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Buenos Aires no começo doBuenos Aires no começo do

Buenos Aires no começo do

século XX*

século XX*

Juan Suriano

Seria difícil negar a importância que as ideias e práticas do campo socialista, seja em sua vertente anarquista, sindicalista, marxista ou socialdemocrata, tiveram para a formação de uma cultura operária em geral e na Argentina em particular.

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Esses setores contribuíram ativamente para dotar de coesão e identidade os trabalhado- res através da construção de suas instituições, da provisão de símbolos e rituais, e da organização de suas mobilizações. Sem esquecer a centralidade que adquiriu o peronismo no mundo do trabalho a partir dos anos 1940, a esquerda conseguiu influir sem rivais no movimento operário durante o meio século anterior e con- servar com maior ou menor êxito alguns nichos ao menos até a década de 1970.2

Contudo, o anarquismo, principal artífice da organização e mobilização dos trabalhadores entre 1890 e 1910, foi um ator fugaz que decaiu rapidamente

* Tradução de Ronald Polito.

1 Em sentido amplo, entendo por campo socialista o conjunto das forças integrantes do espectro da

esquerda argentina do começo do século XX. Misturam-se nesse campo todas aquelas tendências que compartilhavam a noção hegeliana e materialista de que são os homens que com sua ação fazem a história. Assim, sustentavam a necessidade de ativar um núcleo político e ideológico com o objetivo de orientar e definir o rumo do movimento operário como elemento central da transformação da sociedade.

2 O momento culminante da revitalização das correntes de esquerda no seio do movimento operário

se situou em fins dos anos 1960 e começos dos anos 1970 em torno do “Cordobazo”, quando distintas vertentes da esquerda conseguiram se converter, ainda que de modo efêmero, num ator de primeiro plano nas lutas operárias. Ver Brennan (1994); e Gordillo (1996).

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e, por volta dos anos 1930, já havia desaparecido do mapa das ideologias in- fluentes no mundo do trabalho.

Claro que qualquer observador desprevenido dos movimentos sociais pro- duzidos na Argentina a partir da grande crise irrompida em fins de 2001 e que se estendeu por boa parte do ano seguinte poderia ter suposto, diante da con- tundência com que se instalou a frase emblemática dos protestos “que se vayan todos”, que estava assistindo a uma ressurreição, se não da estrutura clássica do anarquismo, ao menos de algo parecido com as ideias libertárias inspiradas em Bakunin, Kropotkin e outros pais fundadores da doutrina ácrata. Esse clima social antiestatal e antipolítico tinha sido provocado pela aplicação das políticas neoliberais durante os anos 1990, que facilitaram a reconversão industrial e a ra- cionalização administrativa. O resultado mais evidente desse processo foi o cres- cimento inusitado do desemprego e o empobrecimento acelerado de amplas camadas da população, especialmente a classe operária, que perderam em boa medida os direitos sociais adquiridos ao longo do século XX. Os governantes dos anos 1990 puseram o Estado a serviço das reformas neoliberais, desarticu- lando o Estado social e deixando desprotegida boa parte dos setores populares. Consequentemente, tanto o Estado quanto o sistema político se viram colocados no olho do furacão e questionados em suas próprias bases. Governo, parlamento, partidos e dirigentes políticos e instituições estatais passavam discretamente a segundo plano e mostravam uma forte perda de sua representatividade.

Em consequência, as formas de organização política e de protesto social mudaram, e pareciam inaugurar uma nova época, dando a impressão do ressur- gimento de ideias e formas libertárias de protesto. Essa sensação era abonada pelas palavras de ordem condenatórias do sistema estatal e político, pela mo- bilização espontânea de amplos setores da sociedade, pela horizontalidade e os métodos de ação direta postos em prática nas assembleias de bairro, pelo afã de recuperar empresas e autogeri-las, pelas associações de troca ou pelas formas de organização do movimento piqueteiro.3

Não obstante, hoje sabemos que não se produziu tal ressurgimento li- bertár io e que a grande maior ia dessas iniciativas, à margem do papel desem-

3 Embora as práticas piqueteiras possam ter alguma relação com as libertárias, a essência de suas rei-

vindicações vai em outra direção, pois tem a ver com o direito ao trabalho e à proteção estatal, e esta última, como sabemos, marcha em sentido contrário às aspirações libertárias. Sobre as experiências de piqueteiros, ver Svampa e Pereira (2003).

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penhado pelas organizações não governamentais, terminaram absorvi das pelas ações do Estado, das organizações políticas ou das instituições assistenciais. Na realidade, a convicção de que era possível o funcionamento de uma sociedade sem Estado e sem sistema político parlamentar foi precisamente uma das cau- sas centrais da decadência e da perda de influência do anarquismo argentino entre os trabalhadores.

Mas, façamos um adendo a essa afirmação. Houve um momento na his- tória argentina, que poderíamos situar entre o começo do processo agroexpor- tador e meados da década de 1910, em que o antipoliticismo e o antiestatismo foram traços da prédica anarquista que contribuíram para seu enraizamento entre alguns trabalhadores que se mostravam indiferentes a um sistema político que não os incluía e a um Estado que os ignorava em boa medida, pois não ha- via assumido a formação de um novo ator social. E este é o tema deste capítulo: tentar explicar e compreender os traços da cultura política anarquista que tor- naram possível sua influência entre os trabalhadores e a direção do movimento operário argentino até o momento em que se produz a reforma do sistema eleitoral e uma intervenção mais ativa do Estado nas relações sociais.

Para compreender o enraizamento libertário é necessário descrever breve- mente os traços notáveis da sociedade argentina do começo do século XX. O processo de modernização econômica iniciado na década de 1870 deu ensejo à criação de cidades como Buenos Aires ou Rosario, que cresciam acelerada e de- sordenadamente ao ritmo do crescimento da economia e do fluxo imigratório. Nessas grandes urbes se instalaram os serviços e as indústrias. Nesse contexto, configurou-se um mundo do trabalho composto principalmente por mão de obra imigrante e por uma incipiente classe operária concentrada em algumas poucas fábricas de grande porte (frigoríficos, cervejarias, moinhos), na constru- ção, em uma infinidade de estabelecimentos comerciais e, principalmente, no setor de serviços (transporte, portos).

A sociedade urbana apresentava certas peculiaridades favoráveis ao de- senvolvimento de tendências contestatórias. Entre elas, a mais importante foi talvez a constante mobilidade horizontal e vertical (ascendente e descendente) de um corpo social que tardava a adquirir uma fisionomia definitiva e que, embora permitisse a ascensão e o bem-estar de uma parte importante dos tra- balhadores, excluía outra porção significativa que não lograva inserir-se plena- mente no mercado de trabalho e via frustradas suas aspirações de progresso. Em correspondência com esse estado de mobilidade permanente e de insatisfação

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operária, os setores patronais relutavam em negociar com as organizações sin- dicais e assumiam, geralmente, posições irredutíveis diante de demandas como a redução da jornada de trabalho ou a melhoria das condições de trabalho. Por sua vez, os partidos políticos, com exceção do socialismo, faziam parte de um sistema eleitoral fraudulento e excludente, controlado por uma minoria de no- táveis, que nem interpelava os trabalhadores nem se preocupava em resolver sua situação. Mais importante ainda era a escassa presença do Estado para ajudar a resolver os problemas mais urgentes dos trabalhadores, como o desemprego, as más condições de trabalho, a arbitrariedade patronal, a superpopulação no local de trabalho ou a dificuldade de acesso à casa própria. Às vésperas dos festejos do centenário, em 1910, o cônsul italiano em Buenos Aires assinalava a indiferença absoluta do governo diante dos problemas operários, “sem sequer ter em conta que, às vezes, trata-se apenas de questões de equidade e de justiça”.4

Esses traços alimentaram o descontentamento dos setores menos favoreci- dos e foram modelando uma zona da sociedade onde era habitual a confronta- ção social e o enfrentamento. As tensões entre a incipiente classe operária argen- tina, guiada por suas lideranças ideológicas, e os setores patronais e o Estado não raro adquiriram matizes de extremada violência. Nesse clima de confrontação e crispação, quem atraía em maior medida os trabalhadores insatisfeitos eram os anarquistas, com sua tendência à rebelião permanente, e não os socialistas, que propunham o melhoramento da condição operária através de uma sólida legis- lação trabalhista — empresa certamente impossível num sistema político como o que imperava no começo do século. O movimento libertário, cuja marca do- minante era a ação, e não a reflexão, converteu-se em um ingrediente principal da cultura do conflito e ocupou aquelas zonas de que estavam ausentes o Esta- do e outras instituições. Enquanto perduraram esses fatores, aos quais devemos somar o fechamento político, as propostas libertárias se mantiveram vigentes e relativamente atraentes para os trabalhadores.

Podemos entender melhor essa atração se levarmos em conta a condição de desenraizamento, exploração e marginalização de uma parcela importante dos trabalhadores nessa época. A grande maioria deles eram imigrantes ou pro- vinham do interior do país e eram novos na cidade; viviam num lugar estranho entre estranhos. Esses indivíduos chegavam às cidades com a ilusão de melhorar

4 Nota ao Ministero dell’Interno de Italia, 8-5-1910 (Archivo Centrale dello Statu, MI-PS, AA-GG-

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sua situação econômica, o que muitas vezes demorava mais tempo que o de- sejado para concretizar-se. Cortados os laços diretos com sua terra natal, suas famílias, suas tradições e, em consequência, perdida a contenção comunitária e inclusive familiar, viam-se numa sociedade hostil onde nem o Estado nem a igreja podiam desempenhar esse papel. Porém, essa visão deve ser matizada a partir do importante papel desempenhado pelas instituições étnicas nacionais e regionais no nível associativo e mutual.Mesmo reconhecendo que a ascensão social foi na Argentina um traço saliente que conduziu a médio prazo a um alto nivel de integração, deve-se sublinhar que, durante um bom tempo de suas vidas, os trabalhadores conta- vam somente com sua capacidade de trabalho, suas ilusões e sua vontade de superação. A necessidade de um espaço de contenção se tornava mais evidente quando se frustravam suas aspirações de ascensão social. Era nessa circunstância que a agremiação (a sociedade de resistência) podia oferecer aos trabalhadores a possibilidade de estabelecer suas reivindicações econômicas mais urgentes. No entanto, os grupos políticos ideológicos contestatórios ofereciam também espaços institucionais, como os centros sociais ou círculos culturais que atua- vam como lugares de encontro e sociabilidade, mas também como escola de formação ideológica e política. Embora o primeiro contato entre militantes e trabalhadores se forjasse na experiência cotidiana no local de trabalho (e nas moradias coletivas), era nessas instituições que se criavam laços de pertencimen- to e participação, que se diluía o individualismo e se constituía a ação coletiva. Nesses lugares se estabelecia a conexão entre os anarquistas e os trabalhadores, e o discurso daqueles podia parecer verossímil para estes.

Claro que a adesão dos trabalhadores ao projeto de mudança social liber- tária era outra questão, pois o anarquismo teve grandes dificuldades para incluí- los organicamente na trama de uma cultura política alternativa, devido princi- palmente ao problemas encontrados na construção de um sistema eficiente de intercâmbios simbólicos com os trabalhadores. O objetivo dos anarquistas era educá-los e concientizá-los para alcançar uma pouco clara emancipação indivi- dual e viverem numa sociedade futura onde desapareceriam os fatores de poder e os homens viveriam igualitária e harmonicamente. Contudo, depararam-se com milhares de operários que, antes de apoiar uma incerta emancipação social e política, estavam dispostos a segui-los e a lutar por melhorias que facilitassem seus desejos e esforços de bem-estar econômico e ascensão social. Tampouco contribuiu para essa aproximação o sectarismo demostrado pelos anarquistas

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na militância desenvolvida no movimento operário, ao aprovarem em 1905 a adesão da Federación Obrera Regional Argentina (Fora) aos princípios do “comunismo anárquico” e a obrigatória aceitação desses princípios pelos seus membros. Essa decisão finalista, da qual nunca se retrataram, tornou-se um dos principais obstáculos para alcançarem a unidade do movimento operário e, além disso, com o tempo contribuiu para isolá-los dos trabalhadores.

Assim, embora não tenham conseguido convencer os trabalhadores a acompanharem seu projeto emancipador, os anarquistas foram eficazes para ar- ticular suas demandas e interesses de maneira conjuntural e oferecer respostas imediatas para essas necessidades. E ainda adotaram um perfil de defensores a qualquer preço dos direitos individuais de todos os oprimidos, desde os inquili- nos até as prostitutas, desde os soldados até os policiais. Mas a defesa desses direi- tos se relacionava de maneira essencial com as demandas dos trabalhadores para solucionar suas carências básicas, pois dentro do conglomerado dos oprimidos eles eram os atores centrais.

A heterodoxia ideológica, a dinâmica de sua ação prática e a “categórica frontalidade” demostrada diante de seus inimigos permitiram ao anarquismo adaptar-se facilmente a uma sociedade de carater aluvial, excessivamente cos- mopolita, heterogênea laboralmente e em contínua transformação. As práticas libertárias adquiriram características de uma militância de urgência incentivadas por dois processos diferentes. Por um lado, tratava-se de uma resposta a um pro- cesso de mudanças bruscas e aceleradas da sociedade urbana argentina de então, a qual mostrava altos níveis de mobilidade horizontal e vertical que, sem dúvida, geravam enormes dificuldades na hora de articular uma identidade comum dos trabalhadores. Creio que esse tipo de estrutura social tão cambiante contribuiu para incentivar no interior do movimento libertário a escassa reflexão sobre as peculiaridades do caso argentino e a busca de respostas rápidas e contundentes. É como se os ativistas anarquistas fossem compelidos a organizar sua ação com o objetivo de golpear sistematicamente o sistema capitalista e transformá-lo radicalmente.

Por outro lado, e mais importante, a militância de urgência encontra sua explicação nas próprias raízes da concepção libertária da ação política. Significa- va subordinar o pensamento à ação, e o planejamento a longo prazo do processo de mudança ao imediatismo e ao espontaneísmo, clara manifestação de um individualismo a qualquer preço que resistia a qualquer forma de planificação e organização. A urgência, o imediatismo e o aceleramento dos tempos políticos

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constituíam a marca dominante do movimento anarquista local e se justificavam numa concepção, em parte utópica, que dava ênfase a objetivos situados mais além do presente, como a destruição total do Estado, sem etapas intermediárias, como propunha o gradualismo socialista, e sem mediações ao estilo da ditadura do proletariado, tal como sucederia com o partido bolchevique. Estavam con- vencidos de que era o movimento espontâneo que criava as condições para o progresso do ideal anarquista; essa espécie de “movimentismo” privilegiava a ação por si mesma, apontando para a realização repentina de um fim abstrato que os levava constantemente a impulsionar novas ações espontâneas.5

Essa forma de perceber a mudança social desembocava numa necessidade de mobilização permanente e de golpear sistematicamente o conjunto das ins- tituições e pilares do Estado burguês (o parlamento, o Poder Executivo, a justiça, o exército, a nação), gerando uma espécie de impaciência revolucionária.6 Não

esqueçamos que um dos lemas preferidos dos anarquistas era “destruir e edifi- car”, que significava destruir a velha sociedade e edificar a nova. Bakunin era claro a esse respeito: “ponhamos nossa confiança no espírito eterno que destrói e aniquila só porque é a fonte insondável e eternamente criadora da vida. O impulso de destruição é também impulso criador”.7 Era esse impulso destruidor

que dava ao discurso e à gestualidade anarquista sua marca violenta: “odiamos!” — clamava um periódico libertário — “O ódio engendra a luta, e o que luta

odeia, e quão nobre e humano é lutar por um ideal que sintetiza a verdade!”.8

Essa marca violenta se achava onipresente nas formas de mobilização; é por isso que, nas numerosas ações de rua de que participavam, os anarquistas extrema- vam suas posições e tensionavam a situação, procurando sempre superar a mera reivindicação sindical de melhorias de trabalho e dar um passo a mais no sentido de atacar as instituições do Estado. Foi o que sucedeu em vários conflitos du- rante os primeiros anos do século XX (greves gerais, atos do Primeiro de Maio e, inclusive, no movimento de inquilinos de 1907). Nessas ocasiões, tendiam a privilegiar a concepção do “tudo ou nada” para alcançar seus objetivos de ma-

5 Sobre o componente espontâneo e insurrecional no anarquismo, ver Bravo (1994).

6 Para Wolfang Harich (1988), os anarquistas são tão impacientes que não podem e não sabem esperar

as conjunturas revolucionárias adequadas, pensando a revolução como um acontecimento presente e sempre possível.

7 Apud Woodcock, 1970:141. 8La Protesta Humana, 1 mayo 1902.

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neira imediata: “os homens devem ir direto à conquista do pão e não se deterem para recolher migalhas”.9

A militância de urgência praticada pelos anarquistas privilegiava a ação e a propaganda, relegando a teoria à descrição sistemática e reiterada dos problemas sociais de uma perspectiva moralista. Predominava uma interpretação não clas- sista do conflito social que reforçava a ideia, onipresente na obra de Kropotkin, de dar menos importância à análise crítica da economia e concentrar sua aten- ção na condenação moral.10 Assim, os males da sociedade capitalista residiam

na perversão do Estado, na hipocrisia e na ambição da Igreja, na cobiça e no caráter explorador da burguesia ou no sofrimento do proletariado. No contexto de um discurso marcadamente binário,11 esses problemas eram abordados com

um alto nível de abstração e intemporalidade que, de alguma maneira, ocultava a especificidade e as características particulares da sociedade na qual os anar- quistas estavam operando. Predominava uma tendência a analisar a sociedade concreta e real a partir de vagas postulações gerais, com um elevado grau de abstração que tornava difícil elaborar interpretações medianamente certeiras da realidade. Como transformar uma sociedade se não se prestava atenção a suas peculiaridades?

Embora tenham demostrado notável adaptação e pragmatismo diante do conflito social, não conseguiam elaborar diagnósticos certeiros, enquanto re- petiam mecanicamente fórmulas nas quais as conotações negativas ou positivas dos atores sociais se diferenciavam pouco da de outros lugares do mundo. Os propagandistas libertários locais eram pouco sutis na hora de definir os diver- sos grupos sociais, e a crítica era essencialmente moral. Assim, os burgueses, os trabalhadores, os sacerdotes, os militares ou os funcionários estatais apareciam despojados dos matizes locais. Enquanto predominava a denúncia moralista, a observação e a análise da realidade econômica e social estavam quase ausentes de seu discurso. Diego Abad de Santillán (1925), dirigente e historiador do mo- vimento anarquista, censurava em meados da década de 1920 o escasso interesse de seus camaradas em analisar os “problemas do presente”: “vivemos demasia-

9 El Rebelde , Buenos Aires, 12 ene. 1902. 10 Ver nota 14.

11 O mundo que mostravam era de caráter binário (explorados e exploradores, bons e maus) sem

demasiados matizes ou srcinalidade na relação opressor-oprimido. A binaridade é uma característica da enunciação anarquista, “um sistema que o estrutura todo, que opera em todos os níveis da oração”. Salain (1995:330).

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damente à margem da vida econômica, política e espiritual da época; temos nos retraído demais, desinteressando-nos de tudo o que não tem relação imediata e bem visível com nossas ideias. Isso nos condena mais e mais ao isolamento”.

Essa foi uma marca determinante do anarquismo argentino que, contu- do, não prejudicou durante esses anos sua relação básica com os trabalhadores. Uma explicação para essa situação de empatia seria que não existe uma relação