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“Lisboa e sua gente estavam frias” quando D. Pedro zarpou do Tejo. Doze dias depois, quando chegou à Baía de Guanabara, o Imperador encontrou “uma manhã luminosa e cheia de calor, em todos os sentidos”, anunciava a matéria publicada pelo Jornal do Brasil135 no dia

seguinte à chegada dos despojos mortais de D. Pedro I no Rio de Janeiro, vindos de Lisboa. Assim, pelo que se lia na imprensa brasileira, apesar da pompa com a qual a cerimônia de trasladação dos despojos de D. Pedro I – D. Pedro IV para os portugueses – foi realizada em Lisboa, a sensação geral pelas ruas daquela cidade era de profunda indiferença: apenas 200 pessoas acompanharam as solenidades.

Uma Lisboa fria em temperatura e calor humano assistiu quase impassivamente às protocolares cerimônias do traslado, com apenas alguns populares nas ruas presenciando o acontecimento, muito respeitosamente, mas sem a menor participação136.

Os jornais locais, no entanto, noticiavam o evento de outra maneira. No dia dez de abril de 1972, o periódico O Século, de Lisboa, anunciava em letras garrafais: “D. Pedro regressa ao Brasil sem sair da mesma Pátria”137. Uma expressão, talvez, das tentativas de fortalecer a vocação ultramarina portuguesa que, naquele momento, passava por fortes contestações, sobretudo a partir dos anos 1960, quando tiveram início os movimentos de guerrilha pela libertação nacional nas colônias africanas.

De acordo com Fernando Catroga, para além das intenções de reforçar a “comunidade luso-brasileira”, a participação de Portugal nos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil deve ser compreendida tendo em vista o momento de contestação pelo qual passava o Império português dentro das próprias colônias: “(...) pretendia demonstrar que a negação do reconhecimento do direito à independência das Colônias em luta não era uma questão de princípio, mas de facto, pois insinuava-se que aquelas, afinal, ainda não reuniam as condições necessárias para serem novos ‘Brasis’ em África”138. Assim, ao celebrar a manutenção dos

135 Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. Recorte de jornal: “Saída foi triste, mas chegada muito alegre”. In: Jornal do Brasil, 23/04/1972.

136 Idem. Recorte de jornal: “Lisboa indiferente ao traslado de Pedro I”. In: O Estado de São Paulo, 11/04/1972. 137

Idem. Recorte de jornal: “Lisboa indiferente ao traslado de Pedro I”. In: O Estado de São Paulo, 11/04/1972. 138 Fernando Catroga. Nação, mito e rito: religião civil e comemoracionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005, p.141.

laços de amizade com a antiga colônia americana, reafirmava-se, de alguma forma, a intenção de Portugal se manter ligado às províncias ultramarinas africanas.

Uma tentativa desesperada e mesmo fracassada diante da indiferença da sociedade que assistia às cerimônias. Para aquela sociedade que vivia sob uma ditadura que já havia sido bastante popular, mas que estava então, decadente, era como se até D. Pedro IV, o Libertador, grande herói português, estivesse abandonando o barco. Mais que indiferente, o clima nas ruas era o de um triste e lúgubre velório: “Os poucos populares nas ruas limitavam-se a retirar seus chapéus e parar respeitosamente à passagem do caixão para, em seguida, prosseguir em seu caminho”139.

Em seu discurso quando da chegada do cortejo ao Brasil, o presidente português Américo Thomaz afirmou que o Brasil fosse, talvez, “o torrão predileto” de D. Pedro140. Uma frase expressiva que, naquele momento, representava bem as diferenças entre a ditadura portuguesa e a brasileira, a decadência de uma, a pujança da outra. Dessa forma, para a sociedade portuguesa, diante de uma ditadura em franco declínio, ver partir seu rei não deveria mesmo ser algo que a fizesse se mobilizar. Restava-lhe o consolo de que, se partiam as cinzas, o coração de D. Pedro ficava com os portugueses, doado pelo próprio, em testamento, à cidade do Porto141.

Mas para o Brasil a história era outra. O retorno de seu primeiro Imperador parecia evidenciar a força e o vigor de um país que se preparava para o início das comemorações dos 150 anos de sua Independência. De um lado do oceano, portanto, a partida do rei, a decadência do governo e a indiferença da sociedade. Do outro, a volta do Imperador, o poder do governo e uma sociedade que comemorava o fato de estar vivendo um verdadeiro milagre, o Milagre Brasileiro. De um lado, um velório sombrio e enlutado. Do outro, também um

velório, porém, emocionado, cívico, que cantava com orgulho seu passado, com confiança o

seu presente e com otimismo o seu futuro. Enfim, um velório que cantava a Pátria e o retorno de seu grande herói.

De toda forma, D. Pedro deixou Lisboa sob todas as homenagens dignas de um chefe de Estado e do grande herói que ele representa para os portugueses: o presidente Américo Thomaz, acompanhou os despojos do Imperador até o Brasil no transatlântico Funchal, o qual

139 Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. Recorte de jornal: “Lisboa indiferente ao traslado de Pedro I”. In:

O Estado de São Paulo, 11/04/1972.

140 Idem. Recorte de jornal: “Brasil recebe seu primeiro Imperador”. In: Folha de São Paulo, 23/04/1972. 141 Não deixa, afinal, de ter uma certa ironia: mesmo tendo o presidente de Portugal afirmado que o “torrão predileto do Imperador” fosse o Brasil, seu coração, era no fim das contas, português, como constava em seu testamento. Aqui, uma grande festa foi organizada em torno de suas cinzas. Seu coração, permaneceu, intacto e bem guardado no Porto.

foi escoltado por uma flotilha de barcos de guerra portugueses e brasileiros. O esquife do Imperador viajou em uma capela instalada no salão da primeira classe do navio. Soldados e oficiais das duas armadas formaram a guarda de honra permanente junto ao féretro durante a viagem. Juntamente com os representantes das Forças Armadas portuguesas, viajaram também altos funcionários do governo daquele país, acompanhando o presidente142.

No Rio de Janeiro fazia sol e calor, naquela manhã do dia 22 de abril de 1972, quando chegaram os restos mortais do Imperador Pedro I. No momento em que o Funchal entrou na baía de Guanabara, o Rio de Janeiro o aguardava com uma grande festa:

Esperava-se uma festa, mas nunca como a que houve. Lá da água, após 34 [sic] dias de ausência, o que se viu deu pra vibrar (...) Desde sexta-feira que se navegava com a terra na visual, mas era longe. Assim mesmo as tripulações estavam agitadas e todo mundo se debruçava do lado direito do navio (...) Todos ficavam de olho comprido e se esqueceram de olhar o Funchal, que durante a travessia, por ser luminoso e lindo, era o alvo de todos. A agitação cresceu quando o gigante adormecido, cuja cabeça é a pedra da Gávea e os pés são o Pão de Açúcar, se definiu no horizonte143.

E se de fato, como disse o presidente português, D. Pedro preferia o Brasil, a sociedade mostrava-se também satisfeita em repatriar um de seus maiores heróis, como demonstrava o numeroso público presente no Monumento aos Pracinhas da Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro. Alguns jornais noticiaram 5 mil pessoas, outros estimavam algo entre 10 e 12 mil, até o fim da cerimônia144. Na Avenida Rio Branco, uma das principais do centro do Rio de Janeiro, toda enfeitada com bandeiras portuguesas e brasileiras, podia-se também comprar cata-ventos verde-amarelos ou verde-vermelhos. Ali, populares, dentre eles muitos portugueses que viviam no Brasil, se frustraram com a rápida passagem do presidente Américo Thomaz ao lado do General Emílio Médici, em carro fechado, “quase sem tempo de receber a chuva de papel picado com a qual a cidade recebe seus visitantes ilustres”145.

É importante remarcar, antes de prosseguirmos, a escolha do 22 de abril como data escolhida para a chegada de D. Pedro I não era fortuita. Ao contrário, possui crucial

142 Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. Recorte de jornal: “O esquife de D. Pedro I parte hoje para o Brasil”. In: Folha de São Paulo, 10/04/1972.

143 Idem. Recorte de jornal: “Saída foi triste, mas chegada muito alegre”. In: Jornal do Brasil, 23/04/1972. 144 Idem. Recortes de jornais: “Brasil recebe seu primeiro Imperador”. In: Folha de São Paulo, 23/04/1972 e “Médici recebe restos mortais de D. Pedro I”. In: Jornal do Brasil, 23/04/1972.

145 Idem. Recortes de jornais: “Cortejo passou muito depressa pela Avenida e povo quase não viu”. In: O Globo, 24/04/1972.

significado simbólico para entendermos o tipo de reconstrução do passado que se tentou empreender nas festas de 1972. A celebração do laço de amizade com o colonizador foi uma constante que perpassou toda a comemoração do Sesquicentenário da Independência. Nesse sentido, o 22 de abril, quando se rememora a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral em 1500, é muito representativo desta celebração. Sob este aspecto, é significativo que durante a cerimônia de entrega dos restos mortais de D. Pedro I, o discurso de Américo Thomaz começasse fazendo referência ao 22 de abril:

É no dia em que se comemora mais um aniversário do achamento das formosas Terras de Santa Cruz por Pedro Álvares Cabral – dia da nossa Comunidade – e no ano em que o Brasil celebra jubilosamente século e meio de vida própria, que chego à cidade maravilhosa do Rio de Janeiro146.

Nas palavras do presidente português, o 22 de abril não era apenas o dia do

achamento do Brasil, mas também, o dia da nossa comunidade. Num sentido similar, ia o discurso de Médici:

Emocionado e agradecido, recebo, em nome do povo brasileiro, os restos mortais de Dom PEDRO PRIMEIRO do Brasil e QUARTO de Portugal, que a Nação portuguesa, testemunhando a amizade que nos irmana, acedeu em confiar à nossa guarda. Esse gesto fraterno, raro e generoso exprime a certeza de que são permanentes e inquebrantáveis os vínculos raciais, a comunhão de sentimentos, a afinidade de espírito e a vocação cultural que unem nossos povos147.

Privilegiava-se, portanto, uma visão da história na qual ao invés de considerar 1822 a ruptura do laço com o colonizador estabelecido em 1500, destacavam-se os aspectos de continuidade entre as duas datas, favorecida pelas especificidades do processo de independência brasileiro, conduzido pelo próprio herdeiro do trono português.

No Rio, o Presidente Américo Thomaz chegou ao cais das Bandeiras, no Ministério da Marinha, com quase meia hora de atraso, onde foi recebido pelo Presidente Médici às dez horas e vinte minutos. Em seguida, os dois presidentes se dirigiram ao Monumento aos

146

Discurso proferido pelo Presidente de Portugal, Américo Thomaz, durante a cerimônia de doação dos restos mortais de D. Pedro I ao Brasil. In: Antonio Jorge Corrêa. As Comemorações do Sesquicentenário. Biblioteca do Sesquicentenário, 1972, p.49.

147

Discurso proferido pelo Presidente Emílio Garrastazu Médici durante a cerimônia de doação dos restos mortais de D. Pedro I ao Brasil. In: Antonio Jorge Corrêa. As Comemorações do Sesquicentenário. Biblioteca do Sesquicentenário, 1972, p.50. [Grifos no original].

Mortos da II Guerra, onde às onze horas e trinta minutos, chegaram os despojos de D. Pedro I148.

Após a assinatura dos termos de transferência pelos presidentes, a urna seguiu para a Quinta da Boa Vista, antiga moradia do Imperador. Começava, então, a última viagem de D. Pedro I pelo Brasil. Não por acaso, começava no Rio de Janeiro e terminaria, cinco meses depois, em São Paulo. A última cidade, alçada em 1972, como já vimos, a altar da Pátria, a capital do Grito, do Brasil Independente e também a síntese do futuro, do Brasil do Milagre. O Rio, a capital Imperial, a cidade que viu o Imperador chegar ainda criança e crescer nas suas ruas. Não por acaso também, foi o Palácio de São Cristóvão o lugar escolhido para se realizar a vigília fúnebre dos despojos de D. Pedro. De acordo com o General Antonio Jorge Correa, presidente da Comissão Executiva Central (CEC),

o (...) Palácio da Quinta da Boa Vista (...) assistiu à infância e adolescência de D. Pedro, que na sombra das árvores e dos bosques daquela chácara abrasileirava-se cada dia na liberdade dos gestos e no convívio da nossa gente149.

Do Rio de Janeiro – lugar que fez do Príncipe português, um brasileiro – para São Paulo – lugar que fez do Príncipe Regente, Imperador do Brasil. Entre o começo e o fim do périplo, uma longa viagem pelas capitais brasileiras, rememorando não apenas o importante papel de Pedro I na manutenção da unidade territorial do Império150, mas também, cumprindo e reafirmando a missão da ditadura de integração nacional.

Assim, ali, no pátio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, “24 militares dos Dragões da Independência, ensaiaram os últimos movimentos para a cerimônia. (...) Do outro lado, 14 marinheiros e 14 fuzileiros navais – vestidos como os antigos marinheiros e fuzileiros imperiais – eram dispostos em duas filas de quatro e duas filas de dez homens”151.

Desde oito horas da manhã, pessoas se aglomeravam em frente ao Museu, apesar de as portas somente terem sido abertas a partir do meio-dia. Em alguns momentos, as filas diante da porta chegavam a uma extensão de dois quilômetros. Entre o momento de abertura do local

148 Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. Recorte de jornal: “Entusiasmo cívico na volta de D. Pedro I”. In:

Correio Braziliense, 23/04/1972.

149 Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. General Antonio Jorge Correa. O simbolismo presente na

trasladação dos restos mortais de D. Pedro I, p.3. [mimeo].

150 Idem, idem, p.5. 151

Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 52A. Recorte de jornal: “Urna vista por mais de 10 mil pessoas numa só tarde”. In: O Globo, 24/04/1972.

até às dezesseis horas, 5700 pessoas visitaram a antiga residência imperial. Os diretores do Museu estimavam que até as vinte e duas horas desse primeiro dia, cerca de 10 mil pessoas passariam diante da urna do Imperador. A aglomeração, inclusive, prejudicou o trânsito na região152. No dia seguinte, domingo, o Museu ficou aberto à visitação entre o meio-dia e vinte e duas horas, onde previam um público majoritariamente composto por escolares. No Rio, ao todo vinte e cinco mil pessoas visitaram D. Pedro I no Museu Nacional durante esse primeiro fim de semana153. Na segunda-feira, vinte e quatro de abril, a urna deu início à peregrinação pelo Brasil e seguiu para Porto Alegre.

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