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2 GÍCIA AMORIM: TRAJETÓRIAS E SABERES EM UM

2.3 BREVES NOTAS SOBRE MERCE CUNNINGHAM

Antes de apresentar os detalhes realizados por Gícia Amorim no desenvolvimento do Projeto Cunningham, faz-se necessário, neste momento, trazer mais características relativas ao trabalho desenvolvido por Cunningham, cuja proposta se fez presente, de alguma maneira, nos diversos lugares e momentos

da história da dança e em suas intersecções com outros campos. Um mergulho em todos os aspectos que compõem sua proposta não será aqui possível, mas serão pontuados os aspectos de maior relevância para esta pesquisa, além de se buscar apresentar um panorama geral da trajetória de Cunningham, dada sua fundamental importância neste estudo.

Nas primeiras décadas de sua vida, o contato com a arte se deu através de aulas de sapateado e de teatro. Ele inclusive entrou para a faculdade de teatro, mas logo abandonou para dedicar-se à dança. Foi nesse período que Cunningham conheceu John Cage (1912 - 1992) que depois viria a ser influência fundamental em seu trabalho. John Cage foi um artista de extrema importância para a história da arte, tendo relevância no que se refere à composição, à performance e principalmente à música.

Procurando lidar com a totalidade do campo sonoro, Cage partia da ideia de que todos os ruídos – e também o silêncio - poderiam ser considerados música. As teorias de Cage estavam relacionadas com a apreciação que ele tinha pelo Zen Budismo. Conforme ele mesmo comentou na abertura de um evento – Untitled Event - no Black Mountain College, em 1952:

No Zen-Budismo nada é bom ou mau. Ou feio ou belo... A arte não deve ser diferente [da] vida, mas uma ação dentro da vida. Como tudo na vida, com seus acidentes e acasos e diversidade e desordem e belezas não mais que fugazes” (CAGE apud GOLDBERG, 2006, p. 116).

O uso da indeterminação, do acaso, na sua música experimental, permitia maior flexibilidade, mutabilidade, e também levava à uma música “não-intencional”. Cunningham levou para a dança essa ideia de utilização de processos aleatórios como meio de chegar a uma prática diferente, da mesma forma como Cage fazia na música. Cage considerava qualquer som não apenas como efeito sonoro, mas como música, assim como Cunningham considerava qualquer movimento humano, como os atos de andar, saltar e todos os outros, como dança.

Em 1939, Cunningham começou a participar da Companhia de Martha Graham (1894 – 1991), onde permaneceu até 1945, sendo o solista principal da Companhia. A proposta de Graham caracterizava-se por uma intensa dramaticidade, através de movimentações e composições que remetiam a um retorno ao primitivismo, de modo a entender a natureza e função da dança como a mais antiga das artes, colocando em foco a dança relacionada com as questões da alma humana, da espiritualidade. Sobre a proposta de Graham, Roger Copeland comenta que:

ela acreditava que a dança moderna podia reestabelecer contato com aquelas antigas, naturais e míticas energias que (presumidamente) ficam adormecidas sob a superfície da cultura contemporânea. (COPELAND, 2004, p. 12, tradução nossa)19. Mas Cunningham optou por não trabalhar a partir dessa dramaticidade que Graham desenvolvia, escolhendo seguir justamente na direção oposta. Conforme expõe Eliana Rodrigues Silva, logo após sair da Companhia de Martha Graham, ele começa a trabalhar “com manipulações do movimento sem o compromisso com o enredo, com a caracterização de personagens ou com a dramaticidade” (Silva, 2005, p. 105). Através do estabelecimento de suas próprias ideias em relação ao movimento, à dança, à composição coreográfica, Cunningham

segue então seu trabalho, realizando suas experimentações20 em

uma trajetória que pode ser analisada a partir de quatro

eventos,21 ou seja, quatro momentos em que determinadas

      

19 Tradução nossa: “she believed that modern dance can reestablish contact with those ancient, natural and mythic energies that (presumably) lie dormant beneath the surface of contemporary culture”.

20 No ano de 1947, já estava desenvolvendo seu método e montou sua própria escola. Em 1953 fundou sua Companhia (Merce Cunningham Dance Company).

21 Essa divisão foi feita pelo próprio Cunningham, em uma carta escrita por ele, que pode ser encontrada em: SANTANA, Ivani. Corpo aberto: Cunningham, dança e novas tecnologias. São Paulo: Educ, 2002. (p. 62–64).

características vão sendo inseridas e experimentadas em sua proposta.

No final dos anos 1940, Cage e Cunningham já estavam trabalhando juntos e o primeiro evento já está inserido na sua proposta e começa a ser desenvolvido: a independência entre música e dança. Conforme comenta Rosana van Langendonck:

foram criadas estruturas de tempo em forma de módulos de comprimento de tempo, para que dança e música pudessem acontecer no mesmo tempo e lugar sem uma relação de apoio ou sustentação entre elas (LANGENDONCK, 2004, p. 19).

Os bailarinos não ensaiavam com o acompanhamento da música que estaria no espetáculo, em algumas vezes, sequer sabiam qual seria essa música; desta maneira, o ritmo vinha da própria natureza e das características do movimento. Essa ideia de independência também se estendeu para a composição dos cenários, figurinos e iluminação.

O segundo evento ocorreu a partir da década de 1950, quando Cunningham começou a utilizar o acaso como uma ferramenta para a construção coreográfica. Ele utilizava-se de jogos de azar que decidiam qual movimento iria suceder o outro, de que forma ele seria realizado no espaço. É interessante pensar o quanto o uso do acaso pode proporcionar composições inimagináveis, pois mesmo que possam existir infinitas possibilidades de composição de movimentos, o ser humano só é capaz de recorrer a um número finito de possibilidades. Conforme comenta Annie Suquet:

Cunningham utiliza, com efeito, sorteios para desconstruir a ‘maneira intuitiva cujo movimento é proporcionado pelo corpo’. Ele põe de certo modo ‘a assinatura corporal’ à prova, procurando conseguir desviar os movimentos da sua propensão a se organizar sempre segundo as mesmas escolhas inconscientes. As neurociências atuais confirmam essa intuição de Cunningham. (SUQUET apud CORBIN; COURTINE e VIGARELLO, 2008, p. 531).

Essa ideia de aleatoriedade que se faz presente nas composições de Cunningham vem de sua observação em relação à própria aleatoriedade da natureza, da vida, onde várias coisas acontecem ao mesmo tempo, ao acaso, e às vezes, umas coisas afetam as outras, provocando acontecimentos. Conforme comenta Roger Copeland, no que se refere àquilo que o movimento pode oferecer: “o que ele nos oferece ao invés disso [de nos dar histórias] é a densa textura espacial e rítmica incorporada na vida urbana em simultâneos acontecimentos”

(COPELAND, 2004, p. 13, tradução nossa)22.

Na década de 1970, Cunningham percebeu, em relação ao espaço da tela de vídeo, que este

tinha grandes limitações, comparado com o palco, mas que oferecia novas possibilidades de mostrar o movimento, com diferentes tipos de apreensão temporal e com novas nuances de detalhes” (AMORIM; QUEIROZ, 2000, p. 90-91).

Assim, surge então o terceiro evento: ele começou a produzir coreografias especificamente para o vídeo. É possível perceber nessas coreografias determinadas nuances que fazem com que a coreografia seja vista de modo diferente a cada detalhe, através, por exemplo, de um close, ou de um plano que destaque certo bailarino e tire de cena outro; a coreografia vai constantemente proporcionando novas configurações.

Ainda dentro deste campo da tecnologia, na década de 1990, Cunningham foi mais longe, realizando aquele que foi seu quarto evento: a criação de coreografias a partir de um programa de computador. Através do software Life Forms - hoje chamado Dance Forms - que reproduz a movimentação do corpo humano (através de sensores colocados nos corpos dos bailarinos, as informações dos movimentos são enviadas ao programa), Cunningham buscou ampliar ainda mais a investigação das diversas maneiras de organizar o movimento, pois este programa       

22 Tradução nossa: “What he offers us instead [give us stories] is the dense spatial and rhythmic texture of urban life embodied in simultaneous occurrences”.

permite a observação dos movimentos a partir de ângulos, velocidades e formas que seriam impossíveis se não fosse o auxílio do software. Ele também aplicou as operações de acaso para criar suas coreografias neste programa de computador.

Esses quatro eventos foram constituindo uma proposta cujo foco principal é investigar e experimentar as diversas possibilidades do movimento humano. Movimento este que, para Cunningham, já é o próprio sentido da dança. Vale ressaltar sua significativa contribuição em relação a uma revisão da noção de composição, no sentido de fazer com que diversas questões fossem repensadas ou, ao menos, abordadas de maneiras diferentes, provocando reconfigurações no entendimento da composição coreográfica.

Muitos são os termos que poderiam estar inseridos quando se trata de abordar a expressão “composição coreográfica”, como: combinação de elementos, processo unificador, sistema de relações significativas, concordância de elementos, lógica de movimentos, dentre outros infinitos termos que poderiam ser aqui citados. Paulo Paixão lembra que:

a palavra coreografia se estabeleceu no vocabulário da dança no início do século XVIII, se referia a um sistema de notação da dança. Aos poucos essa palavra foi ganhando novos sentidos até chegar à atual acepção que se refere à escrita do movimento do corpo no tempo e no espaço. (PAIXÃO, 2011, p. 209).

José Gil observa a utilização do termo “nexo” como quase sempre presente nas definições de coreografia. Ele diz que, a exemplo do que ocorre em todas as definições no mundo da arte, a definição de coreografia:

põe imediatamente múltiplos problemas: parece, todavia, que em todos os casos que se apresentam (nomeadamente na dança contemporânea), não há coreografia sem um nexo. (GIL, 2004, p. 67).

A partir dessas colocações, podem ser trazidos a esse debate alguns elementos propostos por Cunningham que

colocam em discussão a noção de nexo como uma possível chave de entendimento das obras do artista.

A partir de três características já citadas da proposta cunninghamniana, como: a rejeição da narrativa, o uso do acaso como recurso para compor suas coreografias e a independência entre música, dança e outros elementos, já se pode pensar em como poderia ser possível a existência de algum tipo de nexo, a

partir dessas opções de criação coreográfica. O nexo aqui

exposto não está relacionado a uma busca por significação antecipada, mas pode estar relacionado a uma “continuidade de fundo”.

Gil fala que as séries de movimentos inicialmente divergentes utilizadas por Cunningham:

entram numa mesma continuidade de fundo composto pelo próprio ritmo da divergência que as separa; e que se intensificou, autonomizando mais cada uma das séries” (GIL, 2004, p. 70-71)23.

Ele ainda comenta que: “séries diferentes ou divergentes de gestos efetuados pelo mesmo corpo num tempo único acabam por ‘se integrar’” (2004, p. 69). A “integração” traz uma ideia de co-funcionamento, de co-existência, sem que haja, necessariamente, uma necessidade de convergência de significados entre os diversos elementos e/ou movimentos, ou de significações dadas antecipadamente.

Procurar entender o que vem a ser coreografia é, ao mesmo tempo, procurar perceber que este é um fenômeno que precisa estar - e está - em constante evolução e transformação. E isso ocorre principalmente devido ao fato de que a produção em dança é composta de diversos procedimentos criativos extremamente diferentes uns dos outros. A proposta de Merce Cunningham provocou um debate e uma certa desestabilização do que se entendia – e se entende - por composição coreográfica. É possível perceber que, de diversas formas, a

      

23 José Gil desenvolve uma análise sobre a problematização acerca do nexo coreográfico no trabalho de Cunningham, em sua obra: “Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004”.

dança na contemporaneidade está impregnada de seus elementos.

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