• Nenhum resultado encontrado

1.2 D IFICULDADES TEÓRICAS QUE PERMEIAM O ESTUDO DOS DIREITOS HUMANOS

1.2.2 A busca pelo fundamento dos direitos humanos e seu conteúdo

Assim como há divergência até na terminologia empregada para os direitos humanos, seu fundamento não ficaria imune a críticas. Com razão, Norberto Bobbio76 acredita não ser possível encontrar um fundamento absoluto para os direitos humanos e tampouco seria isso desejável. Para o jusfilósofo italiano, seria ilusão buscar um fundamento absoluto para direitos que são historicamente relativos, ainda mais em um mundo com vasta pluralidade religiosa e moral.

É por isso que, à míngua de uma definição de “ser humano” que o revele em sua essência, a dignidade é o atributo utilizado para descrevê-lo, uma vez que é tida como uma qualidade própria comum unicamente ao “ser humano”, como conclui Maria Celina Bodin de Moraes77. Com razão, até hoje ainda tentamos encontrar resposta para uma das perguntas fundamentais da filosofia: quem somos? A essência do ser humano, apesar de buscada ao longo dos séculos, por várias civilizações, não encontrou uma resposta conclusiva e, talvez, jamais, a encontre.

Em virtude dessa dificuldade de apreender a essência do “objeto”, por assim dizer, uma análise descritiva do ser humano vem sendo formulada pela tradição ocidental, quase sempre vinculando o homem à ideia de dignidade, com base nas religiões cristãs. Maria Celina Bodin de Moraes78 argumenta que tal singularidade do ser humano deita suas raízes filosóficas no cristianismo, o qual foi o primeiro a conceber a ideia de uma dignidade pessoal a cada indivíduo.

Sem embargo, a ideia de dignidade inata ao ser humano sob a qual se funda o ordenamento jurídico possui íntima ligação com a genealogia humana de que fala a Bíblia cristã, eis que o homem teria sido criado à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1, 26-27). Essa passagem bíblica denota uma origem divina do ser humano, no que se afasta dos outros seres, também de origem divina, mas não forjados à imagem e semelhança de seu Criador, daí a nota diferencial.

76 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier: 2004, p. 15-

24.

77 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo.

IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 112.

78 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo.

IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 112.

Apesar dessa filiação divina compreendida pelo cristianismo, filósofos cristãos da envergadura de Anício Mânlio Torquato Severino Boécio, mais conhecido apenas por Boécio, e de São Tomás de Aquino continuaram a buscar resposta para a pergunta atinente à essência do ser humano.

Ensina a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro79 que, para Boécio (séc. VI), a propósito de estudar a “Trindade”, o ser humano seria uma “substância individual de natureza racional”, no que foi seguido por São Tomás Aquino (séc. XIII). Complementa André de Carvalho Ramos80 que Tomás de Aquino coloca o ser humano como o “centro da criação”, já que teria sido forjado à imagem e semelhança do próprio Deus, sendo as características humanas do intelecto e da semelhança com o Criador que impõem a dignidade inerente ao ser humano.

Giovanni Pico, ou simplesmente Pico de Mirandola, foi outro filósofo a se interessar pela reflexão acerca do conceito de pessoa humana e de sua dignidade. Apesar de formular alusões de cunho teológico, no ano de 1486, em seu “Discurso sobre a dignidade do homem”, o italiano coloca os seres humanos como categoria sui generis, sem similitudes com animais, anjos ou com Deus, consoante afirma David Cooper81.

Maria Celina Bodin de Moraes82 acresce que, por deixar de estabelecer a dependência da dignidade humana à questão da natureza divina do homem, Pico de Mirandola foi considerado herético pelo Papa Inocêncio VIII. Apesar dessa consideração papal, o teor antropocentrista de Pico de Mirandola reverberou e foi seguido por filósofos modernos como Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant, pelo que se deduz do artigo da mencionada professora.

A propósito, é comum que os estudiosos identifiquem a obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), de Immanuel Kant, como o fundamento filosófico mais direto para a dignidade da pessoa humana tal qual assumida pela DUDH.

79 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo.

IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 113.

80 RAMOS, André Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015, p.

74.

81 COOPER, D. E. As filosofias do mundo. Uma introdução histórica. São Paulo: Edições Loyola, p. 251 apud

MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 114.

82 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo.

IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 114.

Segundo Marilena Chauí83, ao se debruçar sobre a natureza humana e a questão do dever, Kant formulou o conceito de “imperativo categórico”para refutar a tese da natureza moral do ser humano, sustentando que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.

Para Kant, o imperativo categórico seria expresso por uma fórmula geral: “Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal”. Essa fórmula kantiana, permitiu-lhe deduzir três máximas: 1) Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza; 2) Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; e 3) Age como se a máxima de tua ação servisse servir de lei universal para todos os seres racionais.

Ainda de acordo com Marilena Chauí84, a primeira proposição diz respeito à necessidade de uma conduta ética universal, devendo ser seguida por todos os seres humanos por ser considerada uma lei inquestionável, válida para todos os indivíduos e em todos os tempos. Logo, agir por dever se afigura como uma lei moral para o agente.

Já a segunda proposição, conforme lição da autora, conduz ao entendimento de que a dignidade dos seres humanos impõe a exigência de que sejam eles tratados como fim da ação, e jamais, como meio ou como instrumento para nossos interesses.

Por último, a vontade de agir por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e, desse modo, são eles dotados de vontade legislativa livre e autônoma. A terceira máxima, pois, exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins.

Portanto, é na segunda máxima kantiana que encontramos a ideia da dignidade dos seres humanos como pessoas e a imposição que sejam tratadas como fim da ação, nunca como um meio ou como instrumento para o alcance de nossos interesses.

Na lição de Immanuel Kant85, tudo possui um “preço” ou uma “dignidade” no reino dos fins. Diz-se que alguma coisa possui preço quando pode ser substituída por outra equivalente; porém, quando isso não é possível, por estar acima de qualquer preço, não permitindo a equivalência, diz-se, então, ser possuidora de dignidade.

Desse modo, para Kant, o que diz respeito às inclinações e necessidades gerais do homem possui um “preço venal”; já o que, mesmo sem se afigurar como necessidade humana,

83 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 344-347. 84 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 346.

85 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições

desperta um gosto, ou seja, trata-se de uma satisfação, possui um “preço de afeição” ou “de sentimento” (Affektionspreis).

Por outro lado, aquilo que constitui a condição mediante a qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não pode ser estimada em valor relativo, não se havendo que falar em “preço”, mas, sim, ser vista como um valor intrínseco, ou seja, deve ser compreendida como “dignidade”.

Assim, por afirmar que a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, é que Kant entende possuir a moralidade “dignidade”, em vez de “preço”. Por conseguinte, o ser humano, por sua capacidade de moralidade, podendo legislar sobre o reino dos fins, é dotado de dignidade. Destarte, para o filósofo de Königsberg, a moralidade e a humanidade são as únicas coisas que possuem dignidade, as demais têm preço. Em virtude disso, Bárbara Freitag86, ao abordar a questão da moralidade na obra de Kant, afirma que a legislação elaborada pela razão prática precisa levar em conta, como objetivo último, a realização da dignidade humana, por se tratar ela de um valor intrínseco ao ser humano, correspondendo a um interesse geral de toda a humanidade.

Fábio Konder Comparato87 justifica ser irrecusável encontrar o fundamento para a vigência dos direitos humanos, assim como para a própria organização estatal, e sustenta que esse fundamento seria a dignidade humana.

O valor da dignidade humana não é, pois, criação do ordenamento jurídico, mas, sim, seu próprio fundamento de legitimidade, tendo encontrado positividade tanto no direito internacional, como no direito interno, como princípio jurídico fundamental.

Essa conclusão encontra respaldo no pensamento de Celso Lafer88, que entende ser o valor da pessoa humana o “valor-fonte” de todos os valores políticos, sociais e econômicos e, por isso, é também o fundamento último da legitimidade da ordem jurídica, encontrando sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem.

Norberto Bobbio89, no entanto, aduz que o problema dos fundamentos dos direitos humanos perdeu grande parte de seu interesse depois da proclamação da Declaração Universal

86 FREITAG, Bárbara. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de Habermas, Tempo

Social, Revista de Sociologia USP, São Paulo, 1(2), 2.º sem, 1989, p. 10, p. 10.

87 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,

p. 72.

88 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 19/20.

89 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier: 2004, p. 22-

dos Direitos Humanos, quando a maioria dos governos existentes com ela concordou e o fizeram, certamente, por encontrar boas razões para isso.

Afirma ele que, com a adoção da Declaração de Paris, como ficou conhecida, foi criado, de fato, um sistema universal de valores fundado no consenso de que toda a humanidade partilha valores comuns, valores de que foram portadoras as religiões e as Igrejas, mas que atingiam, com elas, apenas uma parte da humanidade90.

Para Boaventura de Sousa Santos91, no entanto, não se trata, necessariamente, de um “consenso global”, mas, sim, do que o professor lusitano chama de “localismo globalizado”, isto é, uma solução local e oriunda das democracias cristãs hegemônicas que, por via do poder econômico, político e cultural de quem a promove, expande seu âmbito a todo o globo.

De fato, a adesão de diversos Estados à Declaração Universal dos Direitos Humanos não parece estar atrelada, necessariamente, à convicção filosófica da imprescindibilidade de proteção aos direitos humanos, mas, em vez disso, à urgência de se integrar na política econômica globalizada.

Essa conclusão se sustenta na medida em que as potências ocidentais, capitaneadas pelos Estados Unidos da América, utilizando-se da indústria cultural (especialmente o cinema), da política (aí incluída a sub-reptícia pressão bélica) e do seu poderio econômico, pressionam tais Estados a concordarem com suas orientações.

Um exemplo disso é o Ato de Assistência Externa (Foreign Assistance Act), do governo dos Estados Unidos, que reorganizou a estrutura existente em relação aos programas de assistência estrangeira e criou a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (United States Agency for International Development - USAID), a fim de administrar programas de assistência econômica não ligados à área militar.

De acordo com Louis Henkin92, o aludido ato não socorre Estados cujos governos sejam responsáveis pela existência de um consistente padrão de sérias violações a direitos humanos reconhecidos internacionalmente.

Theodor Meron93, por sua vez, louva essa política dos EUA, observando ter havido avanços em 15 países analisados, o que demonstraria que a política americana teria

90 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier: 2004, p. 28. 91 SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013, p.

34.

92 HENKIN, Louis; PUGH, Richard; SCHACHTER, Oscar; SMIT, Hans. International law: cases and materials,

3. ed. Minnesota: West Publishing, 1993 p. 580 Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2015, p. 246.

93 MERON, Theodor. Teaching human rights: an overview, in: MERON, Theodor (ed.). Human rights in

international law: legal and policy issues, Oxford: Claredon Press, 1984, p. 21 Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2015, p. 246-247.

“sensibilizado” os governos estrangeiros para as questões de direitos humanos. Já na avaliação da organização internacional Human Rights Watch94, tais sanções econômicas fazem com que regimes repressivos paguem o preço pelo abuso cometido, por meio de restrição de seu acesso à assistência internacional.

Sem pretendermos entrar no mérito quanto à correção dessas sanções econômicas, resta claro que muitos Estados precisam aceitar determinadas normas para não serem alijados do processo de globalização da economia e da ajuda financeira de que tanto precisam para desenvolver suas economias, mesmo que isso signifique abrir mão de suas convicções religiosas e filosóficas em nome de um suposto consenso global acerca dos direitos humanos.

Por esses e outros fatos, contra a noção universalista de direitos humanos, levantam- se argumentos de que a sua construção decorre de circunstâncias específicas da cultura e da história de cada sociedade e que as diferentes culturas impossibilitariam a formação de uma moral universal, de modo que se há de respeitar o discurso acerca dos direitos fundamentais de cada sociedade, como lembra Flávia Piovesan95.

Para superar essa disputa entre universalismo e relativismo, anota Flávia Piovesan96 que Boaventura de Sousa Santos propõe o “multiculturalismo emancipatório”, cuja inspiração seria o diálogo entre as culturas a fim de se estabelecer uma concepção multicultural dos direitos humanos, já que todas as culturas possuem diferentes noções do que seja “dignidade “humana”. Reforçando a ideia da diferença de noção acerca da dignidade humana Ingo Wolfgang Sarlet97 defende que, ainda que fosse possível se falar em um conceito universal de dignidade, não se poderia evitar uma disparidade ou mesmo conflituosidade sempre que uma conduta tivesse de ser avaliada como ofensiva, ou não, à dignidade. Frisa o professor gaúcho, com base em Ronald Dworkin, que qualquer sociedade civilizada possui padrões e convenções próprios sobre o que seja indignidade, critérios esses que variam com o tempo e o espaço.

É por esse motivo que se faz necessário o “universalismo de confluência” no mesmo sentido elaborado por Boaventura de Sousa Santos. Entre os estudiosos e suas respectivas concepções, Flávia Piovesan98 faz menção a Joaquín Herrera Flores e seu “universalismo de

94 HUMAN RIGHTS WATCH. Human rights watch world report 1995: events of 1994. New York, 1995, p. XVII-

XVIII. Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2015, p. 247

95 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo,

Saraiva, 2015, p. 227.

96 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo,

Saraiva, 2015, p. 233.

97 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 68.

98 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. rev. e atual. São Paulo,

confluência”, que nega o ponto de partida comum para os direitos humanos, entendendo ser possível, todavia, um “universalismo de chegada” ou “de confluência”, isto é, um certo consenso após de um processo conflitivo, de diálogo entre culturas.

Conclui Flávia Piovesan que, para haver a celebração de uma cultura dos direitos humanos, com observância de um “mínimo ético”, a condição necessária é a abertura do diálogo entre as culturas, respeitada a diversidade cultural e reconhecido o outro, como sujeito pleno de dignidade e direitos. Esse mínimo ético será alcançado, assim, por um universalismo de confluência.

Seja como for, mesmo que não atrelado a convicções filosóficas ou religiosas e ainda que em virtude de imperiosa necessidade de se integrar na política econômica globalizada, o fato de mais de 170 países adotarem a DUDH torna inescusável seu cumprimento. A sua adoção pela maioria dos países do mundo demonstra, se não um consenso verdadeiro, pelo menos a anuência de que os direitos e fundamentos ali insertos devem ser protegidos por todos. Desse modo, dúvidas não há de que a Declaração, para além de delinear um conjunto de direitos e faculdades tidas como essenciais para o desenvolvimento da personalidade física, moral e intelectual do ser humano, constituiu um valoroso marco na proteção internacional do ser humano, pautada na dignidade humana. Dignidade essa que é exaltada antes de qualquer outro considerando na Declaração, o que implica a confirmação do entendimento esposado por Fábio Konder Comparato e Celso Lafer quanto a ser a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos e de todo o ordenamento.

Portanto, embora de difícil caracterização jurídica, por se tratar de uma categoria aberta, a dignidade humana se apresenta como fundamento de todo ordenamento jurídico, em especial dos direitos humanos, por pressupor o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana, dando origem a alguns preceitos, que podem ser concebidos na seguinte sequência hierárquica, conforme lição de Antonio Junqueira de Azevedo99: 1) respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2) consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3) respeito pelas condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária.

Em mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet100 afirma que onde a vida e a integridade física e moral do ser humano não forem respeitadas, onde não forem asseguradas condições

99 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. A caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, Revista

trimestral de Direito Civil, n. 9, jan./mar. 2002, p. 1/22 apud nota de rodapé n. 35 IN: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. IN: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos sociais e direito privado. Porto Alegre: Livr. Do Advogado Ed., 2003, p. 116

100 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

mínimas para uma existência digna, onde o poder não sofrer limitações, e onde a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente garantidos, não haverá espaço para a dignidade humana e as pessoas poderão não passar de meros objetos de arbítrio e injustiças.

Esses três preceitos ou “princípios basilares” dos direitos humanos (inviolabilidade da pessoa, autonomia da pessoa e dignidade da pessoa) encontram-se, segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli101, na DUDH. Ingo Wolfgang Sarlet102ressalta, porém, que sua apreensão é decorrência do caminho trilhado pela doutrina e pela jurisprudência que, ao enfrentarem casos concretos de violação à dignidade humana, tiveram de estabelecer seu âmbito de proteção.

Ou seja, ao identificarem o bem jurídico protegido e a amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma internacional), a doutrina e a jurisprudência fizeram a verificação das possíveis restrições contempladas, expressamente, pela norma de regência e a identificação de reservas legais de índole restritiva para chegar a esses três preceitos.

Contudo, embora a dignidade humana não se defina a priori, até mesmo por se constituir numa categoria aberta, como dito antes, Ingo Wolfgang Sarlet103 propõe uma conceituação jurídica, visto não ser ela uma fórmula vazia e meramente retórica, como, de fato, muitas vezes é tratada.

O professor gaúcho apresenta sua proposta de conceituação, sem deixar de ressaltar estar ela em processo de reconstrução. Para ele, dignidade humana é a qualidade intrínseca e distintiva em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e