ele foi responsável pelos melhores discos de choro, como Alltamiro revive Pattapio”, “História de um bandolim – Luperce Miranda”, a gravação praticamente inédita da obra de Ernesto Nazareth na interpretação do pianista Artur Moreira Lima e o disco do Quinteto Villa-Lobos, no qual o choro é apresentado com tratamento camerístico157”.

No trecho a autora faz referência a um movimento de “redescoberta” e de “revitalização” do choro que ocorreu nos anos 70. Porém, aponta restrições com relação aos repertórios lançados pelas gravadoras. Segundo ela “a imensa maioria” composta de material fonográfico “oportunista” (regravações) e, aponta a exceção: “Marcus Pereira”. Tal crítica se referia a uma série de relançamentos de discos de choro impetrados pelas multinacionais do setor fonográfico, naquele momento, buscando preencher a demanda causada pela retomada do gênero.

O próprio Marcus Pereira irá abordar o tema em artigo escrito para o jornal O Globo, onde aponta para esse renovado interesse das gravadoras:

“Quanto à explosão do choro, que vem alimentando as gravadoras multinacionais, é simples explicar. No mundo que a gente vive, comida, saúde e educação são negócio. Por que a cultura estaria a salvo? É um negócio para as grandes empresas e não tenho dúvidas de que vai ser explorado assim (...)158

Se, em situações anteriores, a crítica de Marcus Pereira era direcionada à ausência de gêneros musicais brasileiros autênticos nos catálogos das grandes gravadoras, aqui seu

157 AUTRAN, Margarida. “Samba, artigo de consumo nacional” e “’Renascimento’ e descaracterização do no trchoro”.

In ANOS 70 – Música. Rio de Janeiro, Europa e Emp. Gráf. E Edit. Ltda., 1979-1980. 7 v. Il. (P.72)

julgamento recaí sobre o tratamento conferido por elas a esses repertórios. No seu entender, o espaço conferido naquele momento ao choro seria transitório, ou seja, o interesse duraria enquanto o gênero estivesse em voga e pudesse ser comercialmente explorado pelas empresas fonográficas. Interessante notar que Pereira tece seu juízo deliberadamente, ignorando o fato de que a gravadora que dirige é constituinte desse mesmo “negócio”, onde “cultura” é transfigurada em mercadoria de consumo.

O renovado interesse da indústria fonográfica pelo choro garantiu ao gênero, entre os anos de 1976 e 1978, cerca de 50 lançamentos, “enquanto a média, nos anos anteriores (...) era de apenas 6 discos ao ano”. Porém, de um modo geral, as gravadoras não se preocupavam em “registrar os novos grupos e a efervescência de novas ideias que vinham enriquecendo o gênero”, limitando-se a relançamentos das gravações que tinham em catálogo, sob a forma de coletâneas, insistindo sempre num mesmo repertório159. Paralelamente a essa atuação das grandes empresas fonográficas, concorreram na busca destes novos espaços de circulação do

choro, uma série de lançamentos através de discos-brinde, como os casos dos lançamentos

financiados pela Servenco, Rede Globo, Banco do Brasil e ainda, a Companhia Internacional de Seguros que lançou uma “antologia organizada a título de brinde de Natal que se tornaria referência obrigatória entre os chorões, o álbum duplo Chorada, chorões, chorinhos160”.

Esse processo de retomada dos repertórios de choro nos anos 70, portanto, esteve vinculado a um movimento amplo de “redescoberta” do gênero, concorrendo para tal, um encadeamento de eventos e ações que transitavam entre a inciativa privada e o fomento estatal. O fato é que o choro terá seus espaços de circulação e divulgação ampliados neste período, seja no âmbito da indústria fonográfica, como também, através de eventos, shows e da organização dos Clubes de Choro.

A Discos Marcus Pereira, como vimos, é apontada por alguns autores como fundamental na retomada do gênero, sobretudo, por suas práticas fonográficas divergirem das ações levadas a cabo pelas grandes empresas do setor. Essa diferença com relação à sua produção discográfica e ainda, os caminhos pelos quais a gravadora se insere nas discussões que tangenciavam esse momento de revitalização do choro, passarão a ser agora discutidos a partir dos fonogramas propriamente ditos.

159 MULLER, Daniel Gustavo Mingotti. Música instrumental e indústria fonográfica no Brasil: a experiência do selo Som da Gente . Campinas, SP: [s.n.], 2005.p.57

160 AUTRAN, Margarida. “Samba, artigo de consumo nacional” e “’Renascimento’ e descaracterização do choro”. In