• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: Recorte diacrônico da produção de documentários

2.1 Perspectiva diacrônica da produção internacional

2.1.5 Shoah e o expurgo de Claude Lanzmann

Existem alguns cineastas que podem ser considerados monotemáticos. A primeira vista, esse fator parece ser negativo, pois, de certa forma, ele possibilita a ideia de ausência de criatividade. É preciso relativizar esse tipo de conclusão, principalmente quando analisamos a carreira de um documentarista como Claude Lanzmann. Quando se fala desse francês, nascido em Paris no ano 1925, é pertinente que o pensamento seja remetido, diretamente, para a saga Shoah (dirigido por ele em 1985) e que pode ser considerado um dos mais longos documentários já produzidos no cinema. Parece-nos que caracterizá-lo a partir da extensa duração se mostra inadequado, uma vez que, a nosso ver, o filme em questão possibilita uma problematização a respeito de dois pontos nevrálgicos para pensarmos o gênero documentário.

Em primeiro lugar, Shoah acredita na força da memória, que discursivizada no texto fílmico, funcionaria como uma espécie de expurgo, no sentido de evocar e rememorar os horrores vivenciados pelas vítimas do regime nazista. O trabalho de Lanzmann parece contribuir para o postulado do teórico alemão Theodor Adorno a respeito do novo imperativo categórico43 originário de regimes autoritários. Em segundo lugar, Lanzmann adota uma posição estética que nos permite pensar a respeito da relevância na utilização dos arquivos para “amparar” as imagens presentes na tomada. Ressaltamos que o diretor francês refuta essa utilização por acreditar que os testemunhos das pessoas que vivenciaram os acontecimentos são suficientes para a organização e intensidade do discurso fílmico. Georges Didi-Huberman (2012) afirma que Shoahé “obra de pura ‘palavra’ e de recusa ‘absoluta’ da imagem” (p. 121). Para ele, o filme “atinge o grau absoluto da palavra. Ao optar por não utilizar imagens de arquivo, Lanzmann fez uma escolha que expressa, de modo exacto, a sua determinação: opor ao silêncio absoluto do horror uma palavra absoluta” (ibid.). O que podemos inferir, a partir do que foi exposto acima, é que Lanzmann fundamenta e racionaliza o seu discurso fílmico a 43 “Hitler impôs um novo imperativo categórico aos homens em estado de não-liberdade: a saber, direcionar seu pensamento e seu agir de tal forma que Auschwitz não se repita, que nada de semelhante aconteça” (ADORNO, 1995 apud GAGNEBIN, 2012).

partir do encontro entre o sujeito-da-câmera e o ator social, que gera, como materialidade discursiva, o testemunho. Tais testemunhos são construídos a partir da encenação-atitude – oriunda de um antecampo visível e atuante –, e que possibilita a criação das imagens e o surgimento das emoções dos sujeitos envolvidos na interação comunicacional.

A posição, de certa forma intransigente, adotada por Lanzmann a respeito da recusa na utilização de arquivos (tanto imagéticos quanto textuais) traz consigo uma limitação na forma de organização dos documentários. Podemos afirmar que o diretor francês deslegitima os trabalhos que utilizam os arquivos ao afirmar:

Sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação. Elas petrificam o pensamento e matam todo o poder de evocação. Vale mais fazer o que eu fiz, um imenso trabalho de elaboração, de criação da memória e do acontecimento (LANZMANN, 1996 apud DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 124). Esta afirmação se mostra polêmica e difícil de ser plenamente endossada, principalmente se pensarmos em filmes como Noite e neblina (1955) de Alain Resnais44 ou em trabalhos contemporâneos de diretores como Rithy Pahn. Um dos grandes críticos dessa forma de organizar documentários é o teórico francês Georges Didi-Huberman. O seguinte excerto, de certa forma, evidencia essa contraposição:

Não se percebe porque motivo um pedaço de real – o documento de arquivo – atrairia tão facilmente o “desmentido” do real. Não se percebe porque motivo o facto de se questionar uma imagem de arquivo equivaleria de modo tão mecânico à recusa de escutar a “palavra humana”. Questionar uma imagem não releva apenas de uma “pulsão escópica”, como julga Lanzmann: é lhe necessário cruzar de novo e constantemente acontecimentos, palavras, textos. (...) o arquivo – massa frequentemente inorganizada de início – só se torna significante ao ser pacientemente elaborado. (ibid.).

É notório que Didi-Huberman não constrói uma ode aos documentos de arquivos, mas, ao contrário, ele preconiza uma análise detalhada do material para, a posteriori, inseri-lo no discurso fílmico.

Diante do que foi explicitado, julgamos pertinente a seguinte pergunta: Por que Shoah é considerada uma importante obra para o gênero documentário? Acreditamos que a principal resposta para essa questão passa pela tratativa concedida à memória como sendo uma catalisadora da discursivização. O que parece ser uma limitação (a ausência de arquivos) se 44Alain Resnais (1922-2014) é um diretor francês cuja carreira foi construída, em grande parte, através do gênero ficcional. Entretanto, ele tem em seu currículo alguns importantes documentários como As estátuas

também morrem (1953), dirigido em parceria com Chris Marker e que realiza uma abordagem diacrônica a

respeito da arte negra e Toda a memória do mundo (1956), que problematiza acerca do papel da Biblioteca

Nacional da França como sendo um lugar de memória. O principal trabalho documental de Resnais é o

supracitado Noite e neblina. Neste filme, o diretor utiliza imagens dos campos de concentração e imagens de arquivo para denunciar os horrores do regime nazista de Hitler.

pensarmos em termos de possibilidades da produção documental, funciona, aqui, como um trunfo, pois o diretor conta “apenas” com o testemunho de seus entrevistados. Segundo Shoshana Feldman (1991) Shoah gira em torno de uma fragmentação de testemunhos, que ocorre a partir de diferentes perspectivas e diferentes línguas, lembrando que Lanzmann percorreu diversos países em busca de sobreviventes do nazismo. Feldman (1991) afirma que a força de Shoah gira em torno da contradição existente entre a necessidade do testemunho que deriva para uma impossibilidade de testemunhar. Essa, talvez, seja a “mola propulsora” da tensão existente ao longo das mais de nove horas de metragem. O mérito de Lanzmann, nos parece, consistiu em tentar superar essa impossibilidade não para alcançar a verdade, mas, sim, para tentar se aproximar dela através das reminiscências e dos lapsos oriundos da interação entre sujeito-da-câmera e ator social.