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Décio de Almeida Prado: um crítico em formação

IV. Primeiras impressões: o contato com Jouvet

As inclinações de Décio de Almeida Prado rumo ao teatro encontram suas raízes mais fecundas na sua formação acadêmica. Embora fosse frequentador de espetáculos desde sua infância (hábito herdado de seu pai), a sua participação efetiva dentro de das produções ocorreu durante os últimos anos de sua graduação. Convidado por Georges Raeders, à época professor de língua e literatura francesa e fundador do Teatro Universitário em 1936, Décio estrearia no teatro com a peça A

luva, de Júlio Dantas, encenação que complementava o programa ao lado de As preciosas ridículas, de Molière. Em 1939, embarca para uma viagem à Paris, onde

reencontra seu amigo de infância, Paulo Emílio Sales Gomes, que havia se exilado na França desde 1936. Durante sua estadia na capital francesa, Décio acompanhou com maior proximidade as encenações do chamado Cartel: Charles Dullin, Gaston Baty, Louis Jouvet e Georges Pitoëff, além dos espetáculos da companhia de Jacques Copeau e da Comédie Française. Junto a essas atividades, Décio assistiria ainda uma conferência ministrada Copeau que, segundo o próprio crítico, foi um dos primeiros contatos com a teoria teatral. Sobre a estadia em Paris, as seguintes afirmações foram feitas:

Na realidade eu não tinha formação teórica, mas tinha uma vantagem: eu havia estado na França em fins de 1938 e começo de 1939, uns seis meses antes da guerra. O Paulo Emilio estava morando lá e eu passei dois meses em Paris [...] Vi as companhias de teatro mais avançadas que existiam naquela época, o chamado Cartel do Jouvet, Dullin, Baty e Pitoëff. Vi as peças dos quatro grupos. Fora isso, vi muitas outras companhias, outros espetáculos. Vi também a Comédie Française. Enfim, vi bastante teatro, mas não pensava ainda em escrever para teatro, era apenas uma coisa diletante119.

Retornando ao Brasil, Décio tentaria sem sucesso a montagem de uma das peças que havia assistido em Paris. Com Lourival Gomes Machado, a intenção era a montagem de Asmodée, de François Maurilac, projeto abandonado ainda na fase de

119 BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice: Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro

tradução do texto teatral. Da iniciativa surgiria a aproximação com Gilda de Mello e Souza à época Gilda Moraes Rocha), Helena Gordo e, sobretudo, Antonio Candido, então aluno do curso de Sociologia da Universidade de São Paulo. Ainda em 1939, Décio atuaria no espetáculo Dona Branca, dirigida por Alfredo Mesquita sem, contudo, grandes repercussões.

Nos anos seguintes, Décio passaria uma curta temporada nos Estados Unidos, onde também acompanhou a cena teatral local. A menção, nesse caso, era sobre as grandes atrizes norte-americanas da época e que teriam lhe causado grande impacto. Ainda sobre o momento, o crítico destacaria que essa experiência teria lhe conferido um padrão visual e auditivo, em meio à ausência de aportes teóricos para a análise dos espetáculos. Continuando o seu rememorar, Décio afirma:

Eu vi, aliás, grandes atrizes, já formadas. Vi The Corn is

Green, do escritor Emlyn Williams, do País de Gales, com a

Ethel Barrymore, que era da famosa família Barrymore. Era uma mulher de uns 60 anos. Vi Twelfth Night, com a Helen Hayes, que era considerada uma das melhores atrizes americanas, e um ator shakespeariano, Maurice Evans. Você vê que marcou bastante, pois está na memória ainda. Vi um espetáculo com a Gertrude Lawrence, que era também uma grande atriz, e uma peça com a Katherine Cornell.[...] Então eu fiquei com um padrão cênico, vamos dizer assim, um padrão visual, um padrão também um pouco auditivo120. A apreciação estética, foi, de início, apenas superficial, sem incursões teóricas mais elaboradas. Embora essa constatação seja endossada pelo próprio crítico, os apontamentos sobre o teatro elaborado por Jouvet e Copeau como representantes da modernidade no teatro são significativas. Ao mesmo tempo, a temporada norte- americana conferiu às impressões de Décio um padrão normativo referente à atuação cênica que seria levado adiante em seus textos para a revista Clima.

De volta ao Brasil, as circunstâncias históricas se encarregaram de definir, em 1941, os rumos que a carreira de Décio de Almeida Prado. Primeiramente porque, devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial, a companhia de teatro encabeçada por Jouvet iniciaria sua estadia no Brasil, o que promoveu de imediato a oxigenação cultural da cena teatral paulista. A chegada da companhia francesa representou para a cidade a possibilidade de experimentar aquilo que havia de mais moderno na cena

teatral internacional. Até o momento, como afirmou o crítico121, o teatro produzido em São Paulo era rarefeito, contando com poucas encenações anuais e desprovida, na maioria das vezes, de profissionalismo nas montagens dos espetáculos. Em segundo lugar, a importância de Jouvet residiu na orientação que levaria Décio de Almeida Prado a trilhar os seus primeiros passos como crítico profissional, oxigenando também essa área de atuação. Dito de outra maneira, as concepções teatrais preteridas por Jouvet tornaram-se os catalizadores das mudanças que ocorreriam no teatro brasileiro, tanto em sua estrutura estética quanto nos aparatos de reflexão sobre a própria arte.

Diante desses motivos, a estrutura e o rigor das montagens de Jouvet marcariam profundamente o público paulista, trazendo à tona a peça bem-feita, o rigor das encenações e, sobretudo, as marcas que seriam encaradas como identitária do teatro moderno: a ruptura com o naturalismo e com o teatro de bulevar. Em seu lugar, emergiam a primazia do texto, a atuação do ator e o papel do diretor na manutenção da unidade cênica. Para Heloisa Pontes,

A temporada de Jouvet entre nós serviu, entre outras coisas, para mostrar que o trabalho do diretor é essencial para garantir a unidade, a coesão interna e a dinâmica da realização cênica — sem o que o espetáculo deixa de ser uma totalidade para aparecer como sobreposição de cenários e personagens, objetos e discursos, luzes e gestos. Verdadeira lição prática sobre a importância e a função desse profissional que fizera a sua entrada nos palcos europeus no final do século XIX e se introduzira no Brasil com um atraso de quase cinquenta anos. Jouvet, sem dúvida, deu o pontapé inicial nessa direção e ajudou, mesmo que indiretamente, a subverter a hierarquia de valores que sustentava o nosso panorama teatral, cujos espetáculos "organizavam-se por assim dizer das partes para o todo. Cada ator interpretava a seu modo o seu papel e daí resultava o conjunto — quando resultava. Depois de suas duas iluminadoras temporadas no Brasil, não havia mais lugar para comédias de costumes ou para 'fantasias' em forma de festa, tampouco para o desconhecimento do significado das palavras "mise-en-scène" e "metteuren-scène". Com ele, os mais aficionados pelas artes do espetáculo aprenderam a conhecer o teatro por dentro, para ver como um texto se transforma em mecanismo vivo122

Por hora, basta-nos destacar a importância da temporada de Jouvet no Brasil para a geração de Décio de Almeida Prado. Nos capítulos seguintes, retomaremos a influência teórica que o encenador francês imprimiu à crítica teatral nacional,

121

BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice: Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005, p. 299.

122 PONTES, HELOISA. Louis Jouvet e o nascimento da crítica e do teatro modernos no Brasil.

realizando uma análise mais acurada sobre essa questão. No que diz respeito, especificamente a Décio de Almeida Prado, o reencontro com Jouvet se deu a partir de sua estreia como crítico de arte na revista Clima. Seu primeiro artigo publicado no periódico foi exatamente sobre a temporada do diretor em São Paulo. O texto, mais do que uma análise profissional – fruto da formação acadêmica partilhada por Décio -, representou também o início da transformação que modernizaria a crítica teatral no país. Todavia, esse resultado fazia parte de um projeto mais amplo, que resguardava sua origem pelo menos três pontos fundamentais: a formação de uma nova intelectualidade nacional, a modernização da produção cultural e, por fim, a criação de um modus operandi capaz de analisar essas transformações sob um olhar científico.

Tal foram os esteios que alimentaram os anseios dos membros que compunham o grupo de Clima. Seus integrantes foram responsáveis por movimentarem todos os ditames relacionados com o ambiente artístico paulista e, assim como aprendido nas aulas dos professores franceses, redimensionaram o Brasil para o centro de suas discussões, ao passo que instituíram nessa empreitada as ferramentas teórico-metodológicas apreendidas nos anos de graduação. O impacto causado pelos textos elaborados em Clima não foram menores que aqueles preconizados por Jouvet. Resumia-se, assim, a síntese de uma época: o abandono das referencias tradicionais do passado e a consolidação de um marco geracional ávido por delimitar o seu lugar na sociedade.