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Décio de Almeida Prado: um crítico em formação

I. Breves considerações teórico-metodológicas

Devido à grande importância de Décio de Almeida Prado no panorama do teatro nacional – seja como crítico teatral, diretor, jornalista ou historiador –, inúmeras obras31 foram escritas a respeito de sua trajetória. Tais obras permitiram estabelecer um perfil biográfico e intelectual capaz de delimitar o peso e o impacto de seus trabalhos em suas áreas de atuação.

Valendo-nos dessas obras anteriormente dedicadas ao mesmo agente histórico, nossa intenção é contribuir para as reflexões já realizadas, incorporando-lhes novos temas e ideias sem perder, contudo, o viés concernente ao ofício do historiador, ou seja: resgatar no próprio processo histórico as questões que se vinculam ao nosso objeto de estudo. Com isso, há o alinhamento ao nosso métier e, como bem assegurou Michel de Certeau, parece-nos apropriado realizar o gesto que liga as ideias aos seus lugares de origem32, pois mediante esse procedimento será possível estabelecer a historicidade necessária para que o desenvolvimento das especificidades de nosso trabalho possam emergir com maior clareza.

31 Dentre os trabalhos publicados sobre Décio de Almeida Prado, merecem destaque as publicações

realizadas por Ana Bernstein e a coletânea de textos organizados por João Roberto Faria, Vilma Arêas e Flávio Aguiar. O primeiro, embora traga em sua feitura o perfil mais conservador da biografia ipsis litteris, organiza sua urdidura de enredo sob as premissas da crítica teatral enquanto cúmplice do então nascente teatro moderno no Brasil ressaltando, assim, a importância de Décio nesse processo. A vasta gama de documentos, bem como a série de entrevistas concedidas pelo crítico à pesquisadora foram de fundamental importância para nossa pesquisa. A segunda publicação, em tom mais ensaístico, reúne uma série de depoimentos e estudos sobre Décio e sua produção intelectual. Os textos, em sua grande maioria, representam o esforço analítico de elaborar um quadro geral e reflexivo sobre as diferentes frentes de atuação em que Décio efetivamente deixou as marcas de seu posicionamento frente ao teatro nacional. Cf. BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice: Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005, e FARIA, João Roberto, ARÊAS, Vilma, AGUIAR, Flavio (orgs.). Décio de Almeida Prado: um homem de teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

32 A passagem referida, já célebre entre os historiadores, ainda mantem sua validade teórico-

metodológica. Examinadas junto ao nosso objeto de pesquisa, as concepções de Certeau ganham força interpretativa ainda maior. Nas palavras do próprio autor, “o gesto que liga as ideias aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador. Compreender, para ele, é analisar em termos de produções localizáveis o material que cada método instaurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência”. A implicações desse posicionamento são pragmáticas: a construção de um modelo interpretativo (crítico ou historiográfico, no caso de Décio), encontra sua validade à medida que se torna possível o estabelecimento do lugar social onde são realizadas as produções de sentido no campo da intelectualidade. A tarefa do historiador é, portanto, inscrever no processo histórico as tessituras que envolvem essa operação. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2013, pp. 45-111.

Ao optarmos pela discussão acerca do papel de Décio de Almeida Prado na elaboração do projeto de modernidade para o teatro nacional, valer-nos-emos de recortes específicos dentro de um arcabouço maior de investigação, evitando, inicialmente, as tentações associadas aos perigos da ilusão biográfica33. Amiúde, ela permitir-nos-á organizar nossa investigação a partir de outro caminho, aqui entendido como essencial: em que medida as experiências e as expectativas de Décio de Almeida Prado foram fundamentais para sua formação intelectual e para sua atuação para a cena teatral brasileira? Quais embates travados no campo social foram responsáveis por aglutinar perspectivas que engendraram em torno de si a tônica teórica e artística de uma época? Em relação à modernização do teatro brasileiro, qual o peso do alinhamento de Décio de Almeida Prado no projeto cultural que guarda as marcas de sua geração?

Primeiramente, esse movimento realizará o estabelecimento do diálogo entre Décio de Almeida Prado e o seu tempo, evidenciando, no próprio processo histórico, as singularidades de sua trajetória. Para tal efeito, duas linhas mestras serão utilizadas por nós: a primeira, marcada pelo campo diacrônico, tomará de empréstimo as considerações feitas por Reinhart Koselleck sobre os conceitos de “experiência” e “expectativa34”; a segunda, pautada pelos aspectos sincrônicos, valer-se-á da noção de “campo intelectual35” empreendida por Pierre Bourdieu. Por se tratarem de conceitos

33 O perigo apontado por Bourdieu diz respeito à elaboração formal de um discurso narrativo que

pressupõe seu feitio a ordenação dos fatos em ordem meramente cronológica buscando, posteriormente, os sentidos e as conexões entre esses acontecimentos. O pressuposto ilusório, nesse caso, é a crença no continuum da vida localizado a partir das noções de início, meio e fim (entendido também como finalidade alcançada), o que erroneamente pode levar ideia da vida enquanto progresso permanente. A história (de vida, ou enquanto discurso narrativo sobre o passado) trata, ademais, não das linearidades a partir das suas relações de causa e efeito, mas sim das rupturas e descontinuidades existentes na experiência localizável no tempo. Cf. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: MORAES FERREIRA, Marieta de. AMADO, Janaina (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996, pp. 183-191.

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A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias. Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativas: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. de Wilma Patrícia Maas e Carlos Alberto Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, pp 309-310.

35 Para Sérgio Miceli, o conceito de “campo intelectual” elaborado por Bourdieu corresponde a

analíticos mais gerais e que adquirem significado somente quando aplicados à historicidade que é inerente ao objeto de pesquisa, acreditamos que tal recurso teórico-metodológico não acarretará prejuízos ao trabalho, pois não abordaremos ferramentas associadas ao anacronismo que comumente recai sobre o mau uso de posturas vinculadas à filosofia da história36. Ao longo do capítulo – e a partir das fontes utilizadas – o posicionamento por nós adotado mostrar-se-á pertinente às nossas intencionalidades, legitimando, assim, nossas escolhas.

Desse modo, pensar o papel de Décio de Almeida Prado em seu tempo estabelecerá o olhar estendido às experiências sob as quais o agente do processo histórico construiu seu aparato reflexivo. À luz da temporalidade inerente a esse aspecto, esse diálogo relaciona o passado localizável e legitimado à possibilidade de elaboração do futuro circunspecto pela consciência de suas intencionalidades. Para Koselleck, essa relação entre passado/futuro é verificável por meio da dialética entre o experimentado e as expetativas em torno daquilo que se apresenta ao longo das tomadas de posição possíveis, ou seja: “é a tensão entre experiência e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo surgir o tempo histórico”37. Adiante, essa perspectiva será fundamental para nos voltarmos para o projeto de modernização do teatro brasileiro no qual Décio estava inserido.

a que correspondiam classes de agentes providos de propriedades distintivas, portadores de um habitus, também socialmente constituído. O conceito basilar de "uma ciência rigorosa dos fatos intelectuais e artísticos" deveria permitir uma análise tríplice: primeiro, acerca da posição dos intelectuais e artistas na estrutura da classe dirigente; segundo, a respeito da concorrência interna entre as diversas categorias e grupos em torno da legitimidade cultural; terceiro, a construção do habitus como sistema de disposições socialmente constituídas de um grupo de agentes. Tais passos deveriam efetuar-se contanto que respeitassem a exigência de explicitar as margens de autonomia do campo intelectual, devido, bem entendido, às suas relações com o campo do poder”. Cf. MICELI, Sergio. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura. In: Tempo Social, v. 15, nº 1, São Paulo, Abril de 2003, p. 65.

36 A utilização das reflexões gestadas no campo da sociologia por historiadores é um hábito por vezes

frequente, uma vez que os objetos (guardadas as suas particularidades) possuem similitudes. Não é nossa intenção realizar aqui a discussão acerca das contribuições do campo sociológico para a história, embora seja necessário ressaltar as reflexões que autorizam as nossas escolhas. Nesse sentido, as considerações de Roger Chartier sobre essas aproximações são pertinentes, pois em nossa pesquisa se tornaram fundamentais. Especificamente sobre Bourdieu, Chartier aponta que “parece ser essa uma lição essencial do trabalho de Bourdieu: sempre pensar as relações que podem estar visíveis nas formas de coexistência, de sociabilidade, ou de relações entre indivíduos, ou ainda de relações mais abstratas, mais estruturais que organizam o campo – conceito essencial, nesse sentido – da produção estética, filosófica, cultural, num momento e num lugar dados. Os campos, segundo Bourdieu, tem suas próprias regras, princípios e hierarquias. São definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria delimitação e constituídos por redes de relações ou de oposições entre os atores sociais que são seus membros”. Para as nossas intenções, essas considerações serão fundamentais. Sobre o assunto, conferir: CHARTIER, Roger. Pierre Bourdieu e a história. Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 181-185.

37 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. de

A partir dessas premissas, é pertinente o exame das esferas sociais nas quais Décio de Almeida Prado estabeleceu sua formação como crítico teatral e historiador. Esses espaços foram importantes dentro do quadro de transformações sociais em que a ruptura com o passado instituído no campo das artes cobrou de uma geração – aquela em torno da formação da própria Universidade de São Paulo – o posicionamento capaz de superar, em termos intelectuais, a tradição observada tanto nos fazeres artísticos quanto em suas análises posteriores.

O campo intelectual é, portanto, o local de gestação das ideias em consonância com o interesses dos grupos sociais envolvidos na disputa pela legitimação de determinado crivo crítico. Segundo Bourdieu, esse olhar consiste em entender o campo intelectual da seguinte maneira:

[...] (por maior que seja sua autonomia, ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que ocupa no interior do campo do poder) como sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim como os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedade (socialmente construídas) de um tipo determinado. Tal passo é necessário para

que se possa indagar não como tal escritor chegou a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada época e sociedade deveriam ser do ponto de vista do habitus socialmente construído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao mesmo tempo, adotar tomadas de posição estéticas ou ideológicas objetivamente vinculadas a essas posições38 (grifo nosso).

Essas observações iniciais são valiosas, pois, ao longo de nossa pesquisa, tornou-se inevitável a reflexão sobre os espaços de circulação frequentados por Décio de Almeida Prado. O que emerge dessa escolha metodológica ressalta a participação ativa do crítico nos meios intelectuais que se converteram em importantes locais de produção e reflexão cultural no país, sobretudo, após 1930.

Com efeito, elegemos, a princípio, quatro núcleos de investigação para a articulação de nossos interesses. O primeiro diz respeito aos anos iniciais da formação de Décio de Almeida Prado, constituindo-se no primeiro contato mais próximo com os artistas e intelectuais modernistas de 1922, assim como sua presença no debate em torno do marxismo-leninismo/stalinismo que vigorava no período. É também nesse momento que suas relações pessoais com o amigo Paulo Emílio Sales Gomes possibilitam as primeiras incursões no campo da crítica de arte, sobretudo, após a

publicação da revista Movimento, em 1935. Resultado das pretensões de Paulo Emílio, o periódico se tornaria o ponto de diálogo entre os precursores da estética modernista e a nova geração de pretensos críticos que, embora estivessem dispostos a assinar a identidade de num novo movimento, não se furtaram do debate com seus antecessores.

O Segundo momento por nós elencado diz respeito aos anos de formação acadêmica de Décio de Almeida Prado. Integrante das primeiras turmas que frequentaram a recém-inaugurada Universidade de São Paulo, o historiador teve em sua formação o contato com os professores integrantes da chamada Missão Francesa. Responsáveis por criar o escopo teórico-metodológico que impregnaria a identidade dos cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLC-USP), esses docentes tornar-se-iam as bases iniciais da renovação da produção intelectual compartilhada por Décio de Almeida Prado. Essa matriz, portanto, repercutirá adiante nas escolhas tomadas pelo crítico.

O terceiro momento, embora mais curto, realiza um esboço sobre os primeiros aprofundamentos de Décio no ambiente teatral, seja como ator, seja como espectador privilegiado. Devido a uma série de viagens realizadas à Europa e aos Estados Unidos, foram-lhe apresentados os bastiões das concepções teatrais modernas no período. Nesse instante, o contato efetivado ainda pairava sob o olhar do espectador, mas o impacto das encenações deixariam referências em sua concepção sobre a cena teatral. Esse curto período de viagens (entre 1939 e 1941) seria uma espécie de interlúdio no processo de integração de Décio de Almeida Prado ao cenário do teatro brasileiro.

Por fim, esboçaremos a análise inicial da importância preconizada pela revista

Clima, periódico no qual Décio inicia sua carreira como crítico teatral. Fruto do

esforço de renovação da produção intelectual sobre a produção artística, o periódico seria responsável por firmar toda uma geração de críticos que ficaria marcada pela ruptura com os antigos padrões analíticos que até então vigoravam no Brasil. Vale ressaltar que a revista Clima possibilitou aos seus membros o pontapé para a consolidação de um espaço de atuação marcando a identidade de uma época pautada pelo ideário de modernização das práticas culturais e de suas respectivas críticas. Coube a Décio, nesse interim, o papel de fundamentar essa proposta no meio teatral.

Cabe-nos aqui uma última ressalva: dados os nossos interesses, optamos por analisar as estratégias de atuação de Décio de Almeida Prado como crítico teatral no

jornal O Estado de São Paulo (especificamente na seção referente ao Suplemento

Literário) e como professor na Universidade de São Paulo nos capítulos específicos

sobre sua produção crítica e historiográfica do autor. Esse movimento possui duas justificativas: primeiramente, acreditamos que o diálogo mais rente entre a produção de seus textos e seus espaços de elaboração serão mais eficientes para a averiguação de nossas hipóteses. A segunda justificativa é de ordem estrutural: devido a dimensão da discussão, incorreríamos no risco de apresentar um capítulo sobrecarregado e, ao mesmo tempo, superficial em relação às abordagens. Por esse motivo, pareceu-nos uma melhor alternativa para a realização do movimento dialético, integrando o campo intelectual à sua produção.