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A brincadeira de roda, o pique, o chicotinho queimado: o brincar como expressão da

A criança

A criança é a alegria do lar

As casas que não têem crianças são muito tristes e quietas. A minha casa é muito alegre porque tem 3 crianças comigo quatro. Os meus três irmãozinhos são muito alegres e espertos e põem a casa numa alegria sem fim. Gosto muito de crianças338.

335 CORSARO, 2002, p. 112. 336 CORSARO, 2002. 337 CORSARO, 2002.

Nessa história, a infância é descrita como caracterizada pela alegria.em contraposição à seriedade do adulto. Para Veiga339, um dos elementos estruturantes da

construção da infância na modernidade foi a difusão das formas de tratamento da criança distintas do adulto.

Para a autora, a relação do adulto com a criança “[...] esteve associada à produção de lugares específicos, à ela destinado, à produção de novas relações de autoridade e à elaboração de novas formas de comportamento”. Tal aspecto se destaca em algumas composições, em que as crianças expressam uma visão idealizada da infância, na interação com as representações produzidas pelo adulto em relação ao mundo infantil.

Além das questões relacionadas aos papéis assumidos pelas crianças, há outras passagens que remetem ao ideário infantil. A composição de Rosa Marques sinaliza para a comemoração do dia da criança, data instituída em 1924, como ação destinada ao cultivo da infância, bem como a distinção das sensibilidades e dos papéis sociais infantis e adultos.

O dia da criança

O dia 12 de outubro é um grande dia para nós, é o dia das crianças. Quando estão pequeninas suas mães tratam-nas tão bem e com tanto carinho. E por isso, quando crescemos devemos tratar nossos pais com carinho e também não devemos desobedecê-los e nem fazer mal criações e travessuras, e sim pedir a Deus, para que eles sejam felizes e nós obedientes e boazinhas340.

Gouvêa e Veiga341 analisam como as comemorações do dia da criança estiveram

associadas à difusão de um ideário, nas primeiras décadas do século XX, em que “comemorar a infância” se tornou uma “[...] performance da educação estético-cívica” disseminador de um modelo pedagógico de desenvolvimento das sensibilidades através da educação dos sentidos e como prática normatizadora e disciplinadora da infância.

Assim, as comemorações da criança tomavam proporções em diversos espaços, em Carangola, no início dos anos 50 do século passado, os festejos aconteciam durante toda a semana, com uma programação de palestras proferidas por diferentes especialistas da saúde através da emissora da rádio local. Nesse mesmo exemplar aparece divulgado a iniciativa dos proprietários do cinema da cidade em um anúncio na seção relativo à educação.

339 VEIGA, 2004, p.36-37.

340 Composição de Rosa Marques, A.39\1945. 341 GOUVÊA;VEIGA, 2000.

A semana da criança e um gesto simpático do Cine –Brasil

Associando-se às comemorações da semana da criança, a Empreza proprietária do Cine-Brasil, num gesto de cativante simpatia, dedicará a sessão das 13 horas da 2ª feira próxima, à gurizada do Grupo Escolar Melo Viana.

Cabe salientar que a sessão de cinema destinava-se não às crianças do município, mas aos alunos do Grupo Escolar Melo Viana. As crianças não inseridas na escola, ou os alunos das escolas isoladas se viam excluídos da comemoração, voltada para a celebração de uma criança, o aluno dos Grupos Escolares. Era a comemoração da infância escolarizada.

A família e a escola também eram chamadas a participar de um grande movimento em torno da celebração da criança. Durante essa semana os colégios, de maneira geral, proporcionavam uma farta merenda aos alunos e promoviam jogos e brincadeiras em uma programação diversificada que conciliava o lúdico e o educativo.

Nas histórias das composições fica claramente demonstrado como o brincar e as brincadeiras se apresentam como elemento de inserção da criança em espaços e aprendizagens sociais. As crianças se organizam como um grupo que demarca as relações entre os pares e as rotinas coletivas; brincam e a brincadeira surge como ação livre que estrutura esse contexto. Essas são oportunidades de encontros, fazer amigos e legitimar o reconhecimento da infância como uma fase geracional mediada pela instituição escolar. A narrativa de Marília Imbelloni inscreve o espaço de sociabilidades em que esse sujeito se situa e faz referência ao universo relativo à categoria infância.

Cara amiga Cecília

Agradeço-lhe aquêle convite que me enviou pela festa do seu aniversário.Você foi muito amável comigo, brincamos de roda, de pique, de chicotinho queimado etc

Gostei intensamente da festa. Por hoje é só. Um abraço de sua colega que nunca a esquece,

Marília Imbelloni

Em outro texto a aluna projeta a tensão que se instala entre a possibilidade de brincar, de se envolver com as parcerias na rua e a projeção de papéis adultos342: “[...] 342 O brincar das crianças e a ludicidade assumem papéis fundamentais na recriação do mundo e na

produção das fantasias infantis. São elementos fundacionais das culturas da infância e definem maneiras de interpretar e assimilar os objetos, a cultura, as relações e os afetos das pessoas. Mais dados, deve-se

Na rua umas meninas brincavam de roda, cantando. Sua irmãzinha entrou correndo, chamando-a para brincar também. Ela disse: ─ Psiu...Psiu...Não faça barulho, minha filhinha dormiu agora”.

A aluna Emília Rita Fraga Pinheiro demonstra através de sua escrita, a introjeção de papéis sociais na execução da função materna: “[...] Numa fazenda havia uma menina que possuía uma boneca. ─ Eu acho que a minha boneca está com febre. Vou pôr o termômetro. Ela está com 39 graus de febre. Vou chamar o doutor. Ele já vem343”. A composição mostra o processo de socialização e de preparação da menina para a atuação de papéis definidos culturalmente na associação função feminina\ papel maternidade.

Outro elemento presente nas narrativas era a aprendizagem dos lugares sociais ligados ao gênero. Havia um conjunto de descrições em que eram incorporados valores e padrões de comportamentos esperados pela sociedade, esses valores e padrões de comportamento revelavam a percepção das crianças para as distinções impostas e/ou instituídas pela cultura.

O processo de socialização e de preparação da menina para a realização dos afazeres domésticos aparece na escrita de Rute Marques: “[...] Hoje o tempo está chuvoso. Quando levantei estava chovendo muito. Lavei o rosto e varri a casa, depois tomei café e vim para a escola... 344”.

A história inventada por Nadir Ferreira Cancela diz do grau de comprometimento da personagem na execução de suas tarefas domésticas: “[...] Uma senhora que tinha um filhinho muito bonitinho e estava muito preocupada com o serviço da casa, assentou o filhinho no chão para brincar com seu Buldogue.[...] ele ficou assim entretido muito tempo, sem chorar. O Buldogue é muito manso e obedece muito o seu patrãozinho...Êlle ficou assim distraído até sua mamãe acabar o serviço para cuidar dele....345”.

Alguns outros fragmentos de escrita focam o sentido atribuído ao papel feminino: “[...] Certa vez, seu marido chegou de viagem e lhe pediu para assar um frango. D. Maria matou o frango e pôs para assar [...]346”. Vale notar as pistas deixadas

recorrer a Manuel Pinto (1997) e Manuela Ferreira (2004).

343 A.43\1948. 344 A.11\1939. 345 A.32\1942.

pelos alunos nas escritas, elas mostram como a escola produz em seus discursos os modelos de diferenciação.

As representações do feminino são formuladas a partir das próprias experiências nas quais expressam um mundo de sociabilidades na escola ou em casa, em que as meninas se destacam por características de generosidade, fragilidade e leveza. Os enfoques reproduzem os papéis sociais e os padrões previamente estabelecidos pela sociedade. Em uma dessas passagens, a natureza feminina foi captada pela imagem destinada à mulher: “[...] Suzana foi colher flores no mato, cantarolando e pulando”. As aprendizagens dos papéis sociais expressas nos textos foram diretamente influenciadas pelas ilustrações, que reproduziam a imagem das meninas sempre associadas aos cuidados com os animais, portando flores, sorrindo, delicadas, sempre arrumadas, vestidas, segundo uma estética onde sobressai o padrão feminino. 347

Pensar os papéis sociais assumidos pelas meninas em suas histórias é também pensar a complexidade que envolve questões de atribuição de sentido do que é ser mulher em uma sociedade que reproduz um modelo patriarcal. Ao mesmo tempo, pensar como se dá a construção das representações femininas a partir do que escrevem e descrevem nas composições escolares indica como na escola eram introjetados modelos de meninas como seres dóceis, estudiosas, cumpridoras dos deveres, cuidadosas, amigas dos animais, carinhosas, polidas e obedientes.

A interlocução com Foucault348 fez com que eu despertasse para o discurso que

produz o binarismo, que aqui nas composições aparece como era percebido, por parte das crianças, as distinções impostas e\ou instituídas pela cultura em relação ao gênero feminino\masculino. Nesse momento cabem as questões: Como a escola trata a definição de papéis sociais? Como se configuram os dispositivos de educação diferenciados por meninos e meninas?

A marca mais evidente das composições é uma conformidade aos papéis definidos pela identidade de gênero. Por que não aparece nenhuma menção aos meninos no apoio às tarefas domésticas?

Eles trabalham de engraxate, fazem mandados na rua ou são vendedores: “[...] Era uma vez um menino que estava vendendo pássaros. Um homem viu o menino gritando: − Quem quer dar CR$ 5,00 por esses pássaros? Então o homem que era amigo dos

347 Um elemento importante a ser analisado que não foi possível desenvolver nesse trabalho refere-se ao

entendimento das relações estabelecidas entre a produção e os usos feitos das ilustrações nos exercícios escolares, bem como seu efeito na formação de um ideário infantil.

pássaros comprou-os [...]”349. Os meninos ocupavam, portanto, lugares distintos,

relacionados aos espaços públicos, em atividades ligadas ao trabalho remunerado, enquanto as meninas aprendiam os trabalhos domésticos sem visibilidade social.

Há de ressaltar que a diferenciação dos lugares sociais por gênero está ancorada no programa de ensino de educação física desde 1906. Nele ficam definidas para as meninas “[...] uma educação do corpo feminino para o trabalho que realiza no espaço da vida privada de casa”, elas se familiarizam com os trabalhos manuais e afazeres domésticos. Para os meninos o programa de ensino previa uma “[...] preparação do corpo do para habituá-lo como futura mão de obra para o trabalho350”.

Contudo, tais papéis eram flexibilizados diante das condições sociais, como na história abaixo:

A mãe de Laura era uma distinta senhora que havia perdido o marido pouco depois do nascimento da filha. D. Maria lutava com dificuldades para pagar as despezas que fazia com Laura e os treis irmãozinhos. Um dia D. Maria mandou Laura apanhar verduras para vender na cidade [...]351.

A relação das crianças com as novas tecnologias e o encantamento com os códigos do mundo moderno aparece no texto do aluno Felipe Marques Pereira:

Havia em uma cidade uma menina muito travessa.Um dia foi a casa do seu tio.E lá havia um telefone. Ela apanhou uma cadeira e trepou em cima. E começou chamá-lo.Titio manda doces pra mim! Ou! Titio o senhor não está escutando? Seu tio estava escondido atrás da porta. Quando ela acabou de telefonar êle lhe deu um abraço e disse: ─ Que menina inteligente!352

Na composição, para desenvolver o caminho narrativo o aluno utilizou-se de vários elementos que demonstram uma flexibilização da distinção dos papéis e sensibilidades característicos de cada gênero. Primeiro, o aluno\escritor irrompe os limites impostos por uma educação binarista e caracteriza a protagonista como “travessa”. Adjetivo que no contexto que foi usado significa ser curiosa, aventureira, disposta a se lançar em direção às novidades. O reconhecimento da inteligência como qualidade marcante da menina, também pode ser apontado como um vetor que se dirige

349 Lúcia Stela de Oliveira Leite A. 43\1948. 350 Ibiden.

351 A.11\1939.

no sentido das transformações as quais, antecipam os papéis que a mulher passa a assumir na sociedade moderna.

Ao caracterizar o universo masculino, nas histórias em que os meninos são protagonistas, as ações são marcantes. Nelas, os personagens dirigem a cena, se aventuram em descobertas, protegem os mais fracos e não estão passivos às determinações, aparecem como valentes, protetores, bondosos:“[...] Julio e Olga queriam conhecer o mundo, a mãe dos meninos contava-lhes coisas maravilhosas dele. Um dia saíram os dois pelo campo, Olga levou a boneca [...] Anoiteceu e eles não foram para a casa. Estavam desnorteados, Olga começou a chorar que queria mamãe e Julio começou a cantar e ela adormeceu... 353”.

Ou ainda nessa passagem: “[...] José é um homem muito bondoso. Um dia ele foi dar uma volta na rua. Ouvindo de uma casa gritar socorro!...socorro!!![...]354

Em relação ao comportamento masculino, há uma tendência a transgredir as regras: “[...] Benedito era um menino levado da breca. A patrôa mandou Benedito ir ao açougue comprar toucinho. Benedito como era preguiçoso, não quis ir á pé. Dependurou-se às grades da carroça sem o Sr Alfredo perceber. Na subida do morro, com o peso de Benedito a grade desprendeu-se e o coitado caiu com a cabeça na calçada... Benedito tomou uma repreensão da patrôa..355”. No caso, destaca-se não

apenas a caracterização dos tributos do gênero, mas as marcas de um lugar social. Reproduzindo a representação social da época que associava a pobreza à preguiça, a criança trabalhadora é punida por seu suposto ato preguiçoso.

Nas histórias vivenciadas pelos meninos prevalecem situações de menos controle o que implica experimentar um mundo de aventuras. É interessante notar que o contexto das histórias que envolvem meninos avança em direção ao espaço extra-escolar. O cenário passa a ser a rua, o sítio, a cachoeira, o quintal, a casa da avó, a ida ao rio para pescar, subir em árvores, pega carona na carroça. Enquanto os contextos de vivências das meninas estão restritos à escola, ao campo e/ou à casa de parentes.

Quanto às características, os meninos são adjetivados como levados, malvados, vadios, preguiçosos, gulosos, brigões, sentidos que no contexto da narrativa, remetem à idéia de transgressão e resistência aos padrões determinados, como no caso a seguir: “[...] Antonio é um menino muito malvado. Seu brinquedo predileto é carregar a

353 Composição de Paulo Magalhães Costa, A.32\1942. 354 A.43\1948.

atiradeira para matar os pobres passarinhos...”. A ilustração utilizada como recurso pedagógico serviu como mecanismo de inculcação de valores, de reprodução de papéis sociais de gênero, de etnia e de classe, além de servir como recurso que direcionou\aprisionou a escrita do aluno. No levantamento das ilustrações a atribuição de sentido ao ser menino ficou associada às atividades, em situações diversificadas: em brigas, portando a atiradeira, caçam passarinhos, tocam gaita, andam de velocípede, estão junto ao animal de estimação. Todas as façanhas atribuídas ao gênero masculino são mais ricas em ação e movimento.