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Cárcere como materialização da exclusão

Universidade de São Paulo | USP, Faculdade de Direito, Departamento de Direito Penal

1. Cárcere como materialização da exclusão

1.1 Perfil do encarcerado no Brasil

O cárcere brasileiro explicita a política criminal voltada à (re)produção da pobreza e do racismo institucional. Composto em sua maioria por jovens negros, o sistema prisional do Brasil materializa o anseio social por controle e eliminação dessa população, uma vez que, ainda que se reconheça a opressão estrutural que exclui pessoas vulnerabilizadas dos centros de decisão, opta-se por sobrepenalizar crimes patrimoniais (Salvador Neto, 2014). O país, por meio de seus parlamentares, investe há décadas na criação de normas de comportamento para manutenção dos privilégios e do patrimônio que somente pôde ser acumulado com a escravidão e, posteriormente, a exploração das classes trabalhadoras.

A criação de um consenso sobre o uso da punição para fins de composição dos conflitos sociais é potencializada pela difusão do imaginário de que se vive um uma sociedade marcada pela insegurança (Miranda, 2017). É alimentada a crença segundo a qual a falta de segurança é o grande problema do país, invisibilizando a negação sistêmica de direitos fundamentais a grande parcela da população – negação esta que é a real geradora dos conflitos

que ganham destaque nas mídias. Ao isolamento do cárcere é creditado o condão de combater o crime, quando, em verdade, é ele mesmo elemento aprofundador de exclusões que agravam a criminalidade.

De acordo com dados de 2017 do Ministério da Justiça, quase dois terços da população carcerária brasileira é negra. Conforme informações do PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 54% dos brasileiros são negros (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015). Ainda segundo as mesmas fontes, 55% das pessoas presas no Brasil têm entre 18 e 29 anos, idade em que se espera que os jovens estejam cursando graduação e ingressando no mercado de trabalho. Quanto à escolaridade, 75% da população prisional brasileira não chegou ao ensino médio e menos de 1% dos presos possui graduação. Os custos da prisionalização atingem inclusive essa dimensão de análise, uma vez que se retira do mercado e da possibilidade de formação técnica um contingente expressivo de pessoas.

A seletividade do sistema judiciário faz com que se relativizem princípios penais constitucionais como o da legalidade e o da presunção de inocência a depender do público para o qual se volta (Zaffaroni, 1991). Os mais vulnerabilizados, que não podem dispor de uma representação judicial individualizada, sentem o racismo institucional ao receberem as sentenças e serem encaminhados para o confinamento. A superlotação das prisões, vendida pelos reprodutores da lógica do controle como um efeito colateral de uma criminalidade epidêmica, nada mais é do que a consequência intuitiva da política de super-encarceramento. Descola-se convenientemente o problema social brasileiro para a falta de vagas nas instituições penitenciárias em vez de alocar esforços para o enfrentamento dos eixos de opressão.

O lugar de não-sujeito ao qual a clientela penal é destinada faz com que as condições desumanizantes do cárcere sejam encaradas com tolerância ou mesmo com senso de merecimento por parte do público geral, amedrontado pela aura de terror provocada pela mídia e adepto de uma concepção maniqueísta dos problemas de segurança pública.

1.2 Duas pontas da exclusão territorial.

Cita-se, no Direito Penal Brasileiro, que a pena teria como uma de suas finalidades a ressocialização do preso (Bitencourt, 2008).26 Esse discurso contrapõe-se à prática de neutralização de vidas humanas empenhada pelo

nosso sistema de justiça. A ressocialização – ou reinclusão social, na dicção da Criminologia Clínica (Sá, 2011) – encontra barreira mesmo em sede semântica, uma vez que não há como se falar em reinserção daqueles que jamais chegaram a integrar de forma qualitativa algum sistema.

A distância dos grandes centros urbanos e o afastamento dos olhares dos habitantes das grandes centralidades urbanas é elemento comum tanto das penitenciárias quanto das localidades habitadas pela clientela do Direito Penal no Brasil. Segundo Ana Luiza Pinheiro Flauzina, o cárcere brasileiro opera uma (re)produção de uma espécie de genocídio da população negra – já sujeita a diversas outras possibilidades de morte física e simbólica. De acordo

26 De acordo com o art. 1º da Lei de Execução Penal Brasileira (Lei nº 7.210/1984), “(a) execução penal tem por objetivo efetivar as disposições

com a autora, esse genocídio racializado se baseia também na extrema pobreza à qual está sujeira esta população, no precário acesso à saúde que tem a mulher negra, na falta de condições para educação e na segregação espacial dessa população (Flauzina, 2008). Trata-se não apenas de ativamente proceder ao assassínio direto, mas de expor à morte uma população já vulnerabilizada, que sente de forma mais contundente a ausência do Estado.

Figura 1. Mapa de pontos (cada ponto representa uma pessoa) mostrando a distribuição racial de pessoas no município de São Paulo

(Gusmão, 2016).

Segundo dados do Atlas da Violência de 2017 (Cerqueira, 2017), produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Ainda segundo o documento, as mortes violentas de jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos corresponde a 47,85% do total de homicídios. Tais dados explicitam o quanto a negligência institucional (ou sua atuação ativamente letal, pelas polícias militarizadas) realiza a gestão das mortes nas periferias brasileiras.

A segregação ambiental, conforme explica Ermínia Maricato, é face relevante da exclusão social, uma vez que dificulta não apenas o acesso aos serviços e infraestrutura urbanos, mas também é fator para menores oportunidades de emprego, profissionalização, acesso à justiça formal e lazer (Maricato, 1995). As iniciativas governamentais, que poderiam viabilizar uma maior inclusão desses espaços e habitantes, têm seu foco nas áreas centrais das cidades, uma vez que há restrita visibilidade midiática nas periferias e o capital político de sua população é desvalorizado.

A concentração espacial da pobreza e o vácuo deixado pelo Estado fazem com que os territórios marginalizados sejam solo propício para o surgimento do crime organizado. O sistema penal, que atua no Brasil como via de gestão da pobreza (Silva e Farias, 2017), segrega novamente aqueles que em geral cresceram em áreas periféricas.

A localização espacial das instituições prisionais, no Brasil, parece seguir a lógica estrutural de segregação de determinadas populações. A presença do cárcere na paisagem urbana, ainda que fora de zonas centrais, impacta e temoriza a comunidade com a perspectiva do perigo representando por seus ocupantes. De acordo com Wilson Edson Jorge, há grande tendência a rejeição de projetos penitenciários pela sociedade e o Estado encontra dificuldades para negociar, junto aos municípios, a implantação dessas instituições em seus entornos. Nessa guerra de forças políticas, perdem sempre os municípios menores, já que estes têm menos condições de fazer frente às investidas estatais (Jorge, 2002). Trata-se, como reconhece o autor, de solução no mínimo precária à questão da

localização dos presídios, desconsiderando a origem territorial dos internos e as dificuldades de trajeto enfrentadas pelos(as) familiares visitantes.