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Capítulo 1. Compras públicas: conceito e suas implicações para atuação de governos

1.4 Experiência dos Estados Unidos com a compra pública no cenário internacional

1.4.1 Buy American Act: fundamentos e recém fortalecimento

O Buy American Act é uma lei que entrou em vigor em 1933, em resposta do governo norte-americano à crise financeira de 1929 (WEISS & THURBON, 2006). Desde então, a norma passou por várias revisões e encontra-se, atualmente, em discussão no âmbito do senado dos Estados Unidos. Basicamente, a racionalidade do Buy American Act é dar preferência aos produtos de conteúdo local. O produto, para qualificar-se como de conteúdo local, deve preencher os seguintes dois requisitos: (i) deve ter sido produzido nos Estados

Unidos e (ii) mais de 50% de todas as partes componentes também devem ser produzidas no referido país. As disposições do Buy American Act, no entanto, não se aplicam a compras de valor inferior a US$3.500, bem como estão ressalvadas nas seguintes circunstâncias: não disponibilidade do produto, preço excessivo, aquisição comercial de tecnologia da informação, revenda e ou determinação por interesse público.

Adicionalmente, em relação à abertura do mercado norte-americano para os concorrentes estrangeiros, o Buy American Act poderá ser ressalvado em determinadas circunstâncias. Nestes casos, os entes públicos responsáveis pelas compras devem dar preferência para aquisição de bens produzidos nos Estados Unidos (mesmo sem atender aos critérios de conteúdo local) ou de empresas oriundas de países, primordialmente, que são partes do Acordo de Compras (GPA) da OMC, partes de outros acordos bilaterais com os Estados Unidos (U.S. Free Trade Agreement ou FTA) e ou países desenvolvidos (por exemplo, o CETA, acordo comercial entre o Canadá e a União Europeia e também a negociação, em andamento desde 2010, de acordo entre a União Europeia e o Mercosul, bloco que reúne Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).

Segundo Weiss & Thurbon (2006), o posicionamento dos Estados Unidos como um promotor da abertura de mercados para as compras públicas, ao passo que preserva e reforça práticas protecionistas ao conteúdo local, é no mínimo, paradoxal. No contexto do comércio internacional é comum existirem alegações de práticas anticompetitivas por países, em descumprimento aos princípios da não discriminação e da transparência. De acordo com Weiss & Thurbon (2006), a postura dos Estados Unidos, no entanto, vai além e evidencia uma estratégia para expandir o acesso aos mercados internacionais, enquanto protege o mercado doméstico. Nesse sentido, os acordos internacionais bilaterais ou no âmbito do Acordo de Compras da OMC são instrumentos para manutenção dessa estratégia.

Por outro lado, Yukins (2017) relativiza o papel do Buy American Act na preferência ao conteúdo local. De acordo com Yukins (2017), há que distinguir-se Buy American Act de outras regras de caráter protecionista, equivocadamente classificadas como Buy American Laws. O Buy American Act, segundo o referido autor, é amplamente desconsiderado das contratações sujeitas aos acordos internacionais de compra, restando aplicável somente nos casos em que a contratação não atinge o valor mínimo do acordo internacional (esses valores mínimos variam, de US$130 mil a US$400 mil para aquisição de

produtos e serviços e US$5 milhões para contratação de obras)6. As demais regras Buy American Laws limitam ou até impedem a aquisição ou contratação de bens e serviços por empresas estrangeiras, mas essas normas, segundo o autor, costumam ser exceções aos acordos internacionais.

De qualquer forma, seja o Buy American Act significativamente protecionista ou qual seja seu impacto nas compras públicas internacionais, é fato que a existência dessa norma contribui para o entendimento do papel das compras públicas como instrumento de política nos Estados Unidos, até os dias atuais, como visto a seguir.

Em 18 de abril de 2017, o governo federal dos Estados Unidos emitiu uma portaria no intuito de reforçar o cumprimento das disposições protecionistas Buy American Laws. Nos termos do referido ato executivo de 2017, o atual presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump, estabelece metas para que as agências e outros órgãos de governo avaliem a aplicação do conjunto de normas de caráter protecionista, bem como eventuais ressalvas ao cumprimento dessas medidas. A partir desse diagnóstico, as agências devem apresentar propostas para corrigir desvios no cumprimento das normas protecionistas em prol de da compra e contratação de produtos, serviços e matérias-primas (incluindo ferro, aço e bens manufaturados) dos Estados Unidos (em sintonia à frase que foi lema de campanha do presidente Trump buy American and hire American).

Em atendimento ao disposto no ato presidencial de abril, em 30 de junho de 2017, o secretário do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross, emitiu um memorando aos responsáveis e chefes das agências federais para reiterar a solicitação de uma avaliação do cumprimento das normas de protecionistas, bem como da proposição de políticas e ações para maximizar a preferência pelo conteúdo local (US, Department of Commerce, 2017). Desde a emissão desse memorando, dois projetos de lei foram apresentados no congresso norte-americano no sentido de fortalecer as políticas “Buy American”.

Em dezembro de 2017, o projeto S.2196, conhecido por 21st Century Buy American Act, foi apresentado pelo senador C. Murphy, do partido democrata, em busca do fortalecimento dos mecanismos de preferência ao conteúdo local. De acordo com Bozman, Ganderson e Hoe (2018), a proposta do projeto S.2196 almejava cinco principais modificações no intuito de fortalecer as regras buy American:

6

Ver os valores mínimos para contratações via GPA da OMC. Disponível em: https://e- gpa.wto.org/en/ThresholdNotification/FrontPage, acesso outubro de 2018.

(i) o custo dos componentes dos Estados Unidos para testes de produtos não de prateleira deve ser de, pelo menos, 60% do custo total do produto, para que o produto seja classificado como de conteúdo local;

(ii) a exceção das regras Buy American para produtos a serem usados fora dos Estados Unidos deve ser significativamente limitada;

(iii) aos órgãos de governo contratantes não deve ser permitido aplicar a exceção por interesse público, exceto se considerado no curto prazo os efeitos do uso dessa exceção na geração de emprego nos Estados Unidos;

(iv) uma política de financiamento deve ser criada para empresas que desejem produzir determinados produtos que não sejam produzidos nos Estados Unidos; e

(v) medidas devem ser adotadas para aumentar a transparência no uso das exceções às regras Buy American.

O mais recente projeto, S.2284, foi apresentado em janeiro de 2018 por senadores dos partidos democrata e republicano. Exceto pelo bipartidarismo na propositura do projeto de janeiro, o conteúdo e a essência das medidas dos dois projetos de lei são bastante próximos (BOZMAN, GANDERSON & HOE, 2018). Deve-se considerar que as modificações propostas podem dificultar a participação em compras governamentais de empresas que estejam alinhadas a aquisição de componentes em cadeias globais de valor. Exemplo de uma modificação restritiva é estipular que 60% do custo do produto deve ser de componentes produzidos nos Estados Unidos.

O importante a ser notado em vista de todas essas movimentações recentes no governo federal dos Estados Unidos, em suas esferas administrativa e legislativa, é que o racional protecionista – o qual embasa o conjunto de normas conhecidas por Buy American Laws – ainda está em voga como ideal de política. Essa constatação vai ao encontro do argumento defendido nesta tese de que o instrumento de compra pública é um mecanismo adequado para promoção de políticas públicas voltadas a diferentes objetivos sociais, econômicos, de desenvolvimento científico e tecnológico, entre outros.