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Capítulo 1. Compras públicas: conceito e suas implicações para atuação de governos

1.2 Mercado global e as compras públicas: principais marcos normativos

No âmbito do comércio internacional, as compras públicas possuem relevância, dado o montante de recursos aportados no uso desses instrumentos, bem como a difusão do uso desse mecanismo por diferentes governos e autoridades. As compras públicas representam, em média, 12% do Produto Interno Bruto (PIB) e 29% do total dos gastos dos países membros da OCDE. Diante disso, há tentativas de estabelecer diretrizes para o uso das compras públicas por diferentes países e um importante marco nesse sentido é o Acordo Geral de Compras (General Procurement Agreement) da Organização Mundial do Comércio (GPA/OMC).

O GPA, sigla do Acordo de Compras da OMC, é um acordo plurilateral assinado por 47 países membros da OMC, sendo 28 países desse grupo membros da União Europeia. Por ser um acordo plurilateral, nem todos os membros da OMC são signatários do GPA, embora todos possam pleitear. De acordo com a OMC, 32 países encontram-se na posição de observadores do GPA e além desses, 10 países negociam a entrada no Acordo. Em outubro de 2017, o Brasil tornou-se observador do Acordo na OMC.

Propostas de estabelecer diretrizes e normas para as compras públicas no mercado internacional estão em debate, pelo menos, desde a década de 1970. Em 1979 foi assinado o primeiro documento nesse sentido oriundo da Rodada de Tóquio (Tokyo Round Code on Government Procurement), o qual passou a vigorar em 1981. Posteriormente, na década de 1990, as negociações para um acordo de compras públicas foram retomadas no âmbito da Rodada do Uruguai. Em 15 de abril de 1994, o acordo passou a ser denominado General Procurement Agreement (abreviado por GPA) e foi assinado no mesmo ano de criação da OMC. Desde a versão de 1994, os termos do GPA foram revisados e reformulados por representantes dos países membros e da comunidade internacional, sendo que a redação atual entrou em vigor em abril de 2014.

O GPA tem por escopo promover a abertura de mercados para as compras públicas entre seus membros. Contudo, o referido acordo possui, apenas, 19 membros (já que os 28 países da União Europeia se aglomeram em um único membro) e suas disposições são bastante inspiradas nos princípios incorporados no sistema da União Europeia para compras públicas. Dessa forma, por ter sua implementação bastante concentrada em um menor grupo de países, em sua maioria, economicamente desenvolvidos, o GPA não enfrentou as dificuldades comuns à implementação de outros acordos internacionais, como o caso do Acordo de Propriedade Intelectual da OMC (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, TRIPS).

Destacam-se desses princípios o da não discriminação, da transparência e da equidade nas contratações. A quantidade de contratos celebrados por membros do GPA com empresas não-nacionais ainda é limitada (CARBONI, IOSSA e MATTERA, 2018). Os estudos sobre a efetividade do GPA e o alcance deste acordo para reduzir práticas discriminatórias de competidores não nacionais estão em desenvolvimento. As métricas para mensurar a efetividade do GPA na mitigação de discriminação a empresas não-nacionais encontram barreiras na disponibilidade e na qualidade dos dados sobre compras públicas. Na essência, o GPA procura incorporar as compras governamentais no formato do

multilateralismo, elemento central na atuação da OMC. Em razão disso, a adesão ao GPA pode limitar políticas de incentivo ao desenvolvimento tecnológico nacional, uma vez que estas podem beneficiar competidores locais, em detrimento dos competidores estrangeiros.

A participação no GPA se dá como plena ou como observador e ambas estão sujeitas à aprovação do comitê das compras públicas na OMC. Na prática, participar como observador do Acordo assegura o acesso às discussões e documentos, enquanto que as decisões e votos permanecem restritas aos membros que são partes do GPA. Em 2017, o Brasil entrou no GPA como observador e sinalizou o interesse em conhecer as discussões do comitê do GPA e assim incorporar novos conhecimentos sobre as negociações das compras públicas no mercado internacional. Usualmente, países que são observadores acabam por negociar sua entrada no GPA, mas não há como inferir que seja este o objetivo do Brasil (OMC, 2017).

Todos os membros da OMC podem aderir ao GPA, mas para que isso ocorra é necessário cumprir requisitos estabelecidos pelo comitê do Acordo. O princípio basilar do GPA é a reciprocidade entre os membros, para fins da abertura para competição internacional das compras públicas e estímulos para que este sistema se torne mais transparente. Além disso, o Acordo estabelece parâmetros (por exemplo, listas de produtos, serviços ou obras e valores), segundo os quais os processos de compras passam ou não a se sujeitar aos termos e condições do GPA. A efetividade do Acordo é cobrada por meio de mecanismos de revisão das normas internas sobre compras públicas nos países membros e por mecanismos de solução de controvérsias no âmbito da OMC. Trata-se de um Acordo vinculante às partes que o aderem e cujo funcionamento segue os mecanismos consagrados na OMC.

No intuito de sistematizar a análise da efetividade do GPA, Carboni, Iossa e Mattera (2018) classificaram as barreiras em mercados de compras públicas no âmbito internacional em dois tipos: as evidentes e as encobertas. O grupo dos mecanismos discriminatórios “evidentes” é composto por manobras fiscais, por exemplo, sobretaxar os produtos e serviços de empresas estrangeiras em prol das empresas domésticas, programas de estímulo a empresas de pequeno e médio porte, os quais tendem a privilegiar as empresas locais e outros mecanismos de estímulo às empresas locais, como regimes de preferência, vantagens pela contratação de empresas domésticas entre outros.

As barreiras tidas por “encobertas” incluem obrigações de que as empresas estrangeiras constituam subsidiárias locais como condição para participarem de compras públicas, bem como condições pelas quais as compras de produtos e serviços essenciais sejam

sempre oriundas do mercado doméstico. Além disso, existem barreiras “encobertas” relacionadas à burocracia, por exemplo emissão excessiva de certidões e autorizações, o idioma dos documentos integrantes das compras públicas, o que evidentemente restringe a participação de empresas estrangeiras e mecanismos para dividir o escopo em etapas contratadas individualmente e ou limitar o valor dos contratos de compras.

De acordo com Carboni, Iossa e Mattera (2018), os estudos que buscam identificar as barreiras discriminatórias nos mercados de compras públicas partem de três abordagens diferentes. Uma abordagem baseia-se na probabilidade de que uma empresa estrangeira ou uma local seja vencedora do processo de compra. As diferenças entre essas probabilidades indicam o grau de práticas discriminatórias no mercado internacional de compras. Trata-se da abordagem mais precisa, porém requer grande disponibilidade de dados, o que é um gargalo no mercado de compras. Outra abordagem baseia-se na elasticidade das importações, a qual em outras palavras significa que a discriminação contra empresas estrangeiras ocorre se a propensão para importar pelo setor privado é maior do que a do setor público. Estima-se a propensão para importar a partir de dados agregados e por conta disso essa abordagem encontra limitações. Por fim, a análise qualitativa constitui uma última abordagem que contribui na identificação das barreiras discriminatórias nos mercados de compras, mas por estar limitada a casos selecionados pode não abarcar grande parcela do mercado de compras.

Muito embora os acordos internacionais promovam medidas para flexibilizar as compras públicas e atrair competidores nos mercados nacionais, os estudos empíricos evidenciam que as compras ainda estão fechadas em mercados internos de cada país ou região. Em vista disso, Carboni, Iossa e Mattera (2018) ressaltam a necessidade de que as práticas discriminatórias - encobertas ou evidentes - sejam investigadas e identificadas. Nesse sentido, o GPA ainda tem abrangência limitada como um marco da abertura das compras públicas no mercado internacional.