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A lembrança aqui será fundamental não só pela proximidade dessas pessoas com o espaço que co-habitam como deuses, mas, também, é preciso saber tomar partido do privilégio do tempo, o qual torna possível explicitar as condições históricas que à época apenas se esboçavam. Renato Castelo Branco, em “O rio mágico” conta a história do vareiro Damião e sua balsa202 numa viagem empreendida com ‘Dick Taylor’, vindo dos Estados Unidos, logo depois de encerrada a navegação a vapor no rio Parnaíba.203 Este americano descreveu a balsa para sua amante e a convidou para a aventura de descer o rio Parnaíba de balsa. Explicou-lhe, “a balsa é uma embarcação romântica, uma palhoça flutuante, onde viveremos dias inesquecíveis, descendo o rio ao sabor das águas, parando nas margens...”.204 Damião desde criança, trabalhava como vareiro, ajudando seu pai, Jeremias,a transportar passageiros entre Amarante e São Francisco do Maranhão, empurrando a canoa com uma longa vara. Seu pai fora vareiro de barcas, “ao tempo em que o rio era grande conduto da produção do estado. Em conseqüência do fim da navegação, Jeremias, pai de Damião resolveu, então, se dedicar ao transporte de passageiros de uma para outra margem do rio, na cidade de Amarante.” (CASTELO BRANCO: 1987, p.75).

A balsa partiu de Teresina de manhã cedo. Damião “desatou as amarras, soltou a balsa e empurrou-a com a vara para colocá-la na corrente. Aos poucos a balsa foi ganhando velocidade, arrastada pelas águas”. Durante a viagem “pequenas lanchas e canoas a remo cruzavam pela balsa, os passageiros acenando, gritando cumprimentos e pilherias”. Assim a balsa de Damião “levada pela corrente... deslizava rápida sobre as águas”. Ao lado de Damião, “tronco nu, vestindo apenas um calção de banho, Dick empunhava canhestramente a vara que fora de Jeremias, tentando ajudar o companheiro nas manobras da balsa, evitando os bancos de areia, os troncos de árvores arrancados pela torrente das ribanceiras”.

202 Jeremias e Damião moravam na balsa, atracada no cais de Amarante. Com a morte de Jeremias, Damião,

agora com vinte anos resolveu deixar Amarante. Soltou a balsa na corrente e veio descendo o rio ate Teresina. Sua palhoça, montada sobre a balsa, era a mais primitiva possível. Mal abrigava as duas redes, a dele e a de Jeremias, cujo lugar era agora ocupado pela bela rede de varandas rendadas que Dick comprara em Teresina. CASTELO BRANCO, Renato. O Rio Mágico. São Paulo: EDICON, 1987.p. 75-81

203 Este americano ao chegar à mina Boi Morto, entre outras pedras, ofereceram-lhe uma opala, pedra

semipreciosa, que a comprou prontamente para sua amante. Ibid., p. 77.

204 Ibid., p.76. A amante gostou do presente, mas não aceitou o convite e ele resolveu iniciar a viagem só com

Em alguns trechos, de curvas fechadas e forte correnteza, exigia enorme perícia para evitar que os jogassem sobre os barrancos. Esporadicamente divisavam, nos pequenos portos, uma minúscula venda e, então, “atracavam para se abastecer...” Nunca viajavam depois do pôr do sol, mas, naquela noite, quando a lua cheia clareava tudo, resolveram navegar um pouco mais. Ao entardecer, paravam nas margens do rio para acampar. “Damião limpava um trecho do solo, armava as redes sob uma árvore, acendia uma fogueira para preparar o jantar e espantar os animais” para o descanso merecido. De manhã cedinho, retomavam a balsa. "Às vezes, a torrente do rio, ruidosa, o marulho da água batendo no casco, o zunir do vento no estaiamento o barco na rota do Rio..." (CASTELO BRANCO: 1987, p.75-81)

Os vareiros criavam na beira-rio Parnaíba seu ambiente de contatos e divertimentos nos intervalos das suas longas viagens. Conforme Raimundo Sousa Lima “sua presença ali era assim a razão de ser das noitadas alegres e ruidosas, entre mulheres, bebidas e os atritos esporádicos com estranhos ou companheiros nas festas de noite inteira”. (LIMA: 1987, p.15). Mencionou que conheceu alguns vareiros, entre eles “Pedro Cambota, Zé Capivara, Chico Preto, Zé Calixto, Miguel Umbigo entre outros. Sobre este último diz “Miguel Umbigo cansou de varejar ‘Pau na Cara’ do Porto Salgado até Floriano, dia e noite...”. Explica como era essa navegação em conformidade com as duas estações, a ‘das chuva’ e as ‘do sol’, ou seja, no inverno e no verão.

No verão ate que o terral ajudava um bocado a vela retalhada de remendos a empurrar o batelão ronceiro, metedor de ‘querosene’ pelas costuras para estragar a carga de sal. Mas no inverno, era como se o individuo viajasse para o inferno, com a vara no peito, chuva nos lombos e mais um dilúvio de muriçocas para chupar o sangue cristão na escuridão da noite. (LIMA: 1987, p.39)

Já Humberto Guimarães (2001) conta sua própria viagem feita numa balsa com seu pai em meados do século XX. Conta que a balsa na qual viajou só iria até Floriano que alguns ainda chamavam Colônia. Explicou que numa balsa carregada de arroz seguiram todos os passageiros, indo na balsa de porco somente os embarcadiços e o negro Tião, este encarregado de cuidar dos suínos, dar-lhes-ia banho e ração.

As vogas tracionadas, pelos membros musculosos de dois mestres, “Ponciano e Godô, e dois contramestre, Pedão e Senhurinha, fazem o conjunto gemer e a balsa, assim impulsionada, vai preguiçosamente tomando a direção, as águas encharcando os terreiros. Os embarcadiços, torsos nus... suam do esforço para alinhar a embarcação, firmando os pés no travão de apoio que firma os embonos centrais, musculatura tensa, jogam os vogais em rítmicos movimentos, os mourões suportando, firmes, o esforço grande. Lá mais embaixo a outra balsa.... E as balsas vão dentro da noite enluarada...[...] Daí a pouco as duas balsas estão no meio do rio descendo ao sabor da corrente, as vogas suspensas, a balsa de arroz encostada a cabeceira na traseira da outra.... A viagem continua, as balsas separando-se, os embarcadiços tomando as vogas. (GUIMARÃES: 2001, p.101-119)

J.Tobias Duarte em “As Balsas do Parnaíba”, conta sobre uma viagem que empreendeu a Santa Filomena, em 1934. É interessante observar que esta viagem e o uso das balsas no rio Parnaíba se deu quando já se entrava em curso o fim da navegação a vapor no rio Parnaíba. As viagens em balsas eram, ainda, no espaço d’ águas dos balseiros e/ou d’águas vermelhas, a via de transporte que continuava desafiando. J. Tobais Duarte recorda dizendo “... vem a balsa a mercê das águas, do alto Parnaíba ou de seus afluentes mais importantes, trazendo para o porto de Floriano e, em parte, para o de Teresina, todos os gêneros de exportação e alimentício daquela zona, bem como os modestos passageiros daquela longínqua região”.205 E passa então a descrever a sua própria viagem.206 “Já prevendo demora fui para o porto somente às 2 horas. Estava tudo pronto. Faltava apenas um remo que o mestre fazia com um longo facão colins. - Saimo as 2 hora, patrão, disse-me ele, estamo fasendo esta pá de remo e vou dá ainda, umas acochadas naquela travessa, que tão fraca”. Segundo ele, depois das 4 horas voltou estava somente “o contra-mestre sentado encima da voga já em posição, olhando a amplitude displicentemente, tirando com a ponta de uma faca fina, alguns fragmentos deixados nos dentes, pela ultima refeição. Nu da cintura para cima, calças cortadas no joelho, chapéu de palha de abas grandes...”. Nosso viajante perguntou a ele pelo mestre. Respondeu-lhe que “andava fazendo umas despedidas, mas que voltaria logo”. Por volta das cinco horas, “vinha o mestre completamente suado, cara relusente, correndo o indicador deitado ao longo da testa e jogando para os lados o suor que lhe queria tomar a vista”. Por fim, o mestre vai embarcar. “Põe um pé no beiço da balsa, mas volta novamente, para abençoar o filho do compadre Jerônimo, que, a toda carreira vinha com braço extendido. - Desata! - grita o mestre, finalmente, já dentro da balsa, com a mão firme no punho do remo”. E o contra- mestre “puxa a corda grossa que segurava a balsa a raiz forte da mangueira secular, que serve de abrigo às embarcações daquele porto”. - Maranhão! – grita outra vez o mestre. E o contra-mestre,

como que se espreguiçando seguro no punho da voga, chega quase a deitar o dorso sobro o estrado, congestionando o rosto numa expressão de força máxima, volve o remo para o lado do Maranhão, fazendo-o roncar na água, que recocheteando aqui e ali, formando funis, vae, depois, brincar em espumas sobre a superfície liquida e mansa. E dando mais outras

205 Publicado no Almanaque da Parnaíba de 1939

206 A ultima vez que estive em Santa Filomena, pequena vila piauiense e ponto terminal da navegação no rio

Parnaíba, foi em fins de 1934. Lá chegando, depois de longa e fatigante viagem pelo interior, e sabendo do meio de transporte usado, procurei logo passagem numa balsa que estava de viagem marcada para o dia 22 de Setembro, se não me engano. As balsas nunca saem no dia marcado. A sua partida depende da conveniência dos negócios de seu dono. Assim, a que eu devia sair no dia 22, adiou para o dia 26, a fim de aguardar uns couros de boi esperados de Goiaz, e posteriormente, para o dia 29, afim de levar algumas peles de gato maracajá, pedidas de Gilbués, pois havia dito um balseiro chegado recentemente de Floriano, estavam dando muito dinheiro naquele mercado. E como não me era mais possível esperar, fadei passagem noutra balsa, que estava de saída naquele mesmo dia, a 1 hora da tarde. J.Tobias Duarte em “As Balsas do Parnaíba”, ibid.

remadas, enquanto a balsa vai se afastando da margem e descendo mansamente a correnteza não menos mansa, ele grita, tomando um fôlego que lhe renova as forças empregadas, cheio de saudades e recordações para a mulata que, no barranco do rio, enchuga com as costas das mãos os seus olhos saudosamente chorosos, esta expressão simples de caboclo, mas significativa como o seu próprio sentir: - Êta, mulata me mate, mas não me maltrate!... (Parnaíba, outubro 1938).

Como se vê, desde cedo, no Piauí, a navegação fluvial representara a unidade e o desenvolvimento regional. Eram as canoas, as balsas, os botes, as barcas, as barcaças etc., a subir e descer o rio Parnaíba, levando e trazendo pessoas e mercadorias, fazendo aquele comércio “incipiente”. Eram estas embarcações rudimentares que traziam e levavam as mercadorias e as pessoas. Mas vimos, ainda, que se podiam encontrar, pelos meados do século XX, o vestígio dos vareiros com suas balsas, contudo numa fase como as demais, utilizada para as lidas do rio e do comércio operante e/ou inoperante. Aquelas “gentes do rio” foram a pedra angular na formação do império comercial da região, cabendo-lhes, lugares de destaque no encadeamento da ação aglutinadora em que de pronto se transformaria consolidando o rio Parnaíba como um rio genuinamente de integração comercial. Este indivíduo fluviário estava sempre na linha de frente, garantindo sua presença como fonte alimentadora de energia física na luta com suas barcas e nalguns casos passando até mesmo despercebido no torvelinho da lida diária.

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