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Na Bahia, a permanência da urna foi longa: entre 18 de maio e 5 de julho. A ideia era que os despojos estivessem em Salvador no dia 2 de julho, quando se comemora a expulsão de tropas portuguesas do território baiano em 1823. Além disso, este era um dos Estados que, naquele ano, melhor refletia os números e as cores do Milagre. A Bahia crescia, se modernizava, guiada pelas mãos fortes de Antonio Carlos Magalhães – primeiro como Prefeito de Salvador (1967-1970), depois como Governador do Estado (1971-1975), homem de confiança do regime, nomeado por este para os dois cargos.

Nesse sentido, ainda em virtude das comemorações do 2 de julho, algumas cidades do interior do estado, como Cachoeiro, Santo Amaro da Purificação e Ilhéus, solicitaram a visita da urna, a qual acabou sendo negada pela CEC186. Quanto à chegada dos despojos, o relatório da Comissão dava conta de que ainda se verificava a presença de estudantes e do público em geral, mesmo após o longo atraso do avião da FAB que transportava a urna. Em virtude de uma pane, o avião que estava previsto para chegar às 14 horas, somente aterrissou no Aeroporto Dois de Julho às 18 horas e 30 minutos187.

Durante a estada do esquife em Salvador, ou mesmo em razão da sua longa permanência naquela cidade, o interesse do público pareceu diminuir no decorrer destes 45 dias. Assim, ainda no dia 24 de maio, o jornal O Estado de São Paulo divulgava uma matéria na qual dizia que poderia ser considerado pequeno o número de pessoas que haviam passado pela Catedral Basílica durante a primeira semana em que a urna ali esteve188. No dia seguinte, o jornal A Tarde, de Salvador, noticiava que até então, cerca de 4 mil pessoas apenas haviam assinado o livro de presenças189. Um número pouco expressivo se compararmos com as multidões que nos mesmos cinco dias ou menos correram para ver a urna em cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Maceió. Não obstante, é preciso considerar que o fato de as pessoas saberem que a urna permaneceria por 45 dias em Salvador, pode ter gerado uma certa acomodação e pouca pressa em visitar D. Pedro, o que pode explicar, em parte, a baixa freqüência do público.

186 Idem. Pasta 53B. Recortes de jornal: “Despojos de D. Pedro não vão ao interior”. In: A tarde, 25/05/1972 e “Comissão veta ida de D. Pedro a Cachoeira”. In: O Estado de São Paulo, 25/06/1972. Interessante observar na matéria do jornal a decepção provocada no município de Cachoeira em virtude da negativa da CEC ao seu pedido.

187 Idem. Pasta 53A. Major Alfredo Gabriel de Miranda. Relatório da Peregrinação cívica dos despojos do

Imperador D. Pedro I. Estados: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Território de

Fernando de Noronha e Bahia.

188 Idem. Pasta 53B. Recorte de jornal: “A urna é pouco vista na Igreja”. In: O Estado de São Paulo, 24/05/1972. 189 Idem. Recorte de jornal: “Despojos de D. Pedro não vão ao interior”. In: A tarde, 25/05/1972.

De toda forma, no dia 5 de julho, a urna partiu de Salvador rumo a João Pessoa após uma cerimônia pequena, simples e sem discursos, na qual estavam presentes somente autoridades civis e militares do Estado. “A 50 km por hora o cortejo cortou as ruas de Salvador ainda desertas, às seis e meia de uma manhã nublada”190. Assim, a cerimônia de despedida de D. Pedro I de Salvador, parecia confirmar a ideia de que ele esteve relativamente esquecido ali durante sua longa estada na cidade:

Os restos mortais de d. Pedro I deixarão Salvador na manhã de hoje, encerrando uma visita de 45 dias durante os quais estiveram esquecidos em um altar secundário da Catedral Basílica. (...) A visita de d. Pedro I a Salvador passou quase despercebida. O povo não foi esclarecido nem motivado para ir à Catedral Basílica, onde a urna ficou em local inadequado. Nos primeiros dias, quando ficou em frente ao altar-mor, a curiosidade foi grande (…) Depois que foi mudada para o altar lateral, foi praticamente ignorada. Quem entrava na Catedral e via guardas perto do esquife, pensava tratar-se do velório de “algum militar importante”.191

De uma certa forma, não deixava mesmo de se tratar de um militar importante. No entanto, é interessante observar o desinteresse do público de Salvador com relação à visitação da urna de D. Pedro I em contraste com as insistentes tentativas das cidades do Recôncavo baiano para receber o esquife, alegando a importância histórica destes municípios no processo de Independência192. É fundamental, sobretudo, observar a Bahia como um caso paradigmático do fato de que nem sempre o consenso em torno do regime significou o mesmo com relação às comemorações do Sesquicentenário193.

Como já afirmei, a Bahia conheceu um período de grande crescimento econômico e urbano, principalmente a partir da segunda metade da década de 1960, coincidindo com os mandatos de Antonio Carlos Magalhães tanto na Prefeitura de Salvador como no Governo do Estado. Neste momento a Bahia se mostrava como uma espécie de vitrine nordestina – e mesmo nacional – do Milagre brasileiro. Em outubro de 1971, a revista Veja dedicou a capa de sua edição 161 ao que ela chamava de “Brasil baiano” e falava em uma redescoberta do

190 Idem. Recorte de jornal: “Manhã nublada no adeus a D. Pedro”. In: Jornal da Bahia, 06/07/1972.

191 Idem. Recorte de jornal: “Dom Pedro deixa Salvador, onde já estava esquecido”. In: O Estado de S. Paulo, 05/07/1972.

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O pedido de visitação ao interior foi, por fim, negado pela CEC, que não queria com isso, “abrir precedentes”, recomendando às cidades que agendassem visitas de comissões e grupos interessados na visita, em Salvador. Cf: Idem. Recorte de jornal: “Despojos de D. Pedro não vão ao interior”. In: A Tarde, 25/05/1972.

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A recíproca também é verdadeira, ou seja: nem sempre o consenso em torno das comemorações do Sesquicentenário significou um consenso em torno do regime, como teremos oportunidade de analisar ao longo da tese. Por hora, cabe centrar no estudo do caso da visita dos despojos de D. Pedro I à Bahia.

Brasil pela Bahia: comemorava-se o crescimento do turismo de 17,4% ao ano, contra 9,2% da

Guanabara; a expansão industrial em Salvador, o aumento de consumo de energia elétrica, a melhoria dos sistemas de comunicação. É certo, a cultura, a religiosidade e a culinária baiana tinham, mais que qualquer obra modernizante, o papel central. O progresso casava com as

peculiaridades da terra. Aí residia o sucesso baiano:

A cada dia que passa, na imaginação ou na certeza de um crescente número de brasileiros e estrangeiros, cria-se e consolida-se a imagem de que a Bahia, terra talvez remissa e um pouco desleixada, mas seguramente nada melancólica, é um lugar maravilhosamente encantado, onde céu, mar, coqueiros, sobrados, temperos e temperamentos combinaram-se com a finalidade de conduzir as pessoas ao estado de espírito usualmente conhecido por felicidade194.

E não era também este estado de espírito chamado felicidade que a ditadura - associando passado e presente, 1822 e 1972, Independência e Milagre – comemorava com as festas do Sesquicentenário? Ainda assim, na Bahia que se modernizava em ritmo milagroso, porém sem perder o desleixo, D. Pedro ficou esquecido. Apesar inclusive dos esforços da CEC em juntar naquele ano a comemoração nacional/oficial aos festejos locais, fazendo com que a passagem do Imperador coincidisse com o 2 de julho, D. Pedro ficou esquecido.

Na verdade, reside, acredito, justamente no peso das tradições locais no que tange à memória das lutas pela Independência na Bahia o fato de D. Pedro I não ter despertado ali o mesmo interesse que despertou em outras capitais. De acordo com Hendrik Kraay, desde o século XIX que o 2 de julho de 1823 se estabeleceu como a mais importante festa cívica baiana, superando mesmo o 7 de setembro. Segundo o historiador:

A festa demarcava uma identidade baiana em oposição a duas grandes outras – portuguesa e africana (...) Como uma festa aparentemente local, com grande concorrência popular, o Dois de Julho se relacionava de maneira ambígua com o Estado imperial brasileiro. Nunca se tornou feriado nacional, mas os patriotas baianos frequentemente tentavam fazer reconhecer a libertação de Salvador como um dos eventos fundadores do Brasil; sua comemoração da Independência brasileira contava uma história das origens do Brasil que contrariava aquela apresentada pelo Estado imperial195.

194

“A redescoberta do Brasil”. In: Veja, 06/10/1971, p.42.

195 Hendrik Kraay, “Entre o Brasil e a Bahia: as comemorações do Dois de Julho em Salvador, século XIX”. In:

Para além disso, ainda de acordo com Kraay, o 2 de julho possui características que o distinguem dos ritos oficiais do Estado brasileiro, “altamente estruturados, nos quais a participação foi cuidadosamente controlada de cima”. O ritual cívico baiano foi desde o século XIX caracterizado por ter sido

criado de baixo, e não ordenado por autoridades do Estado. Além disso, o Dois de Julho foge da categoria de festa cívica, transformando-se em algo semelhante ao Carnaval, com toda sua liberdade e licença que todavia respeita as hierarquias sociais fundamentais196.

Os rituais em torno de D. Pedro I, altamente estruturados, tão ao gosto da tradição cívica brasileira e, sobretudo, cara à ditadura civil-militar, parecia, deste ponto de vista, estranha à lógica mais ou menos carnavalesca que caracterizava o 2 de julho baiano. A Bahia moderna, feliz, podia até se reconhecer, em 1972, na euforia comemorativa dos tempos do

Milagre, mas continuava não se reconhecendo no oficialesco 7 de setembro de 1822.

Continuava preferindo a memória carnavalizada do 2 de julho de 1823.

Em julho, os despojos imperiais chegaram a Fortaleza. Ali, de acordo com a imprensa local, a intensa participação popular foi a nota de destaque durante a passagem do cortejo. Nas escadas do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, onde permaneceram os restos mortais de D. Pedro, “extensas filas se formavam” e no auditório, pessoas olhavam admiradas e “os mais velhos beijavam a urna”197.

Mas, na capital cearense, o velório cívico de D. Pedro I não foi o único evento do tipo. Ele antecedeu a outro que se realizou cerca de uma semana depois: Fortaleza preparava-se para receber, exatamente cinco anos após sua trágica morte, no dia 18 de julho, os restos mortais do Presidente Marechal Humberto Castelo Branco. Assim como Pedro I retornava ao Brasil, seu torrão predileto, Castelo Branco retornava ao Ceará, sua terra amada198.

Os despojos do ex-presidente foram trasladados juntamente com os de sua esposa, dona Argentina Viana Castelo Branco do Rio de Janeiro para Fortaleza. Para o Marechal e sua esposa, o governo local mandou construir um Mausoléu nos jardins do Palácio Abolição. O ex-chefe da Nação descansaria agora na sede do poder estadual, onde poderia zelar por e inspirar, talvez, os governantes do presente, conterrâneos seus.

196

Idem, p.50.

197 Idem. Recorte de jornal: “Dom Pedro chega e fica até amanhã.” In: O Povo, 10/07/1972. 198 “‘Amor à família e aversão à ditadura’”. In: Folha de São Paulo, 19/07/1972, p.5.

A cerimônia de inumação foi dirigida pelo Presidente Médici, que chegara à Fortaleza ainda na manhã do dia 18. A cidade se preparava para receber, de uma só vez, Médici – o

presidente do Milagre e Castelo Branco – o herói da Revolução. No Aeroporto, onde Médici

aterrissou e no hotel para onde se dirigiu, populares se acotovelavam à espera de um aceno, talvez algumas palavras, do presidente199, o qual mais uma vez ficou apenas nos acenos e sorrisos. Mais tarde, no Palácio Abolição, cerca de cinco mil pessoas acompanharam as cerimônias de inumação dos restos mortais de Castelo Branco e Dona Argentina. Os documentos disponíveis não nos permitem saber se o número foi superior ou inferior àquele verificado quando da passagem de D. Pedro I poucos dias antes. Trata-se, no entanto, de número similar àquele registrado em muitas capitais do Norte e Nordeste do país, como por exemplo, São Luís.

Para além disso, o que importa destacar é que Fortaleza estava em festa. Em menos de dez dias acompanhou e compareceu aos rituais cívico-fúnebres em torno de D. Pedro I e Castelo Branco. Além disso, recebeu com pompa o presidente Médici, que era esperado pelas autoridades locais para que pudesse ver de perto como a cidade crescia e se modernizava, integrando, mais que nunca, o quadro megalômano do Brasil grande, colorido pelas tintas do

Milagre200.

Em muitos aspectos o ritual cívico-fúnebre de inumação dos despojos de Castelo Branco se assemelhava e antecipava – em forma de miniatura, é certo – o que se verificaria menos de dois meses depois, em São Paulo, no dia 6 de setembro, em honra do Imperador Pedro I. Essencialmente, ambas as cerimônias se assemelhavam na medida em que guardavam o mesmo caráter solene, oficial e hierarquizado. Da mesma forma como para D. Pedro I, populares foram receber a urna mortuária no Aeroporto e a acompanharam, em forma de cortejo até a Igreja do Pequeno Grande, onde o corpo do ex-presidente e de sua esposa, dona Argentina, permaneceram expostos à visitação pública, em câmara ardente, por dois dias201.

Assim como se verificaria em São Paulo de forma potencializada na véspera do 7 de setembro, em Fortaleza o 18 de julho foi transformado em uma grande festa cívica em cujo

centro estava o corpo do primeiro presidente da Revolução, sendo velado, chorado. Mas não

menos importante, da mesma maneira que na capital bandeirante, no Ceará reverenciava-se o

progresso, o Milagre, o Brasil país do futuro. E se em setembro Médici inauguraria o metrô

199

“Médici aplaudido em Fortaleza”. In: Folha de São Paulo, 19/07/1972, p.5. 200 Idem, idem.

paulista, em Fortaleza ele era esperado para inaugurar grandes avenidas. E assim o fez, rasgando a cidade em seu Galaxie preto, enquanto o governador Cesar Cals o informava que naquele momento o presidente estava inaugurando as avenidas Borges de Melo e Aguanambi, construídas em tempo recorde – como era mesmo o tempo do progresso à moda do Milagre – pela prefeitura, ligando a Zona Sul ao Centro da cidade202.

O cortejo dos despojos de Castelo Branco até o Palácio Abolição se investiram também das honras militares e de chefe de Estado adequadas. Os corpos foram conduzidos ao mausoléu em dois carros do Corpo de Bombeiros, que eram precedidos por uma escolta formada pelos alunos do Colégio Militar de Fortaleza que, a cavalo, seguiram em marcha reduzida pelas ruas de Fortaleza, onde se perfilavam populares – estudantes, sobretudo. No Palácio Abolição, soldados do Corpo de Bombeiros vestidos com uniforme de gala e ladeados por dez ex-pracinhas da FEB conduziram as urnas mortuárias até as eças situadas ainda do lado externo do mausoléu e próximas do lugar ocupado pelo Presidente Médici e demais autoridades. Em seguida, discursaram o comandante Paulo Castelo Branco, filho do Marechal e o governador Cesar Cals em nome do povo cearense203.

Assim, ao contemplar o presidente Castelo Branco com as mesmas cerimônias cívico-

fúnebres que foram destinadas a D. Pedro I, naquele ano considerado o herói máximo da Nação, buscava-se inserir a Revolução de 1964 no altar cívico da História-Pátria, atribuindo-

lhe inclusive seu próprio herói, Castelo Branco. Ao mesmo tempo, procurava situar o grande

homem da Revolução como um grande homem da história recente do país, como fazia supor a

presença dos ex-pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) escoltando a urna presidencial, lembrando – para além de seu papel como líder da revolução de 1964 e primeiro presidente revolucionário –, sua passagem, heróica, pela Segunda Guerra Mundial. Através da presença dos veteranos da Segunda Guerra, buscava-se lembrar a atuação do ex-presidente na Itália, como Chefe da 3ª seção (de operações) do Estado-Maior da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE)204. O herói de 1964 para além de 1964. A Revolução tornava-se, assim, uma espécie de devir inelutável da história nacional, na medida mesma em que seu grande líder já se mostrava bravo soldado alhures. O herói de 1964, já era, portanto, herói antes da Revolução. Esta confirmava sua grandeza histórica, seu sentido de liderança, sua vocação. Representativo disto é o trecho do discurso do governador do Ceará, que se referia a Castelo

202 “Médici aplaudido em Fortaleza”. In: Folha de São Paulo, 19/07/1972, p.5. 203

“Castelo Branco já repousa no Ceará”. In: Folha de São Paulo, 19/07/1972, p.5.

204 Cf: Mônica Kornis. “Humberto Castelo Branco”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro. Disponível em: http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx. Acesso realizado em: 26/12/2011.

Branco como o menino de Messejana, veterano da FEB, herói de Montese e Monte Castelo,

revolucionário de 1964, estadista da República205.

E se a cerimônia de inumação em Fortaleza foi o ponto máximo da reverência à memória de Castelo, não foi o único momento em que houve homenagens ao ex-presidente em 1972206. Para a grande frente militar e civil que apoiou o golpe em 1964, Castelo Branco aparecia como o líder incontestável do movimento, lembrado ao mesmo tempo como um revolucionário e um liberal; um militar, devotado às hierarquias, mas capaz de transcender os limites da caserna207. Uma espécie de Salvador, segundo os modelos definidos por Raoul Girardet. Ou seja, o chefe providencial, o herói redentor, “aquele que liberta, corta os grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más”208.

Tratava-se também de um eminente estadista, alguém à altura das circunstâncias, graves, que o levaram ao poder. Um homem sereno, porém com grande energia e discernimento para compreender que a Revolução somente faria sentido se fosse capaz de realizar uma vasta e profunda “obra de reconstrução nacional, exigida por um país que, àquela altura, se encontrava à beira do caos”209. Um Chefe a quem a Nação não escolheu, mas que

deveria tê-lo aceitado, como bem resumia em 1972, recordando seus escritos de 1964, o

jornalista David Nasser:

Não fomos nós – dizia eu – que escolhemos este Governo – nascido ainda sob a fumaça de uma revolução sem pólvora. Mas, por acaso, por sorte ou por vergonha, escolheram um homem íntegro. (...) Por que, então, não cerramos fileiras em torno desse homem feio como um tatu, amargo como um jiló, mas puro como um anjo velho? 210

Era este o modelo representado pelo Marechal para expressivos segmentos da sociedade que o apoiaram a partir de 1964. Era este o sentido da recuperação de sua memória operado em 1972. Sobretudo porque, para muitos destes setores, “os altos índices da expansão

205 “Despojos de Castelo são entregues aos cearenses”. In: Jornal do Brasil, 19/07/1972, p.6.

206 Por exemplo, a Comissão Executiva Estadual de Pernambuco (CEE/PE) propôs uma homenagem a Castello Branco. Naquele estado, nos dias 18 e 19 de abril houve festa em comemoração à primeira batalha contra a

invasão holandesa. Assim, em virtude da grande admiração do Marechal pelo que ele denominava a “grandeza

cívica e patriótica dos Guararapes”, justificava-se a homenagem, durante os festejos em homenagem àquela batalha, segundo a CEE/PE.

207 “Documento: Castello – Os arquivos do Marechal revelam um militar revolucionário e liberal”. In: Veja, 05/04/1972, p.44.

208

Raoul Girardet. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 17. 209 “Cinco anos depois”. In: Folha de São Paulo, 19/07/1972, p.5.

brasileira, na atualidade, só foram possíveis, em grande parte, graças à verdadeira preparação do terreno efetuada pelo presidente Castelo Branco”211.

2.2) O herói da ditadura

Em meados de agosto, antes de seguir para São Paulo, a última parada da longa viagem que realizou pelo país, a urna de D. Pedro I retornou ao Rio de Janeiro. Na antiga capital imperial permaneceu por mais 18 dias e a expectativa era de que neste retorno o público fosse superior aos vinte e cinco mil visitantes que passaram pela Quinta da Boa Vista em abril212. Dali o esquife partiu de trem para São Paulo. Já era setembro. As comemorações do Sesquicentenário se encaminhavam para o seu grand finale durante a Semana da Pátria. O Brasil havia, então, participado festivamente de um longo velório cívico de cinco meses.

De maneira geral, pode-se dizer que a peregrinação dos despojos de D. Pedro I pelas capitais estaduais foi um sucesso. Ou, ao menos, que ela alcançou os objetivos a que se propôs. Em determinados lugares, como Maceió, Curitiba, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Goiânia, Fortaleza e mesmo Belo Horizonte, onde a festa de despedida foi cancelada, a afluência do público foi grande. Inclusive na Bahia, onde o êxito da passagem do Imperador é questionável, o desejo de receber a urna manifestado por algumas cidades do interior, evidenciava, em certa medida, o status que o evento ganhou ao longo do ano.

De toda forma, é preciso considerar a pouca emoção despertada pelos rituais em

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