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Breves apontamentos sobre a historiografia da escravidão no Brasil

relações de compadrio escravo na Paróquia de Nossa Senhora das Mercês

1. Breves apontamentos sobre a historiografia da escravidão no Brasil

Ao abordar a relação entre senhores e escravos no pe- ríodo colonial, especialmente em Casa Grande e Senzala, Freyre (2006), tendo por base o paternalismo, considera-a pacífica, o que, segundo Apolinário (2007, p. 29), contribui para a formação da ideia de paz social no Brasil:

Ao tratar das relações escravistas, Freyre res- salta a existência de uma relação idílica entre senhores e escravos. Para ele, a miscigena- ção racial era o segredo do ethos brasileiro.

O discurso freyriano, direta ou indiretamente, contribuiu para a formação do mito da demo- cracia racial no Brasil.

Do mesmo período da produção de Freyre – décadas de 1930, 1940 – está a produção de Prado Júnior (2004), que analisa o desenvolvimento do país pelo prisma da economia, dividindo o estudo de acordo com o principal produto de exportação do país, tais como açúcar, café, bem como o processo minerador. Mesmo que possam ser feitas críticas às obras, como se faz, uma vez que hoje a análise de nossa história vai além do viés econômico e as relações entre senhores e escravos não corroboram com a ideia de democracia racial, ambos os autores são bastante importantes para a historiografia brasileira.

Nos anos 1960, a chamada “Escola de São Paulo” – que tem nomes como Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso – vai dizer que a sustentação do regime escravista deu-se com a vio- lência, não com o paternalismo. Trazem à tona a violência do sistema, mas também apontam para o aspecto da coisificação do escravo e da rebeldia dos cativos através das fugas. Nesse período, o Brasil já está sob a ditadura militar, e tais estudos, ao abordarem as relações raciais no país, colaborarão para a reestruturação dos movimentos sociais nos fins da ditadura militar.

Na década de 1970, destaca-se o nome de Gorender (1985 apud ROCHA, 2009, p. 36), o qual escreve sobre o modo de produção escravista na sociedade colonial brasileira, apontando para dois meios de combate ao sistema: a revolta e a “adaptação”, como meio de sobreviver ao cativeiro, “uma forma de evitar que a coisificação social se transformasse em coisificação subjetiva”. Um dos meios de se revoltar seria diante do próprio trabalho, uma vez que com a diminuição da produção, os lucros senhoriais seriam afetados. Gorender privilegia o aspecto da economia, mas não dei- xa de apontar como positivos os estudos que procurem evidenciar o escravo enquanto agente, mas critica o exagero das análises que dão demasiada autonomia ao cativo.

De fato, a instituição escravista durou mais de três séculos, em um território bastante extenso como a América Portuguesa, o

que permite inferir que foram diversas as formas de controle, de re- sistência, de adaptação e que as relações entre escravos e senhores desenvolveram-se de muitos modos. A violência e a vigilância, de acordo com Faria (1998, p. 290), não foram as únicas mantene- doras da instituição:

Efetivamente, seria difícil imaginar, com as evi- dências que se tem hoje, homens trabalhando acorrentados ou sob o olhar permanente de fei- tores e chicotes ameaçadores. O retrato estaria longe da realidade do cotidiano da grande maioria dos cativos, entre outros motivos por estarem em escravarias relativamente pequenas, trabalhando lado a lado de seus senhores e seus filhos, mui- tas vezes partilhando o mesmo teto e a mesma alimentação. Inúmeros outros aspectos, portanto, teriam que ser considerados para o entendimen- to da manutenção, por aproximadamente 350 anos, do sistema escravista brasileiro.

Tendo isso em conta, a partir dos anos 1980, os estudos passaram a envolver outros aspectos das vivências escravas. Con- ceitos como resistência, negociação, sociabilidade passaram a ser tratados por autores como Mattoso (2003), Lara (1988; 2007) e Reis (1989). Com o acesso às fontes eclesiásticas, a formação de famílias e o compadrio vieram a ser tema de estudos para Floren- tino e Góes (2010), e Schwartz (1988). Em relação às famílias, acreditava-se que os escravos não as formavam, tendo por justifi- cativa a diferença entre o número de homens e mulheres. Dizia- -se, ainda, que essa diferença levava à promiscuidade na senzala, gerando crianças filhas de “mãe certa e pai incerto”. Pondera-se, no entanto, que para quem vive na condição de escravo, ter uma família significa ter um apoio, e as pesquisas com fontes paroquiais revelaram que os cativos formaram sim famílias, muitas delas legi- timadas aos moldes ocidentais, ou seja, dentro da Igreja.

Além das relações familiares, tais fontes ainda apontaram para o estabelecimento de um “parentesco espiritual” através do

compadrio. Considerava-se que o batismo libertava as almas, mar- cava a entrada dos indivíduos no mundo cristão, além de ser uma fonte de renda para a Igreja. O apadrinhamento envolvia proteção, suporte, respeito, era um modo de estabelecer um laço de afeto com outra pessoa, que poderia ainda ser acompanhado de benefícios e ajudas, se o padrinho escolhido estivesse em melhor condição.

Além de contemplar as relações afetivo-familiares, os estu- dos revisaram o tema da relação senhor-escravo que, tomando de empréstimo a expressão de Reis e Gomes (1989), passava pela ne- gociação e pelo conflito. Ainda há muito que se estudar sobre as vi- vências de escravos e forros no Brasil. A respeito do trabalho que his- toriadores vêm fazendo acerca desse tema, diz Faria (1998, p. 291):

O que era ser escravo? Difícil responder. Após esta nova historiografia, entretanto, sabe-se que não era trabalhar, comer e dormir acor- rentado a grilhões silenciosos. Em termos fi- gurativos, é a ponta de um véu, já levantada, deixa entrever uma comunidade não fechada em si mesma, que em seu dia-a-dia trabalhava, comia, amava, odiava, convivia intimamente com os livres, comercializava, andava por ca- minhos e ruas, conversava, tramava, etc. Vi- via, em suma. Mas vivia escrava! E este dado é fundamental.