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Deixemos que o diga o tempo,

pois, mudamente surdo, ele é o único que, sem dizer nada, diz tudo. (Calderón de la Barca, poeta espanhol)

Já dissemos anteriormente, que a partir da metade do século XIX, começa o Piauí a participar do comércio internacional, com maior freqüência. A competição, que provavelmente mais fizera, pelo desenvolvimento dos poderes latentes da época somente seria possível sob a condição da existência da navegação a vapor e outros expedientes para facilitar os negócios e o comércio. Ao surgir provocou mudanças numa situação social existente e abriu um novo espaço para as relações humanas e comerciais. Com efeito, em função do transporte aqüífero, das suas qualidades e da sua eficácia, podemos perceber sua contribuição no desenvolvimento regional, na natureza e localização das atividades, nas densidades de população, nos modos de vida urbano, na estrutura urbana e na expansão espacial dentre outros. De fato, o transporte fluvial no rio Parnaíba influenciou no conjunto das atividades humanas pelo seu traçado e equipamentos. Nenhum outro elemento desempenhou papel tão determinante na estrutura e na configuração socioespacial do estado do Piauí do que os navios a vapor.

O rio Parnaíba facilmente acessível por terra ou através de inúmeros de seus afluentes da margem direita, era um meio fácil de ligação com as outras povoações tanto do Piauí quanto do Maranhão, além de servir de escoadouro, para o mar, dos produtos da região. Ele atraía, dessa forma, as populações do interior. Se as zonas ribeirinhas também eram propícias à criação, nada impedia que delas se aproximassem os rebanhos, colocando- se assim mais próximos da principal via de comunicação do estado. Os currais se foram retirando do sul, deixando lá algumas povoações. As vilas, os arraiais, inúmeros núcleos de povoamento, iam se formando às margens do rio Parnaíba. Embora os piauienses estivessem na alvorada das novas possibilidades tecnológicas, podia os vapores transportar não só pessoas e mercadorias, mas também idéias, informações, publicidade, propaganda, etc. Assim a escolha do sistema de transporte fluvial ultrapassou, pois, largamente, as simples dimensões técnicas e/ou econômicas às quais a quiseram confinar. Foi uma escolha que comandou a estrutura espacial local e a organização da sociedade urbana.

Conquanto, o desenvolvimento da navegação a vapor no rio Parnaíba pode ser percebido, pela forma que foi promovido, como um precursor necessário para o crescimento econômico e regional do estado do Piauí. O rio Parnaíba e a navegação a vapor em seu dorso devem ser entendidos, como parte da grande estrutura sócio-espacial do estado do

Piauí. Se se o estado esqueceu-se da importância das ligações internas com este “mercado”, cujas relações entre o ponto estratégico, o rio e a hinterlândia mudariam, as cidades beira-rio Parnaíba foram vistas como uma porta de entrada, ou seja, uma abertura para a constituição de negócios criando um amplo campo de oportunidades comerciais e industriais e, consequentemente de povoamento. Sabe-se que na organização do espaço-tempo vivido, constituiu-se um invólucro essencial antes do acesso a entidades207 mais concretas. Um lugar assim vivido aparece como um elemento essencial da estruturação; é o meio e o espaço um artefato por excelência. O espaço-rio Parnaíba entendido como espaço social, vivido208 é, parafraseando Lefebvre (1976), lócus da reprodução das relações sociais de produção, isto é, a reprodução da sociedade.

Temos, pois que nos decidir, uma vez que as especialidades do rio e da navegação fluvial são múltiplas. O lugar existe... o lugar natural, o lugar humanizado, o lugar vivido, unidos entre si por estruturas sociais cuja coerência sublinhamos. Mas se entre o lugar e os indivíduos as relações não parecem duravelmente fixadas é porque a implantação da navegação a vapor pertenceu a um passado próximo... Como diz Frémont “as paisagens inteiramente ‘humanizadas’ não deixam por isso de ser ‘naturais’”. Nestas condições, o rio Parnaíba não pode de maneira nenhuma ser definido como um espaço bem delimitado, tão nítidos nos seus contornos e na sua duração, mas pode ser entendido como sucessivas “conchas” parafraseando Bachelard209, da intimidade ao desconhecido, do temperamento pessoal ao das contingências históricas. Entendemos, portanto, que a navegação a vapor e suas imediatas comunicações com o interior se inserem dentro de uma cadeia mais ampla. Isso requer uma perspectiva no qual, o surgimento/ressurgimento das cidades-beira e as comunicações transoceânicas e interiores estão incluídas. Esta perspectiva, certamente mudou o aspecto espacial do vale do Parnaíba e se tornou o coração de muitos outros projetos regional.

207Entidade: S.f.1. aquilo que constitui a essência de uma coisa; existência, individualidade; ente; ser. 2. Tudo

quanto existe ou pode existir. 3. Bras. Sociedade ou grupo que dirige as atividades de uma classe. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda.- Rio de Janeiro: Objetiva, 2001

208 O espaço vivido é uma experiência contínua, egocêntricos e sociais, um espaço de movimento e um espaço-

tempo vivido que se refere ao afetivo, ao mágico, ao imaginário. É também um campo de representações simbólicas, conforme aponta ISNARD (1982) rico em simbolismos que vão traduzir em sinais visíveis não só o projeto vital de toda a sociedade, subsistir, proteger-se, sobreviver, mas também as suas aspirações, crenças, o mais íntimo de sua cultura. ISNARD, Hildebert. O espaço geográfico. Coimbra, Almedina, 1982.

3.1 – Breves Notícias da Capitania de São José do Piauhy

Histórica e geograficamente, o Piauí210 apresentou-se com duas regiões distintas, a zona do sul e a do norte do estado, com sua administração e governo no centro da Colônia. A situação geográfica das duas regiões apresentou diferenças importantes sob o ponto de vista do desenvolvimento da Capitania e formação das cidades. Conforme a historiografia tradicional211 piauiense foi pelo sul que entraram os primeiros povoadores (criadores). Isso se deu segundo Miranda (1938), porque “todas as transações desde os tempos coloniais das zonas interiores sul do Estado do Piauí ter sido feita com a Bahia”. (MIRANDA: 1938, p.75). Já a região mais próxima do litoral que recebia influência da navegação marítima era o “caminho que percorriam aqueles que transitavam do Ceará para o Maranhão e vice- versa”. (FRANCO: 1961, p.66)

O devassamento e o povoamento da Capitania São José212 se fizeram no roteiro dos rios213, no interesse da criação do gado e da pequena lavoura de subsistência. Suas terras serviram desde o início às fazendas de gado bovino, que logo se multiplicaram, tornando-se

210 O estado do Piauí se localiza na região intermediária das bacias do rio São Francisco e do Tocantins. Ocupa

lugar na extensa faixa de campos e florestas que se estendem de norte a sul, entre o Oceano e a beira oriental do grande planalto brasileiro. Insere-se nas regiões do chamado “sertão nordestino” onde prosperaram, inicialmente, fazendas de gado, principal atividade da Capitania. As terras piauienses eram conhecidas, segundo Mavignier (2005, p. 19), “como Sertão dos Rodelas210 e fazia parte dos Sertões de Dentro, que

partindo de Salvador chegavam até Aldeias Altas, hoje, cidade de Caxias, no Maranhão. Já os caminhos mais próximos do litoral, de Salvador até São Luís, passando pelo Norte do Piauí, marcavam os Sertões de Fora”. Entre os anos 1660-1670, esta região se tornou objeto de intensa penetração. MAVIGNIER, Diderot dos Santos. No Piauhy, na terra dos tremembés. Parnaíba. Sieart Graf., 2005

211 Segundo Jacob Gorender (1978), no começo do século XVIII, por proibição régia, a criação de gado só era

permitida à distância de 10 léguas a partir da costa marítima. A esta altura, as fazendas criatórias já se achavam adentradas pelo sertão nordestino, até o interior do Piauí e Maranhão. Eram chapadas distantes do mar, onde se localizavam os primeiros currais, aproveitando as várzeas dos rios. Contudo, diferente de outros territórios nordestinos, a colonização no Piauí teria sido feita do interior para o litoral. Ver GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. Já Pe Cláudio Mello (1983) em suas pesquisas nos arquivos portugueses concluiu que o povoamento do norte do Piauí antecedeu ao do sul e enfatiza que se deu pelo litoral, ainda no século XVI. Segundo ele, no final do século XVI o náufrago Nicolau de Resende esteve no litoral, mais especificamente no Delta do rio Parnaíba, mantendo contato com os índios Tremembés durante 16 anos. Essa conclusão contradiz a historiografia tradicional.

212 As terras que configuravam a Capitania São José, de 1635 a 1714, pertenciam ora à província de

Pernambuco, ora à província da Bahia. Em 1695, o Piauí desmembrou-se administrativamente da jurisdição de Pernambuco, ligando-se ao Maranhão e Grão Pará, por determinação régia, a qual passou a vigorar em 1715. O alvará de 1718, assinado pelo Rei de Portugal, Dom João V, desmembrou as terras piauienses das do Maranhão e Grão Pará, tornando-as independentes da administração sediada em Belém. Mas, foi o Rei Dom José I quem determinou seu cumprimento com a Carta Régia de 29 de julho de 1758 que elevava aquelas terras à condição de Capitania independente, permanecendo, porém, alguns vínculos com o Maranhão. A distribuição de terras, como nas demais regiões brasileiras se deram pelo sistema sesmarial. Por volta de 1822 este sistema foi abolido, passando ao regime de posse onde o “senhor da terra”, ou seja, o dono da sesmaria situava fazendas às suas custas.

213 Inicialmente, se deram através dos rios, Piauí, Canindé e Parnaíba e mais tarde do Poti ao Longá, ao mesmo

tempo em que do Gurguéia e outros rios, todos afluentes do rio Parnaíba que juntos formam o grande vale parnaibano. SANTANA, op. cit., nota 100.

instrumento de povoamento e cristalizando sua vida sócio-econômica nesta atividade. Conforme Branco, “pela extrema mobilidade dos boiadeiros, cedo todo o território piauiense estava conhecido e pontilhado de fazendas e currais, que seriam o núcleo de futuros povoados, vilas e cidades”. (BRANCO: 1970, p.74). Nessas fazendas, frequentemente, junto aos currais, se edificavam capelas, marco inicial do surgimento das cidades piauienses. Conforme Franco (1961, p.31) “a igreja, erigida junto aos currais, foi, no Piauí, o marco inicial da criação dos municípios; a freguesia foi a primeira organização da vida municipal”. A primeira capela que temos notícia é a de Nossa Senhora da Vitória, erigida por volta de 1695, na Fazenda Cabrobó às margens do riacho Mocha na região dos rios Piauí e Canindé. Daí originou seu primeiro povoado que levou o nome do riacho. Mais tarde foi elevada a Vila e posteriormente, à categoria de Cidade e Capital da Capitania com a denominação de Oeiras. Assim sendo, nas formas de devassamento, povoamento e, principalmente no surgimento das vilas/cidades a questão religiosa teve papel importante. Sabe-se que o sentimento religioso imputado à natureza humana tem sido a base da vida social e das representações coletivas. A divindade protetora que exprime fé em Deus e no santo protetor por meio da capela/igreja é uma forma de representação primordial. De modo que, as cidades piauienses têm sua divindade protetora, seu santo local.

As primeiras vilas piauienses, originadas das fazendas de gado sob a invocação de santos católicos, formaram-se por volta de 1762, autorizadas e reguladas, em 19.06.1761, por Dom José I, e instaladas pelo primeiro governador da Capitania.214 Com a instauração das primeiras vilas e de uma cidade-capital teve origem a estrutura espacial-administrativa do território piauiense que recebeu o nome de capitania São José do Piauhy215 tendo como capital a cidade de Oeiras, antigo povoado Mocha. Vale dizer que esta foi a primeira organização política da Capitania de São José do Piauhy que se verificou para dar forma política ao povoamento e pela necessidade de divisão administrativa da colônia. Estas recém-criadas vilas tinham como objetivo satisfazer às imposições do fisco e do policiamento. O Rei Dom José I no intuito de incentivar a povoação concedia favores e honrarias aos que habitassem em suas sedes, tais como, “não pagar quaisquer tributos pelo

214 São elas e seus respectivos santos locais, Oeiras (1761) por Nossa Senhora da Vitória, Parnaguá

(13.06.1762) por Nossa Senhora do Livramento, Jerumenha (22.06.1762) por Santo Antônio do Gurguéia, Campo Maior (08.08.1762) por Santo Antônio do Surubim, Parnaíba (18.08.1762) por São João, Marvão(13.09.1762) por Nossa Senhora do Desterro e Valença (20.09.1762) por Nossa Senhora da Conceição.

215 A Capitania recebeu este nome em homenagem a D. José I, rei de Portugal. Já o nome da cidade é uma

homenagem ao primeiro Ministro do Reino, então Conde de Oeiras, o futuro Marquês do Pombal. Em 19.12.1815, Dom João VI eleva o Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves. Com isso, as Capitanias passaram a ser chamadas de Províncias. MAVIGNIER, op. cit., nota 210.

espaço de 12 anos”. Mas, esta medida parece não ter seduzido os vaqueiros, já que permaneceram nas caatingas e chapadas. Franco (1961, p.27) nos explica que isso ocorria porque, “o Piauí, inteiramente rural, era singularmente povoado nas fazendas”. Para ele,

o Piauí passou desconhecido e ignorado, não tanto pela distância, pois os rios, os caminhos, as estradas davam acesso pelo sertão entre as capitanias do Sul e do Norte, mas pela formação primitiva, os fazendeiros não manifestavam sensibilidade pela abertura, pelo progresso, pelo desenvolvimento, preferindo manter-se longe, distante, por uma conveniência natural ao seu domínio. (FRANCO, 1961, p.24)

Nota-se, contudo, que a estrutura da sociedade colonial piauiense teve sua base fora dos meios urbanos. As autoras de “Vilas e Cidades no Piauí” nos dá o perfil da capitania e das primeiras vilas.216

...O Piauí de então era um espaço essencialmente rural, onde se destacavam as

fazendas, pontuado por algumas vilas. A capital Oeiras, era muito pobre, tudo o que nela se consumia vinha de longe. Também Marvão, Valença e Parnaguá não prosperavam. Apenas a povoação do Poti, as vilas de Campo Maior e Parnaíba, esta última com uma incipiente atividade industrial - a charqueada e o beneficiamento do couro - e também pela facilidade de escoamento de seus produtos pelo mar, tiveram algum progresso. Esses núcleos urbanos tinham precárias condições de vida... [...] De certo modo, essas cidades eram a continuidade do espaço agrário que as rodeava. (PORTELA NUNES E ALMEIDA: 1995, p. 93)

Vê-se que por quase dois séculos a vida no Piauí foi desenvolvida em virtude da fundação das fazendas de gado, origem das primeiras freguesias e assinalando a presença dos primeiros arraiais. Mas a facilidade de comunicação do litoral da antiga Capitania, com seus portos marítimos naturais, fizeram com que esta região prosperasse mais cedo, desenvolvendo atividades econômicas de relevo. Nota-se, portanto, diferenças significativas

nas formas desses surgimentos e ressurgimentos dos currais/capelas/núcleos,

povoados/vilas/cidades, plantadosno litoral e/ou na beira-rio Parnaíba e aqueles surgidos no interior da Província. Aqueles contaram com as facilidades da navegação marítima e/ou fluvial enquanto estes se embrenhavam na mata de chapadas, caatingas e “sertão bravio”. No intuito de evidenciarmos tais diferenças será preciso fixar, que das vilas surgidas no período colonial, em sua maioria nasceram e se situaram do centro para o sul da província. Ao norte, encontravam-se somente a vila de Jerumenha (1740) e, a vila da Parnaíba (1761), margeando o rio Parnaíba que, por sua proximidade com o litoral, ensejava a ligação do Piauí com outras Províncias e com o Reino. Confira abaixo no mapa da Mapa da Capitania

216 Posteriormente, outras vilas foram surgindo muito lentamente. Observamos que de 1761, quando fora

criada a primeira vila até precisamente o ano de 1949, já na segunda República, haviam surgidos 49 vilas. Destas, sua grande maioria, surgiram a partir de 1852, ou melhor, após a mudança da capital de Oeiras para Teresina como resultantes de intensas lutas política e esforços conjugados. Esses surgimentos tomaram novo impulso na década de 1960 motivado pela Carta Constitucional de 1946, chamada municipalista.

de São José do Piauhy a primeira divisão política feita em 1762 e, conseqüentemente a localização de Jerumenha, mais ou menos, próxima ao rio e a de Parnaíba à sua beira.

Figura 20 - Mapa da Capitania de São José do Piauhy. Primeira Divisão Política, 1762. Fonte: Arquivo Particular de Diderot Mavignier.

Parnaíba -PI.

Em fins do período colonial os governantes piauienses volveram o olhar para a região beira-rio Parnaíba, demonstrando profundo desejo em transferir a capital para um local que melhor servisseà Colônia no escoamento de suas riquezas e nos contatos com as colônias vizinhas. Sabe-se, que o mais significativo deslocamento da gestão do poder das elites agrárias do centro para o norte da província do Piauí foi propiciado pela navegação fluvial e consolidado pelo propósito que orientou a mudança da capital de Oeiras no centro da Província para a Vila do Poti localizada à beira-rio Parnaíba. Já a capital instalada à beira-rio Parnaíba, teve como conseqüência, destacar e/ou provocar o papel que passou a

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