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CAPÍTULO 3- INTERPRETAÇÃO DOS DADOS E ANÁLISE

2. Categoria 2 – O Povo Brasileiro

2.3. Brasileiro: o povo indisciplinado

Um pouco de disciplina cai bem (EP 20, BRASIL, 2015)

O EP 20 traz a afirmação “Um pouco de disciplina cai bem”, com a palavra “disciplina” em destaque e apresenta algumas dicas para ser mais disciplinado no

139 Tradução nossa: (...) society is constantly producing new representations to motivate action and make

sense of human interactions that spring from people’s everyday problems. And social representations can lead us to a social psychology of knowledge enabling us to compare groups and cultures (MOSCOVICI,

trabalho. Inferimos que o documento sugere a representação de que o brasileiro não tem disciplina e que há necessidade de se ter pelo menos um pouco, conforme apresentado no EP:

Figura 11 - EP 20: Um pouco de disciplina cai bem

Na seção de sugestões do material, nos deparamos com o tópico: “No trabalho (...) especialistas em recursos humanos e consultoria empresarial dão algumas ideias para ajudá-lo a ser mais disciplinado140”. Essa afirmação não só pressupõe que o povo

brasileiro pode ser indisciplinado, como também abre precedente para se questionar a seriedade do brasileiro em contextos de trabalho, já que o EP aconselha ter “um pouco de disciplina”. Além disso, a manchete em destaque soa como uma bronca, sugerindo que no Brasil não há disciplina, ou que as relações dos brasileiros não são permeadas por essa característica.

Ademais, a representação que remete a possível indisciplina do brasileiro oriunda da manchete exposta no EP 20 pode ser uma antítese de representações do povo brasileiro, como acolhedor, gentil, cordial, divertido, alegre (SILVA, 2016) entre outras tantas que remetem a um comportamento positivo, geralmente, na voz de estrangeiros. Essa representação exposta no EP, de certo modo, pode contribuir para reforçar estereótipos relacionados ao povo brasileiro.

A noção de disciplina, posta para discussão, vai de encontro com a dualidade constituinte da brasilidade, na voz de Da Matta (1986), da “desordem carnavalesca” e a disciplina das “festas da ordem”, em que no carnaval tudo pode, não há disciplina que rege a festividade, sendo assim uma celebração com excessos. Por outro lado, as “festas da ordem” têm a premissa da disciplina, a começar com os desfiles ordenados e sincronizados pela marcha e as vestimentas uniformizadas e padronizadas. Depreendemos, assim, que essa binaridade é um fator constituinte da identidade do povo brasileiro.

Para Darcy Ribeiro, existem diversas características que se atribuem ao povo brasileiro, dentre elas a indisciplina. O autor atribui essa característica à pluralidade constituinte da formação identitária do brasileiro, apontando que:

Para Sérgio Buarque de Holanda seriam características nossas, herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitana, bem como o espírito aventureiro e o apreço à lealdade de uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo negócio. Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão e anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência. (RIBEIRO, 1995: 451)

Essa representação também faz referência intertextual à crônica de Paulo Mendes Campos, publicada em 1964, “Brasileiro, homem do amanhã”, em que o autor critica sarcasticamente essa característica do povo brasileiro, descrevendo que “há, em nosso povo, duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Colunas da brasilidade, as duas colunas são: a capacidade de dar um jeito; a capacidade de adiar141. ”

Nessa crônica o tema principal abordado pelo autor é o da procrastinação e há forte argumentação de que ela é característica inerente ao povo brasileiro, conforme observado no trecho anterior. Esse sentido abordado na crônica de Paulo Mendes Campos poderia ser interpretado como o resultado da falta de disciplina, daí o homem brasileiro ser considerado do amanhã.

A partir da análise dos documentos que compõem as interações face-a-face do exame Celpe-Bras pudemos observar que havia outro EP que remetia a uma representação de que o brasileiro poderia ser indisciplinado no trabalho. O EP 12 – “WhatsApp” apresenta uma imagem de uma mulher segurando um aparelho de telefone celular, sobreposto pelo seguinte texto: “O excesso de WhatsApp no ambiente de trabalho”, de acordo com a figura do EP:

141 Texto na íntegra disponível em Portal da Crônica Brasileira:

Figura 12- EP 12: WhatsApp

O material apresenta o texto como uma constatação que pode ser relacionada a uma representação de que o brasileiro faz uso demasiado dessa rede social em ambiente de trabalho. Essa interpretação, de certo modo, dialoga com a discutida anteriormente referente à questão da disciplina no trabalho. Assim, depreendemos que esses dois EPs estão em convergência pela temática abordada em ambos: a (in)disciplina no trabalho.

Verificamos que o respectivo RI não proporciona questões que pudessem problematizar essa representação do EP 12, que vincula o excesso do uso do WhatsApp

ao brasileiro. As questões apresentadas no RI são de cunho pessoal, podendo não viabilizar uma discussão pela perspectiva intercultural (CANDAU, 2010; FLEURI, 2003; PAIVA, 2015). O RI não apresenta questões que poderiam promover a comparação entre o país do examinando e o Brasil. Pontuamos que a comparação, na voz de Moscovici (2015), é necessária para se construir representações. Assim, a comparação seria também um caminho de abertura para a problematização de representações pré-concebidas, como no caso dos EPs 12 e 20. Além disso, seria pertinente que o referido EP abordasse a função do Whatsapp como relevante ferramenta de trabalho no Brasil, ou seja, na vida cotidiana de muitos brasileiros o Whatsapp não é apenas rede social, ele é caminho viável de comunicação para fins de trabalho, quase substituindo o correio eletrônico, devido a sua rapidez e eficácia em transmitir mensagens (áudios, textos, imagens).

Como afirma Moscovici (2015, 53): “as representações devem ser vistas como uma “atmosfera” em relação ao indivíduo ou ao grupo”. Nesse sentido, argumentamos que as representações que podem emergir nas interações face-a-face, por mediação do EP e RI, podem estar influenciadas por uma atmosfera já estabelecida pelo conteúdo apresentado no EP. Para Moscovici (2015) as representações sociais são imbuídas de outros aspectos como: crenças, afetos, memoria, tradição, subjetividades, cultura. Nesse caso, a representação sobre o povo brasileiro é baseada no tema da (in)disciplina. Ressaltamos que é relevante o estudo das representações pela perspectiva temática, uma vez que “os temas permitem um entendimento de como as representações sociais são formadas, e ao mesmo tempo, direciona a atenção para o papel da memória e tradição, em conjunto com emoção e subjetividade”142 (JODELET, 2008: 419)

Essa representação pode ser explorada pelo viés da interculturalidade (CANDAU, 2010; FLEURI, 2003; PAIVA, 2015) no tocante à problematização e questionamento da noção de disciplina apresentada no EP. Observamos que o respectivo RI trata do tema de maneira geral e superficial, não proporcionando uma discussão crítica da relação que pode ser estabelecida entre a indisciplina e o ser brasileiro, conforme conotação do EP 20. As indagações sugeridas para a interação face-a-face estão mais relacionadas às características pessoais do possível examinando.

142 Tradução nossa: Themata allow an understanding of how social representations are structured and at

the same time draw attention to the role of memory and tradition, in conjunction with emotion and subjectivity (JODELET, 2008, 419).

Desse modo, tendo como base a teoria de Moscovici (2015) e considerando as pressuposições de Jodelet (2008) acerca da relevância dos temas para a construção de representações, argumentamos que o estudo da temática, nesse caso da disciplina, pode tomar o caminho da interculturalidade, no sentido de proporcionar oportunidades de questionar a representação posta no material, bem como suas origens e seus porquês. Nessa perspectiva da interculturalidade, as interações face-a-face do exame Celpe-Bras poderiam contribuir para a exploração de aspectos culturais (tanto do Brasil/eiró quanto da cultura do examinando) que são constituintes dos EPs e RIs, norteadores das interações. Entretanto, observamos que as perguntas contidas no RI não indicam possibilidade de que as discussões sejam pautadas pelo viés da interculturalidade, podendo assim, contribuir para reforçar estereótipos e não proporciona oportunidade de o examinando expor uma visão crítica.

Nessa temática das características que constituem a identidade do povo brasileiro, passamos, a seguir, para o subtema das características interacionais de brasileiros.