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Universidade de São Paulo | USP, Faculdade de Direito, Departamento de Direito Penal

2. O lado de fora

2.1 Perfil dos(as) visitantes

As filas de penitenciárias brasileiras contam, em sua esmagadora maioria, com visitantes do gênero feminino (Biondi, 2009; Silvestre, 2011; Duarte, 2013). Este fenômeno, ainda pouco explorado na produção acadêmica brasileira sobre o cárcere, explicita a bagagem simbólica existente na concepção do feminino em uma sociedade marcada pelo sexismo, como se verá a seguir.

Conforme descreve Ana Carolina Cartillone dos Santos, há uma reprodução, nas filas de visita, do perfil populacional encontrado nos cárceres brasileiros. O recorte de classe e raça é o mesmo. As mulheres visitantes, em sua maioria assalariadas e alocadas em trabalhos precarizados, trabalham seis dias por semana e são o esteio da família (Santos, 2015).

A ausência de dados oficiais a respeito das visitas realizadas periodicamente por familiares dos mais de 720.000 presos no Brasil indica o quanto o tema é negligenciado pelo poder público. Conforme explica Alvino Augusto de Sá (2010), o paradigma do controle tende a prevalecer perante todas as iniciativas minimamente humanizantes do cárcere. A entrada de visitantes no cárcere tende a ser enxergada muito mais como um transtorno à segurança do presídio do que como um direito daqueles que lá estão encarcerados.

Não há uma regulamentação comum a todas as penitenciárias brasileiras e nem a penitenciárias de um mesmo Estado da federação. Cada instituição tem regras próprias no que tange a dias de visita, trajes permitidos para entrada em ambiente prisional e itens de alimentação ou higiene admitidos para entrega aos presos. O conjunto de produtos destinados aos internos é chamado popularmente de “jumbo” e é examinado de maneira minuciosa antes de ingressar na prisão (Biondi, 2009; Silvestre, 2011).

Os momentos de visita representam uma superação da distância e a transferência, para as dependências da prisão, de atividades íntimas, como refeições em família e encontros sexuais (Duarte, 2013). As visitas são realizadas sempre em finais de semana (sábados ou domingos) e as filas para entrada tem início na madrugada anterior. Não raramente, mulheres acampam nas filas para que seja possível entrar o quanto antes e, assim, permanecer o maior tempo possível ao lado do companheiro encarcerado. A frequência das visitantes e a ausência estatal na organização das visitas faz com que haja uma autogestão, por parte das familiares, das normas procedimentais de ingresso e do arranjo das filas (Biondi, 2009).

Giane Silvestre, em sua pesquisa de campo sobre o tema, aponta que as mulheres visitantes se veem como agentes da ressocialização dos companheiros e familiares condenados pela justiça. Segundo discorre, consideram a família e o trabalho como alicerces de um futuro longe do crime – e sua presença constante aos finais de semana de visita

são formas de reafirmar a importância desses pilares (Silvestre, 2011). Segundo Thais Lemos Duarte (2013), que também investiga a temática, é possível identificar, por parte das visitantes, que essa prática se mantém por basicamente três sentimentos: amor, fidelidade e compaixão. Tais sentimentos fazem com que as familiares dos presos praticamente cumpram as penas junto com o ente querido, uma vez que dedicam a ele seus finais de semana e passam pelo controle desumanizante da administração penitenciária (Duarte, 2013).

2.2 Ônus institucionalizado

Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo descobriu que, entre 2011 e 2012 o investimento em itens de higiene, vestuário e limpeza foi de R$ 13,00 a R$ 50,00 por preso (Fábio, 2016). Ou seja, em um ano gastou-se, por pessoa, um valor que sequer seria suficiente para arcar com itens de higiene pessoal por um mês em uma residência típica de uma grande cidade. Tais itens – papel higiênico, sabonetes, creme dental, escovas de dente, lâminas de barbear, roupas, sabão em pó – ao não serem oferecidos pelo Estado às pessoas custodiadas, acabam se tornando de responsabilidade das familiares, que arcam financeiramente com os produtos e os levam às penitenciárias.27

Nesse cenário, o cárcere atua não apenas como fator de fragilização emocional das famílias que têm um ente encarcerado – significa, também, um eixo de desestruturação financeira das pessoas que, do lado de fora, apoiam os presos (Silvestre, 2011). Não é raro que a renda familiar seja comprometida pela necessidade de prover os itens de higiene, vestuário e limpeza aos internos. Além disso, as visitantes tendem a levar alimentos de preparação caseira ou industrializados para os familiares, já que a comida oferecida nas cadeias é de baixa qualidade e há, no provimento de alimentação pelas visitas, um componente de afeto e zelo envolvidos (Duarte, 2013).

As mulheres não por acaso representam a maior parte das visitas à instituições prisionais. O dever de cuidado, associado às caracterizações do gênero feminino, está intimamente ligado aos laços de obrigação e carinho que as unem aos esposos e familiares presos (Duarte, 2013). Esta conjuntura leva Santos a afirmar que a institucionalização da entrada do “jumbo” como prática corrente nas penitenciárias brasileiras, além de revelar a violação de direitos da pessoa presa (uma vez que advém da ausência estatal), pode ser traduzida também como exploração do trabalho feminino por parte do Estado (Santos, 2015):

Essa tarefa, que demanda muito tempo e dinheiro, exige desde a ida ao supermercado, até a entrega dos produtos nos Correios ou na unidade. Significa também a preparação, refrigeração e embalagem – geralmente feita na véspera da visita – de todos os alimentos a serem levados. Por fim, o trabalho de entrega por si só demandará o deslocamento da familiar – por vezes de uma cidade a outra – no domingo de madrugada ou na própria noite de sábado. (Santos, 2015, p. 10)

Relato similar é feito por Duarte (2013):

27 O não oferecimento desses itens contraria determinação legal. Segundo a Lei Nº 7.210/1984 – Lei de Execução Penal, o estabelecimento

prisional deve fornecer itens de alimentação, vestuário e higiene: “Art. 12. A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”.

Nos dias anteriores à visita, a mulher dispensa boa parte do seu tempo a preparar os alimentos que serão levados às unidades prisionais. A esposa de um interno informou que praticamente não dormia nas noites anteriores às visitas porque passava grande parte da madrugada cozinhando. Os preparativos para a visita começavam alguns dias antes do encontro, pois havia a necessidade de ela ir ao supermercado comprar os ingredientes para preparar a comida. (Duarte, 2013, p. 632)

Tratar-se-ia, portanto, de uma terceira jornada de trabalho imposta a essas mulheres, que em geral já estão sujeitas a (i) um turno de trabalho precarizado, (ii) um turno de cuidados dedicados à casa e aos filhos, e (iii) um turno extra aos finais de semana, para compra e preparação dos produtos a serem levados ao companheiro encarcerado (Santos, 2015). Impera reconhecer que esse ônus feminino somente se impõe com essa contundência pela ausência do Estado em oferecer aos presos itens básicos para garantia de sua dignidade.

Necessário pontuar, também, que a revista íntima pela qual as mulheres são submetidas antes de entrar nos estabelecimentos prisionais ficou conhecida como “revista vexatória” pelo grau de humilhação que representam. As visitantes de todas as idades são obrigadas a tirar toda a roupa perante policiais femininas e, diante delas, abrir vagina e ânus com as mãos, agachar sobre espelhos e tossir a fim de que se assegure que elas não transportam itens proibidos para dentro da instituição. O descaso é tamanho que diversas instituições de defesa de direitos humanos passaram a se referir à prática como um estupro institucionalizado (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2015).