• Nenhum resultado encontrado

Jafar Panahi: O documentário como refúgio contra o silenciamento

CAPÍTULO 2: Recorte diacrônico da produção de documentários

2.1 Perspectiva diacrônica da produção internacional

2.1.8 Jafar Panahi: O documentário como refúgio contra o silenciamento

Jafar Panahi, cineasta iraniano nascido em 1960, é um diretor mais vinculado à ficção do que ao documentário. Ao contrário de nomes supramencionados em nosso texto como Mohsen Makhmalbaf e Abbas Kiarostami, que, comumente, “esfacelam” as fronteiras entre a ficção e a não ficção, Panahi solidificou sua carreira a partir do gênero ficcional em obras como O balão branco (1995), O espelho (1997) e O círculo (2000). Diante disso, é pertinente o questionamento acerca da presença desse diretor em um trabalho voltado para problematizar o gênero documentário. A resposta para a questão consiste, justamente, nas condições (ou seria ausência?) de produção do discurso fílmico experimentadas pelo diretor. Explicando melhor: Panahi é um opositor ao regime totalitário vigente no Irã. Em função desse posicionamento, ele acabou preso no ano de 2010. Após quase três meses de cárcere, o diretor foi liberado, mas teve como punição a impossibilidade de sair do Irã e a proibição de realizar filmes, pois as autoridades daquele país consideram a sua obra subversiva e impulsionadora de ideias oposicionistas.

Apesar dessa interdição, o diretor conseguiu realizar três obras construídas a partir de uma linguagem documental. Em Isto não é um filme (2011), cujo nome carrega um caráter jocoso, Panahi convida um amigo – o cinegrafista Mojtaba Mirtahmasb – para registrar a sua rotina diária. Interessante pensar que essa sinopse, aparentemente simplória, é fruto de uma produção que evidencia o caráter coercitivo de um país que não tolera opiniões divergentes do status quo. Há uma acentuada carga patêmica, uma vez que o cineasta registra o seu forçado silenciamento. Embora a produção seja construída a partir de uma proeminente calma, é

possível perceber que, nas entrelinhas, o cineasta se apresenta irascível por não poder exercer a sua liberdade de expressão. O crítico de cinema Robledo Milani48 afirma:

“Isto não é um filme” é mais do que um documentário qualquer, e sim um registro

de um artista em ebulição. Ele não é ator, mas está atuando. Ele é diretor, mas não está dirigindo. Ele é roteirista, mas está impossibilitado legalmente de escrever histórias. Ele não pode fazer nada, e mesmo assim faz tudo sem que percebam qualquer coisa.

A partir do dizer de Milani, podemos perceber que a intolerância, de alguma forma, enfrenta dificuldades para impedir a criatividade. Isto pode ser percebido nos dois próximos filmes do diretor iraniano. Cortinas fechadas (2011), em sua primeira metade, possui uma estrutura voltada para a linguagem ficcional. Conhecemos a trajetória de um escritor que resolve partir para um exílio na casa de um amigo objetivando fugir da repressão estatal. Em um determinado momento, um casal pede para se esconder na casa para, segundo eles, se esconder da polícia. A sinopse parece se referir a um filme de ficção convencional, no entanto, na segunda metade, surge a presença “quase fantasmagórica” de Jafar Panahi. É possível acusar esse trabalho de controverso, uma vez que o diretor não se preocupa em evidenciar a sua mensagem. O que nos parece é que o comportamento neurótico do escritor metaforiza o sentimento de todos os iranianos que se mostram insatisfeitos com o governo totalitário. Se pudermos identificar Cortinas fechadas com uma palavra, talvez a mais indicada seja angústia. É um filme que busca transmitir esse sentimento para o espectador, através de longos planos e inúmeras tomadas marcadas por um silêncio quase “sepulcral”.

Em seu mais recente filme, Taxi Teerã (2015), o cineasta, através de uma ousada iniciativa, finge ser um motorista de taxi – uma provável alusão ao filme de Martin Scorsese Taxi Driver (1976) – e passa a percorrer diversos bairros da cidade de Teerã, municiado de uma câmera. Aqui, a ousadia se deve ao fato de que não fica explicitado se os “passageiros” estão encenando ou se a situação é espontânea. Tendemos a acreditar na primeira possibilidade, uma vez que diversos entrevistados são utilizados como “pano de fundo” para criticar a intolerância do regime que vigora naquele país. Duas passagens se mostram marcantes: a primeira, quando Panahi conversa com um vendedor de “filmes piratas”. Nessa interação, fica evidente a dificuldade que os iranianos enfrentam para assistir a filmes, uma vez que o governo exerce uma acentuada censura. A segunda passagem que destacamos é quando o diretor conversa com uma advogada – igualmente impedida pelo governo de exercer as suas funções. A partir dessa interação, o diretor evidencia os seus traumas, ao revelar que, comumente, escuta uma voz que o remete para os inúmeros interrogatórios a que ele foi 48 www.papodecinema.com.br/filmes/isto-nao-e-um-filme

submetido. Julgamos válida a inclusão de um trecho na qual a entrevistada revela um caso de perseguição política sofrida por uma iraniana.

Goncheh Ghavami foi ver um jogo de voleibol. Era um grupo de mulheres. Foram detidas. Foram todas liberadas, exceto ela. Há 108 dias. (...) foram presas à entrada do estádio. Está em greve de fome há dez dias. A mãe foi vê-la. Tentou convencê-la a parar com a greve. Nós também enviamos mensagens dizendo que sabíamos o que estávamos fazendo. Você e eu já fizemos greve de fome. É sempre o nosso último recurso. Ela está fazendo a mesma coisa. A mãe leva-lhe comida, esperando convencê-la a comer. Põem a mãe numa sala com câmeras: “ouça, convença a Goncheh. (...) diga para a câmera que ela nunca esteve em greve de fome”. A mãe perde as estribeiras, fica furiosa, diz-lhes que renuncia ao direito de visita. Pega na comida e vai-se embora. Eles pedem o mesmo por escrito a Goncheh na sua cela: “nunca fiz greve de fome”. Ela recusa, rasga o papel e renuncia às visitas. E a história é esta. (PANAHI, 2015).

Interessante notar, a partir da conversa entre os dois, que existe uma cumplicidade. Fica notório o compartilhamento de saberes, conhecimentos e vivências experimentados por ambos. Essa conversa, que dura pouco mais de cinco minutos, consegue transmitir as angústias e sofrimentos vivenciados por uma população que se encontra à mercê de um governo intolerante para com a opinião discordante.

A partir da apresentação do panorama, estamos cientes de que esse sucinto recorte não consegue esgotar a acentuada quantidade de produções que se mostraram relevantes para o cinema documentário. Alguns nomes importantes como, por exemplo, Alberto Cavalcanti, Henri Storck, Leni Riefenstahl, Georges Rouquier, Chantal Akerman, Lindsay Anderson, Tony Richardson, Johan Van Der Keuken, Fernando E. Solanas, além de inúmeros outros, acabaram ficando de fora de nossa análise. Acreditamos ser inviável, a partir dos objetivos almejados em nossa dissertação, a feitura de um apanhado que consiga dar conta de mais de cem anos de produção fílmica. O objetivo desse tópico foi traçar um panorama que consiga contemplar diacronicamente a produção de documentários. O próximo passo é voltar o olhar para o que foi e tem sido feito no Brasil.