189 Apercebemo-nos que é impossível falar de casa sem falar de movimento. As distân-
cias funcionam como início das relações do sujeito com tudo aquilo que o rodeia; as escalas posicionam-no num contexto que quer assimilar; a continuidade permite-lhe
mudar de contexto sempre que queira; por fim, as narrativas impelem-no a elaborar sobre os diferentes espaços de que se torna "detentor", justapondo-os, deformando-os, eliminando-os, manipulando-os conforme a sua conveniência. Habitar não é pois algo que se possa fazer estaticamente e a estância “Habitar em Trânsito“ fala-nos disso, pro- vando-nos, através dos fenómenos de pendularidade, genealogia e abandono, que as nossas casas (entidades referenciais compostas de fragmentos de casas) são verdadei- ramente inquietas e em constante movimentação, no sentido físico e no sentido figura- do. Em todos os espectros de casas que possamos vir a reconhecer há duas constantes que são exploradas de distintas formas: a constante da permanência (que define os tempos e as durações durante as quais essa casa é válida) e a constante da acumulação (segundo a qual se reconhecem as permanências e se inferem as possibilidades de portabilidade da casa). Considerando os extremos opostos das escalas de permanência e acumulação, fomos verificar alguns – chamemos-lhes – "episódios de casas" (“Cir-
cunstâncias de Estudo – Narrativas”) nos quais exploramos os vários aspectos pelos
quais diferentes casas manifestam a sua familiaridade e quais as suas componentes que se tornam mais expressivas na definição da essência do seu carácter hospitaleiro.
Tendo em conta o exposto, verificamos, seguidamente, que existe uma diferença entre a casa e o invólucro, este último fornecendo a condição, facultando a ferramenta e inaugurando o processo de acolhimento da primeira. Chamámos-lhe Dispositivo
Malévolo, essa vertente material do habitar que se submete constantemente às acções
– ao movimento – do habitante e que é a “matéria” do habitar que se quer animar, personalizar, humanizar. Nesses processos de apropriação, o invólucro tem de lidar com a ambiguidade e instabilidade da vida e, como tal, pode representar o princípio de uma resposta mais ou menos certeira a alguns problemas ou necessidades que se queiram mitigar (um viajante precisa de um tecto, um coleccionador precisa de um
arquivo...). Há respostas que respondem, há respostas que contradizem, há respostas que levantam outras perguntas. Mas todas servem para acolher essas inúmeras movi-
mentações circunscritas a um centro que representa uma tentativa de inauguração de
interioridade, vinculada à ideia de intimidade onde se dá o habitar.
O momento em que nos damos conta destes fenómenos de intimidade é também o momento em que acedemos a invólucros que não nos pertencem e onde começa, pois, uma transferência de signos de interioridade que convidam à curiosidade. Ao contrário das nossas casas, onde nos circunscrevemos, estas vivem-se da negociação da distância relativamente a nós, sujeitos externos a elas. Guiados por essa ânsia de tentar perceber, afinal, o que é que tem uma casa que nos convida a querer habitar a sua
impossibilidade de ser nossa, decidimos explorar algumas destas situações, reportan-
do-nos a duas distintas ordens de casas: umas mais palpáveis, outras menos. Chegamos, pois, a este momento final, motivado por um desafio que se nos colo- cou: será que essa distância negociada é mesmo impossível de habitar?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Fig. 130
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce,
1080 Bruxelles, Chantal Akerman, 1975. Estamos dentro. Controlamos o espaço. As distâncias e disposições são calculadas. Jeanne Dielman, no primeiro dia, demonstra total controlo sobre o seu pequeno cosmos imperturbável, sobre as acções de que ele dependem. Percebemos vagamente a casa (no final do filme, já sabemos distribuir as divisões ao longo desse corredor que Jeanne constantemente atravessa), mas das janelas só vem a luz que indica vagamente que hora será (uma vez apenas Jeanne sai a uma varanda que não tínhamos notado antes; subimos sempre pelo elevador mas nunca vemos a fachada do edifício). E, no entanto, entendemos que é um lar e isso é suficiente para aceitarmos a narrativa. O enredo é-nos comunicado silenciosamente através das acções que irão ou não perturbar o interior doméstico desta casa. O enredo subentende-se, não é contado.
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Fig. 131
Overexposed, video-performance, Diller
Scofidio + Renfro, 1995. Estamos “dentro” fora. A ficção é, agora, do espectador ou do narrador. O ecrã de uma câmara é substituído pela transparência de um vidro, expondo com mais frieza esse fosso da distância entre observador e observado. A nossa liberdade narrativa faz-se pelo constrangimento de quem, inevitavelmente, se deixa expôr. Mas a nossa objectividade protege-nos; talvez proteja também quem está do lado de lá. A interioridade narrada não é acolhedora e buscar as evidências desse interior parece, consequentemente, defraudar algo que não é nosso.
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Fig. 132
Mon Oncle, Jacques Tati, 1958. Estamos fora. As janelas são agora distintas umas das outras: umas abrem-se outras fecham-se e cada uma à sua maneira. Seguimos o percurso de uma personagem enquanto vamos adivinhando umas escadas, umas passagens, uns corredores. Meandra-se para chegar ao destino e a casa não nos é clara. E apesar de vermos roupa a secar num estendal, de ouvirmos crianças a brincar, de vermos vasos à janela, a distância a respeito da interioridade de quem ali habita é, porventura, mais bem guardada pela acção indecisa desse espaço diferencial que não consegue ser objectivo. Queremos ser convidados a entrar, também nós, mas não podemos.
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Queremos ser convidados a entr ar, também nós,
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Fig. 133
Centraal Beheer, Apeldoorn, Holanda,
Herman Hertzberger, 1969-72. Não sabemos bem se estamos “fora” ou “dentro”. O vidro dos escrãs e das janelas desapareceu e é substituído por algo semelhante a varandas interiores que definem o espaço individual de cada escritório. A repetição de um mesmo módulo assim aberto permite a compatibilização de espaços, não apenas daqueles que são contíguos, mas também daqueles que se manifestam mais longe, talvez até alguns pisos abaixo, e que se podem observar desde a nossa pequena e acolhedora varanda. Neste edifício que quer ser uma rua, comunica-se. Não apenas pelos intercâmbios visuais motivados pelas varandas, mas também pela possibilidade de apropriação que elas possibilitam. Oportunidade de conhecimento e expressão individual.
módulo assim aberto permite a compatibilização de espaços, não apenas daqueles que são contíguos, mas também
daqueles que se manifestam mais longe, talvez até alguns pisos abaix o, e que se podem observar desde a nos
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visuais motivados pelas varandas, mas também pela possibilidade de apr
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de conhecimento e expr essão individual.
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Fig. 134
Casa em Avenida Ecuador, Valparaíso, Chile,
2015. Estamos claramente “fora”. Esta janela lembra-nos as janelas de Mon Oncle; esta varanda lembra-nos as tentativas de apropriações de Centraal Beheer. Mas o carácter doméstico desta casa anónima não nos permite deambular por ela (uma varanda e uma porta, nada mais). Como se se escondesse ao cimo da Avenida Ecuador, ligeiramente elevada em relação à estrada, atrás de um muro de vegetação doméstica e sombreada pelo cerro atrás de si, esta pequena casa silenciosa resguarda-se atrás da sua expressividade e, nela, funda um muro quase impenetrável e acolhedor, apesar do aspecto frágil da sua estrutura. As paredes grafitadas relembram o limite entre a “fortaleza doméstica” e o espaço público. Mas como transpô-la? Como habitar esta pequena casa habitada?
(uma varanda e uma porta, nada mais). Como se se escondes
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