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CAPÍTULO 3: A retórica e a argumentação na produção de documentários

3.1 A construção retórica do gênero documentário

3.1.1 Breve percurso

Olivier Reboul, em seu livro Introdução a retórica, chama a atenção para o fato de que a retórica não tem a sua origem em Atenas. De acordo com o autor, ela surge “na Sicília Grega por volta de 465, após a expulsão dos tiranos60. E sua origem não é literária, mas judiciaria. Os cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros conflitos judiciários” (2004, p. 2). Tais embates ficaram a cargo dos chamados retores, que tinham uma função similar a dos advogados – não existentes naquela época – das pessoas que tiveram suas posses tomadas pelo derrotado invasor, e se enfrentavam judicialmente. Segundo Reboul, a primeira definição da retórica foi dada por Córax61, que afirmava que “ela é criadora da persuasão” (ibid.).

A questão que se coloca, diante das ideias apresentadas, gira em torno da conceituação de retórica. Quem contribui para essa finalidade é Michel Meyer, que apresenta três

59 O curioso é que esse tratamento parece acompanhar a trajetória empreendida pela retórica ao longo de sua existência, uma vez que Platão, para ficarmos no exemplo mais significativo, tinha severas restrições em relação às ferramentas disponibilizadas por essa técnica.

60 “Tomemos duas datas como referência: 480 a.C., batalha de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram definitivamente sobre a invasão persa, quando começou o grande período da Grécia clássica; 399, ainda antes da nossa era: morte de Sócrates” (2004, p. 2).

61 “Córax é considerado o inventor do argumento que leva seu nome, o Córax, e que deve ajudar os defensores das piores causas” (2004, p. 3). O linguista José Luiz Fiorin (2014) resgata uma interessante história que envolve a figura de nossa personagem. “Conta-se que Córax dispôs-se a ensinar suas técnicas a Tísias, combinando com ele que seria pago em função dos resultados obtidos pelo discípulo. Quando Tísias defendesse a primeira causa, pagar-lhe ia se ganhasse; se perdesse, não lhe deveria nada. Terminadas as lições, o aluno entra com um processo contra o mestre. Nessa primeira demanda, ele ganharia ou perderia. Se ganhasse, não pagaria nada por causa da decisão do tribunal. Se perdesse, não deveria nada por causa do acordo particular entre eles. Córax constrói seu contradiscurso, retomando a argumentação de Tísias, mas invertendo-a.” (p. 9).

contrastantes definições. A primeira, construída por Platão, fala que “a retórica é uma manipulação do auditório” (2007, p. 21). A segunda, de Quintiliano, afirma que “a retórica é a arte de bem falar” (ibid.). A terceira, cunhada por Aristóteles, atesta que “a retórica é a exposição de argumentos ou de discursos que devem ou visam persuadir” (ibid.). Vejamos o que Meyer afirma a respeito desses três pontos de vista:

Da primeira definição decorrem todas as concepções de retórica centradas na emoção, no papel do interlocutor, e em suas reações, o que atualmente implica propaganda e publicidade. Da segunda, tudo o que diz respeito ao orador, à expressão, ao si mesmo, à intenção e ao querer dizer. Quanto à terceira definição, ela diz respeito àquilo que referimos anteriormente sobre as relações entre o explícito e o implícito, o literal e o figurado, as inferências e o literário (2007, p. 21).

O excerto antecedente exemplifica o caráter multifacetado das discussões referentes à retórica. Podemos perceber que Platão se mostra contrário à sua utilização não vendo nela nenhum tipo de benefício. Quintiliano, por sua vez, atrela a retórica à conformidade entre o discurso e a conduta do orador. Aristóteles, diferentemente dos anteriores, está preocupado com a adesão obtida através da eficiência do discurso. Podemos afirmar que o estagirita exerceu um papel fundamental para garantir a importância que a retórica teve ao longo de sua posterior trajetória. Não é fortuito o fato de que a análise argumentativa do discurso tenha operado uma espécie de atualização da retórica aristotélica. Sobre a importância do filósofo grego, Reboul assevera:

Numa palavra, Aristóteles salva a retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe um papel modesto, mas indispensável num mundo de incerteza e conflitos. É a arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo, sempre que não houver outro recurso senão o debate contraditório (2004, p. 27).

A ideia de que Aristóteles construiu um modelo fundamental para o estudo da retórica pode ser atestada a partir do dizer da linguista Helcira Lima, em sua tese de doutorado. A autora atesta que

Este arcabouço desenvolvido e sistematizado por Aristóteles serviu de base para o desenvolvimento de todas as teorias de argumentação que surgiram depois dele, mesmo com as contradições e limitações que puderem ser identificadas (LIMA, 2006, p 91).

De acordo com Lima (2006), o estagirita distribuía o modelo retórico a partir da tríade discursiva éthos, pathos e lógos. Fiorin chama a atenção para uma interessante divisão da retórica de Aristóteles. O primeiro livro seria voltado para o éthos, ou seja, à imagem construída pelo enunciador. O segundo, centrado no pathos, projeta a figura do auditório. O terceiro livro, por sua vez, se volta para o lógos, ou seja, para o discurso. Lima (2006) afirma:

A obra de Aristóteles pode ser compreendida, assim, a partir de quatro instâncias – lógica, ética, patética e estética – e, apesar de não ter mantido o equilíbrio entre elas, é a partir deste filósofo que os latinos elaboram suas contribuições, relendo e adaptando para o seu tempo as relações entre o pathos, o ethos e o logos (p. 94). Os latinos referenciados no excerto anterior são encabeçados, principalmente, por Cícero – responsável pela obra Do orador – e Quintiliano – autor de Instituição oratória. Conforme apontamos anteriormente, a retórica praticada por esses pensadores, com especial destaque para o primeiro, assevera a importância da “virtude do orador” (2006, p. 94), uma vez que o homem eloquente seria aquele capaz de falar de modo a provar – ética – e encantar,

excitar emoções – patética” (ibid.). Os chamados retores latinos postulavam um ensinamento da retórica que fosse um constructo contínuo, ou seja, ela deveria acompanhar toda a trajetória de vida das pessoas. O seguinte fragmento evidencia esse objetivo: “(...) trata-se de um ensino em profundidade, que pega o homem desde a infância e forma-o naquilo que os gregos chamam de Paideia, traduzido magnificamente por Cícero como humanitas, nossa cultura geral” (2006, p. 73).

Após um longo período de prestígio, a retórica se vê em um estado de declínio que, de acordo com Reboul (2004), ocorreu em função de duas correntes de pensamento: positivismo62 e romantismo63. O autor nos fala que, em 1885, a retórica é retirada do ensino

francês. Podemos perceber que o desprestígio dessa técnica se deve ao estado de coisas vigente nos citados séculos XIX e XX. O culto da ciência ia de encontro à “elasticidade” das respostas oriundas do discurso retórico, calcado na esfera das possibilidades. A objetividade científica, de certa forma, não se interessava pelas imagens e emoções emergentes em determinados tipos de problematizações (destacamos, por exemplo, o trabalho exercido por Saussure e sua visada estruturalista que sistematizou a linguística64 a partir da língua, relegando, com isso, o papel da fala), mas, sim, à exatidão da resposta. O que podemos afirmar é que não havia interesse pela persuasão, mas, sim, pela evidência alcançada por determinados resultados que foram previamente testados.

Contudo, apesar de quase um século de apagamento, surgiu uma luz no fim do túnel. Podemos afirmar que o resgate da retórica feito pela análise argumentativa do discurso

62 “(...) rejeita a retórica em nome da verdade científica. Ela será excluída até mesmo de sua última trincheira, a elocução, sendo substituída pela filologia e pela história científica das literaturas” (2004, p. 81).

63 “(...) rejeita a retórica em nome da sinceridade. ‘Paz com a sintaxe, guerra à retórica’, exclama Victor Hugo” (ibid.).

64 De acordo com Fiorin (2014, p. 13), a linguística inscreve o seu lugar como ciência em um contexto de desprestígio da retórica, O autor afirma que “a linguística, em seu início, não tem qualquer relação com a retórica ou a dialética. Por isso, estuda do som ao período e nada tem a dizer sobre o texto, que era uma unidade da fala e não da língua”.

complementa o trabalho realizado por Chaïm Perelman que, em parceria com Lucie Olbrechts-Tyteca, lançam em 195865 o importante Tratado da argumentação: a nova retórica. Reboul (2004) afirma que o tratado foi fundamental para descrever estratégias argumentativas, contudo ele “deixa de reconhecer os aspectos afetivos da Retórica” (p. 89). Aquilo que parece ter faltado no trabalho de Olbrechts-Tyteca e Perelman acabou se sobrepondo no movimento que atrela a retórica aos estudos literários. Reboul (2004) nos revela:

Esse movimento, que inclui Jean Cohen, o grupo MU, Gérard Genette, Roland Barthes, transforma a retórica em “conhecimento dos procedimentos da linguagem característicos da literatura” (Retorique Generale, p. 25). E esses procedimentos são reduzidos às figuras de estilo (p. 88).

Permitindo-nos desenvolver certo tipo de coloquialidade, a dicotomia – Retórica literária x Nova Retórica –, demonstrada no parágrafo anterior, parece se configurar em um “cobertor curto”, pois o que sobressai em uma visada, se mostra ausente em outra.

O que se pode afirmar, diante disso, é que a incorporação da retórica à linguística – proporcionadora, por exemplo, da análise argumentativa do discurso – pretende propor um tipo de pesquisa que permite estabelecer uma problematização abrangente das técnicas retóricas, pensando as categorias éthos, lógos e pathos como atreladas, embora uma ou outra possam sobressair em determinado texto, na construção do discurso. Além disso, nos parece fundamental aplicar o chamado edifício retórico nos objetos escolhidos para pesquisa. Podemos afirmar que os documentários são interessantes fontes de pesquisa para a aplicação desse postulado. Mais adiante, pretenderemos comprovar essa afirmação.