• Nenhum resultado encontrado

Os filósofos e cientistas ligados ao Círculo de Viena deixaram um enorme volume de material publicado. Ao longo da sua existência como um grupo coeso, aproximadamente entre 1922 e 1934, e depois da sua dispersão internacional, esses autores produziram reflexões em áreas muito distintas, que passavam pela ética e pela sociologia, pela lógica e pela semântica. Obviamente, grande parte da sua produção se concentra na análise filosófica das ciências naturais e, mesmo quando tratando de outros temas, alguns problemas fundamentais são recorrentes. Para esse trabalho, decidi limitar o escopo da minha pesquisa a três textos centrais na exposição do tipo de ideias que aqui me interessam. Da excelente coletânea editada no final dos anos 1950 por A. J. Ayer, dois capítulos: Protocol Sentences, de Otto Neurath e The Foundation of Knowledge, de Moritz Schlick. O terceiro texto é o manifesto A concepção científica do mundo – o Círculo de

4 Essa expressão foi retirada do prefácio à edição brasileira do livro de Fleck. Cf. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Prefácio à edição brasileira. Um livro e seus prefácios: de pé de página a novo clássico. In: FLECK, Ludwik.

Viena, escrito por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf Carnap. Isso não inclui, obviamente, as obras de referência e de análise sobre o positivismo lógico. Essa seleção deixa de lado leituras essenciais para a compreensão mais abrangente e completa do movimento, no entanto, ela foi guiada e recortada em função do tema central desse artigo, que são as contribuições de Mannheim e Fleck à concepção do conhecimento como um produto histórico.

A análise desses textos tentará traçar a divisão de papéis já mencionada acima, entre a filosofia e as disciplinas “marginais”, tais como a história ou a sociologia.

O Círculo de Viena reúne-se primordialmente em torno de Moritz Schlick, então professor na Universidade de Viena. Esse movimento se aproveitou da atmosfera incomumente progressista e intelectualizada de Viena na transição do século XIX para o XX. Os membros do Círculo possuíam em comum uma atitude fundamental diante do mundo, algo que foi chamado pelos próprios vienenses de “concepção científica do mundo” CARNAP; HAHN e NEURATH, 1986, p.10. Orgulhosos de seguirem uma tradição antimetafísica, os autores do Círculo exibiam sua “árvore genealógica intelectual”, onde ostentavam sua filiação principalmente ao pensamento de Ernst Mach e Ludwig Wittgenstein, mas também a Boltzmann, Duhem, Comte, Einstein, Hume, Russel (CARNAP; HAHN e NEURATH, 1986, p.7-8) Apesar de não considerar o Círculo de Viena como uma corrente filosófica unitária, apresentarei algumas ideias como sendo de circulação relativamente geral no interior do grupo.

O empirismo lógico identifica a linguagem como local privilegiado da sua investigação filosófica. Pra esse movimento, o sucesso da ciência depende da boa utilização da linguagem, cabendo à filosofia definir os critérios pelos quais se pode julgar quando a linguagem está sendo bem utilizada, de modo a produzir resultados cientificamente válidos. Em vista disso, surgirá, no interior do Círculo de Viena, uma proposta bastante austera de utilização da linguagem. Assim, se instaura um método de análise lógica da linguagem capaz de eliminar toda metafísica5. Um método rigoroso, capaz de purgar da linguagem toda metafísica, concebida como desprovida de sentido,

5 Essa frase é uma referência explícita a um artigo de Rudolf Carnap. Na verdade, grande parte da explicação da relação da metafísica com o Círculo de Viena se baseia nesse texto. Cf. CARNAP, Rudolf. The elimination of metaphysics through the logical analysis of language. In. AYER, A. J (org.). Logical Positivism. Nova Iorque: The Free Press, 1959, pp. 60-81.

contrária à racionalidade científica. Defensores de um modelo de linguagem diretamente ligado à experiência, à dimensão empírica e, assim, à ciência, os positivistas lógicos do Círculo se distanciam de outros inimigos da metafísica por não a considerarem “falsa”, “fruto de mera especulação” ou de “contos de fada”, mas por a considerarem ininteligível, desprovida de sentido, incapaz de produzir qualquer conhecimento legítimo (CARNAP,1959, p.72). A metafísica é tomada como terreno das especulações acerca da essência transcendente das coisas; identificada com a arte, não com a ciência. Foi o desenvolvimento da lógica moderna que possibilitou a crítica derradeira, indubitável e inescapável (na visão dos empiristas lógicos) à metafísica. A adoção da lógica transformou a filosofia praticada pelo Círculo de Viena, especialmente a filosofia da linguagem, em um trabalho técnico, em oposição à especulação da filosofia clássica.

Essa linguagem baseada na experiência, na concretude, será a base sobre o qual se ergue, simultaneamente, todo conhecimento científico e toda agenda filosófica do Círculo (CARNAP; HAHN e NEURATH, 1986). À linguagem, contudo, não basta ser fisicalista, isto é, purificada de termos metafísicos; embora essa seja uma condição necessária e uma exigência primeira à tentativa de elaborar uma linguagem universal, capaz de dar conta de todos os territórios do conhecimento humano e possibilitar a unificação das ciências, projeto central na filosofia do Círculo de Viena6. Depois de garantidas as condições do fisicalismo, a linguagem deveria se organizar em sentenças protocolares, aquelas que se referem da forma mais simples possível a um fato, sem a ocorrência de juízos de valor, moduladores, ou qualquer indicador de singularidade. Sentenças protocolares são universais (SCHLICK, 1959). Para Moritz Schlick, as sentenças protocolares eram a firme base sobre a qual se apoia a ciência. É nelas, em sua descrição factual, firme, seca, que se encontraria a base do conhecimento humano. Otto Neurath parece discordar desse entendimento ao apontar para a impossibilidade de basear o conhecimento apenas em sentenças protocolares. Para esse autor, a impregnação da nossa linguagem por termos metafísicos, carregados de juízos de valor, desprovidos de sentido, faz com que seja impossível supor um efeito de tabula rasa. Apesar da possibilidade de limpar a metafísica

6 NEURATH, Otto. Protocol Sentences. 199-208. In. AYER, A. J (org.). Logical Positivism. Nova Iorque: The Free Press, 1959, pp. 199-208. Nesse texto, Neurath sugere a criação de uma lista de palavras proibidas por conter significado metafísico.

da linguagem, não é possível desfazer-se de todos os excessos encontrados em toda a linguagem; o processo é longo, árduo e infinito.

Moritz Schlick, mesmo ciente das críticas de Neurath, considera apropriado basear sua teoria do conhecimento no uso das sentenças protocolares. Para Schlick, as sentenças protocolares eram a forma contemporânea (à época) de atacar o problema fundamental de todas as tentativas importantes em estabelecer uma teoria do conhecimento, qual seja, a busca do conhecimento absoluto: inegável e indiscutível. Esse problema fundamental seria, por sua vez, a derivação do problema da incerteza do conhecimento humano. As sentenças protocolares – a forma mais simples de expressar um fato – quando bem operadas, deslocariam para a linguagem o problema do fundamento do conhecimento. Schlick considerava esse deslocamento um avanço em relação às teorias que buscavam na natureza, nos fatos, o fundamento do conhecimento. Isto deriva da cisão radical entre a dimensão ontológica e a dimensão epistemológica, entre “linguagem” e “mundo”, para o Círculo de Viena. “Não faz sentido falar em fatos incertos. Apenas asserções, apenas nossa linguagem pode ser incerta”7. Já que a linguagem é a única fonte de erros, o único modo de fazer avançar uma teoria do conhecimento e descobrir um fundamento efetivo para o conhecimento é estabelecendo uma filosofia da linguagem capaz de torná-la menos sujeita a imperfeições, desvirtuações, incongruências.

Diante disso, é possível voltar ao problema posto a essa seção e perceber como o empirismo lógico traça as fronteiras disciplinares entre a filosofia, a história e a sociologia e os respectivos papéis na explicação da ciência. Isto se relaciona, intimamente, com a noção de filosofia defendida por esses autores. Para eles, ela deve se afastar de atividades especulativas e dos grandes sistemas, tradição comum à anterior ao Círculo. A filosofia deve se aproximar da ciência e servir a ela; à ciência cabe a descoberta da verdade; à filosofia, a descoberta do sentido. É a filosofia que dá condições para que a ciência enuncie a verdade de uma maneira logicamente adequada; é ela quem fornece os subsídios para a correta prática da ciência, fornecendo correção e clareza à linguagem que a ciência utiliza. O projeto vienense de unificação da ciência dependia diretamente da unificação da

7 SCHLICK, Moritz. The Foundation of Knowledge. In. AYER, A. J (org.). Logical Positivism. Nova Iorque: The Free Press, 1959, p. 210. No original: “It makes no sense to speak of uncertain facts. Only assertions, only our knowledge can be uncertain.

linguagem, da criação de uma linguagem universal, fisicalista. Além disso, a filosofia seria um método de análise lógica da linguagem, também a serviço da ciência.

O que seria a ciência então, nesse registro? Provavelmente, não muito mais do que a enunciação lógica de fatos empíricos (que, lembremos, por definição, “não podem ser incertos”) encadeados e relacionados por meio de atribuições de causalidade. Segundo Moritz Schlick, a ciência é o sistema cognitivo, organizado a partir de sentenças empíricas, única atividade capaz de testar e corroborar a verdade (SCHLICK, 1959, p.56). Nesse modelo, o conteúdo cognitivo da ciência não é passível de explicações históricas ou sociológicas. Isto porque a própria ciência é imune às oscilações de ordem social e política, é infensa às transformações históricas que não são determinadas por suas próprias mudanças internas.

Quando bem praticada, verdadeira, refere-se a fatos universais e exteriores ao sujeito e à comunidade que proporciona a “descoberta”. Quando falsa, mal feita, incompetente, não é digna de ser chamada de ciência. É desvio, incompetência, interesse, ideologia. Aí sim, nesses casos, caberia uma análise sociológica e histórica que explique as causas da falsidade. A história e a sociologia poderiam atuar também na explicação dos arranjos sociais necessários à atividade científica, como pregava a corrente mertoniana.

Desse modo, fica mais clara a ideia, já expressa acima, que a filosofia de matriz positivista se pensava como única disciplina capaz de explicar a ciência em seus pontos fundamentais. Isto decorre da imagem de ciência e de filosofia por eles mesmo construídas.

Karl Mannheim e a Sociologia do Conhecimento

Sociólogo de origem húngara, Karl Mannheim teve duas fases bastante distintas na sua carreira. A primeira compreende seu período na Alemanha entre 1922 e 1933 – período em que desenvolveu a sociologia do conhecimento e publicou sua principal obra, Ideologia e Utopia, em 1929. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, muda-se para Londres (onde será professor na London School of Economics) deixa de lado as pesquisas em sociologia do conhecimento – provavelmente pelas duras críticas endereçadas ao seu trabalho por autores alinhados com as diretrizes neopositivistas. Nessa segunda fase – a britânica – Mannheim desenvolve trabalhos em outras áreas, como a sociologia da