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BRICOLAR NARRATIVAS

No documento Casa/Dispositivo Malévolo/Movimento (páginas 32-35)

Fig. 18 Narrativas

22 EYCK, Op. cit., p. 67. 23 APARICIO, Op. cit., p. 62.

A estância anterior deixou aberta uma possível contradição sobre conceito de conti-

nuidade espacial que tentámos formular. Se, por um lado, falamos do movimento e do percurso como ferramentas que desvendam a continuidade do espaço experienciado,

por outro, também introduzimos a ideia de que essas construções iniciam um processo de transformação dos espaços em lugares e, portanto, começando a manipular essa qualidade contínua do espaço numa massa mais heterogénea [‹‹(...) Place is the appre-

ciation of space, that is how I see it ›› 22].

Foquemo-nos, para já, no fenómeno dos trajectos para atestarmos esta afirmação. Suponhamos que um sujeito necessita ir desde o local a a b, sem restrição de tempo, num dia soalheiro: tomará um autocarro que efectua um trajecto de 20 minutos, durante o qual escolhe ler um livro; caminhará durante 10 minutos por um parque público, onde efectua uma paragem de 3 minutos para escutar um artista de rua; acelerará a marcha ao passar sob o viaduto; voltará a abrandar ao passar em frente das montras das lojas, onde atentará em alguns artigos e no seu preço; finalmente, chega- rá à localização b. Este exemplo prova-nos que os trajectos são passíveis de deformar as percepções de tempo e de espaço, ajudando-nos a construir os nossos espaços de interesse, de fruição, aqueles que nos ameaçam, aqueles que geram desconforto e, portanto, manifestáveis em momentos aparentemente isolados uns dos outros (a um sucede-se outro, o seu início e o seu fim, para nós, bem precisos). A continuidade do

espaço é aqui ameaçada pelo surgimento das escalas de valor e demora (já introdu-

zidas em “Construir Escalas”) que o deformam em função do sujeito que o pratica. E a

marcha, tal como o discurso – produzindo ampliações ou contracções, coisas estáticas e

coisas fugazes – talvez nos leve sempre a desvios que nos impedem de confrontar um espaço objectivamente:

‹‹Si la línea recta es la más breve entre dos puntos, las digresiones alargan la distancia entre estos dos puntos produciendo además un acercamiento por la implicación que provoca en el lector. Es de nuevo, una distancia que aleja y acerca: al aplazar la conclusión, se abre un espacio hacia nuestro mundo personal donde nos empezamos a implicar con lo narrado, con lo visto… este aplazamiento de lo esperado que se supone va a aparecer de un momento a otro, provoca poros y fisuras que permiten que nos introduzcamos allí, y desde ese límite, sentirnos protagonistas de lo narrado, provocando así el acercamiento tan deseado.›› 23 Chamamos para este capítulo “L’Invention Du Quotidien”, onde Michel de Certeau nos fala dos trajectos e dos discursos como possibilidade de tecer narrativas, mecanis- mos que nos permitem articular diferentes tempos e lugares em função das nossas necessidades, vivências, afectos, memórias, biografia...

Em “Percorrer a Continuidade“ já nos referimos a esta obra para mostrar que o per-

curso é um modo de depositar significado subjectivo no espaço, transformando-o. De

igual modo, também permite ao sujeito inserir-se nele, fornecendo-lhe a ilusão de, em qualquer lado, poder encontrar um fragmento que lhe pertence. Construir narrativas,

33 pelo gesto e pelo discurso, é pois um modo de apropriação de um espaço que existe

previamente a nós:

‹‹(...) Sur deux modes distincts, l’un tactique et l’autre linguistique, les gestes et les récits manipulent les objets, ils les déplacent, ils en modifient les répartitions et les emplois. Ce sont des ‘bricolages’ (...)›› 24

Aqui, interessa-nos falar dessas construções dinâmicas enquanto fenómenos tra- balháveis e comunicáveis. As narrativas são, segundo Certeau, um modo de trabalhar sobre um contexto, garantindo ao sujeito a liberdade da bricolagem com o espaço comum. É ele que escolhe o que deixa de fora e o que acolhe; é ele que sabe onde incidem os seus afectos; é ele que dilata os tempos e retalha as memórias. As narrati-

vas da marcha e do discurso são, como tal, um modo de representação do sujeito que,

do espaço comum, assim negoceia a sua parcela:

‹‹[...] les récits quotidiens racontent ce que, malgré tout, on peut y fabriquer et en faire. Ce sont des factures d’espace.›› 25

A ligação de lugares desconexos através da praticabilidade do espaço e do recurso à memória resulta na renomeação e requalificação do espaço conhecido, aberto ao acolhimento de significados individuais. É por isto que se verificam fenómenos de não- correspondência de significados quando falamos de um mesmo espaço a propósito de diferentes sujeitos: a Rua X é a rua onde mora o sujeito A; é uma rua desconhecida, para o B; é a ameaçadora rua onde foi assaltado C; é uma rua feia, segundo D; é onde

E vai às compras.

Isto demonstra que a especificidade da narrativa de um sujeito particular nunca poderá ser completamente apreendida por outro qualquer sujeito, apesar de – isso sim – os espaços em causa se lhe tornarem reconhecíveis e os fenómenos suplemen- tares lhe poderem ser comunicados: “Já foste a casa do primo da Ana?”, “Aquela ao

lado do café? ”. É, talvez, nesses acrescentos mais ou menos ordenados, mais ou menos

factuais, mais ou menos relevantes, que o sujeito carimba a sua marca, tornando a sua

narrativa identificável como tal. Olívia de Oliveira escreve o seguinte no seu livro sobre

Lina Bo Bardi:

‹‹Como se se rebelasse contra o ocorrido, o sujeito, ao narrar, não se limita apenas a ordenar os fatos, mas recolhe também material novo de outros terrenos que não são os da reali- dade – leituras, sonhos, invenções – com o qual molda e enriquece sua história. Quem narra sempre o faz a partir de uma incomunicação experimentada, mas a narração é, antes de tudo, uma empresa lúdica […]. O contar traz em si uma idéia de sobrevivência: ele é também uma forma de esconjuro.›› 26

BRICOLAR NARRATIVAS

24 CERTEAU, 1994, Op. cit., p. 201. 25 CERTEAU, GIARD, MAYOL, 1990, pp. 179-180.

26 OLIVEIRA, Olívia de, Lina Bo Bardi — Sutis

substâncias de arquitectura, Gustavo Gili, São Paulo, 2006, p. 21.

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A narrativa é, plenamente, um acto inventivo: pode fazer uso do factual, do ausente, da sugestão, da lembrança; vai acumulando mais informação; é suscitada por determinada necessidade; é, depois, readaptada a outra circunstância; é repetida e passa a lenda. As narrativas guardam o sujeito no espaço e guardam os lugares no

sujeito. O habitar precisa delas:

‹‹(...) Habiter, c’est narrativiser.›› 27

Da constatação desta subjectividade como valor fundamental das narrativas é, pois, necessário reconhecer que vigora uma lei de relatividade entre os fragmentos que as compõem: por exemplo, o sujeito A cumpre o trajecto de a a b para se deslocar ao trabalho, no qual percorre uma parte a pé, outra de autocarro e outra, novamente, a pé. Nesse trajecto, a parte que lhe parece mais demorada é a que faz no autocarro, porque nunca consegue assento. O sujeito A não gosta de andar de autocarro. Cumprindo o mesmo trajecto que o sujeito A, o sujeito B prefere, precisamente a parte do autocar- ro, onde encontra os seus colegas de trabalho com quem fala durante a duração do percurso. Para o sujeito B, o trajecto que parece mais curto é o que diz respeito ao do autocarro. Ao contrário de A, o sujeito B gosta de andar de autocarro.

Fica evidente que o espaço é uma entidade complexa que entrecruza várias camadas de informação de múltiplos sujeitos que, de algum modo, nas narrativas, encontram um modo singelo e sempre (sempre!) válido de se reconhecer, de se segu- rar naquilo que é – talvez por força de uma revolução tecnológica – um território cada vez mais instável. As construções das narrativas aceitam, pois, qualidades negociadas do espaço. De alguns fragmentos, originam situações simplificadas ou mais comple- xas, nunca finalizadas. A sua leveza contrapõe-se com o peso da sua matéria-prima e asseguram a portabilidade do espaço subjectivo. São, talvez, estas bricolagens que nos aproximam verdadeiramente dos espaços, já depois de nos posicionarmos relati- vamente a eles: delas surgem lugares humanizados, comunicáveis, pertencentes a alguém; esses espaços que – na falta de melhor nome – podemos chamar de “hospita-

leiros”:

‹‹Les histoires sans paroles de la marche, de l’habillement, de l’habitat ou de la cuisine tra- vaillent les quartiers avec des absences; elles y tracent des mémoires qui n’ont plus de lieu – des enfances, des traditions généalogiques, des événements sans date. Tel est aussi le ‘tra- vail’ des récits urbains. Dans les cafés, dans les bureaux, dans les immeubles, ils insinuent des espaces différents. Ils ajoutent à la ville visible les ‘villes invisibles’ dont parlait Calvino. Avec le vocabulaire des objets et des mots bien connus, ils créent une autre dimension, tour à tour fantastique et délinquante, redoutable ou légitimant. De ce fait, ils rendent la ville ‘croyable’, ils l’affectent d’une profondeur inconnue à inventorier, ils l’ouvrent à des voyages. Ce sont les clés de la ville: ils donnent accès à ce qu’elle est, mythique.›› 28

27 CERTEAU, 1994, Op. cit., p. 203. 28 Ibidem., p. 202.

35 BRICOLAR NARRATIVAS + HABITAR EM TRÂNSITO

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