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Cadernos manuscritos de modelos de letras 

Capítulo  3.   Pingere litteras: a letra da pena e do pincel 344

3.3.    A circulação de saberes 

3.3.2.     Cadernos manuscritos de modelos de letras 

Como forma de difusão de modelos de letras e ornamentação de documentos,  deve  ser  considerado  o  comércio  de  mostras  caligráficas  manuscritas  –  avulsas,  completas  ou  compilações  de  vários  trabalhos  –  como  uma  realidade  do  universo  seiscentista e setecentista. De uma citação do calígrafo espanhol Asencio y Mejorada  (1780)  pode‐se  afigurar  que  esse  comércio  envolvia  também  o  trânsito  de  obras  antigas:  

Me han sido de mucha utilidad los tres singulares libros manuscritos que a buena costa  conseguí,  el  uno  de  Juan  Xerez,  maestro  de  primeras  letras  en  Toledo,  escrito  e 

delineado de su mano el año 1594, y los otros dos del Maestro Richito, en el Seminario  de Nápoles el año 1596, obra admirablemente escrita y delineada de su mano. 380  Não foi identificada qualquer pesquisa que tenha levantado dados sobre este  comércio em Portugal, tampouco é comum que se encontrem nos arquivos este tipo  de material, dada a sua natureza perecível. Contudo, foi identificado um documento  pertencente à Academia de Ciências de Lisboa que, embora de extrema importância  para a compreensão da prática de produção e comercialização de mostras caligráficas  manuscritas  no  mundo  português,  ainda  permanece  inexplorado  e  desconhecido.   Trata‐se  do  Alfabeto  de  Letras  debuxadas  por  diferentes  modos.381  É  um  livro  encadernado,  no  formato  in  16º  (15  x  11  cm),  de  107  folhas,  que  nunca  recebeu  intervenção de conservação e, portanto, mantém todas suas características originais.  Sobre a contracapa, possui uma gravura de autoria de Rochefort que retrata as armas  de  Portugal.  Na  guarda  há  a  informação  manuscrita  sobre  a  localização  da  obra  na  Biblioteca e a inscrição: “Do Uzo de Fr. Joze de Nossa Senhora das Neves (?)  Religiozo  Terceiro  de  S.  Fran.co  Natural  da  Bahia”  (sic).  Na  segunda  folha  encontra‐se  colada  uma gravura de São Miguel e logo em seguida há uma alegoria feminina que tem como  atributo  a  cornucópia,  lanças,  escudos  e  bandeiras.  Em  seguida  há  duas  capitulares 

      

380   “Foram‐me  de  muita  utilidade  os  três  singulares  livros  manuscritos  que  com  bom  custo  consegui, um de Juan Xerez, mestre de primeiras letras em Toledo, escrito e desenhado de sua mão no  ano de 1594, e os outros dois do Mestre Richito, [produzido] no Seminário de Nápoles, no ano 1596,  obra admiravelmente escrita e desenhada de sua mão” (grifo nosso). ASENSIO Y MEJORADA. Geometría  de la letra romana mayúscula y minúscula, p. 3. Cf. Anexo I para referência da obra de Juan XEREZ, ou  JEREZ.  381   ACL – Série vermelha, MS 315. 

historiadas da letra N, impressas e idênticas. No verso desta folha e nas duas páginas  seguintes, há uma anotação manuscrita em tinta negra, intitulada Nomes das tintas,  com a designação dos pigmentos e suas misturas, correspondendo à escala cromática  básica  da  pintura,  como  também  a  receita  de  tinta  preta  para  escrever  em  pergaminho.  

A  partir  daí,  em  cada  folha  há  o  desenho  de  um  ornamento  ou  das  letras  capitulares  encontradas  na  obra  de  Manoel  de  Andrade  de  Figueiredo,  Nova  escola 

para aprender a ler, escrever e contar. Foram copiados os quatro modelos completos 

de  letras:  os  vegetalistas,  as  de  cetra382  com  ornamento,  de  cetra com volteios  e  as  com volteios mais simples (FIG.31). Há cópias de algumas letras avulsas encontradas  ao longo do texto, assim como de ornamentos caligráficos com pássaros, anjos, cetras  e  coroas  (FIG.32).  Finalizam  o  livro  alguns  desenhos  esquemáticos  de  marcação  de  pautas. Nas últimas folhas, em tinta ferrogálica diversa da que foi usada nas primeiras  inscrições, está descrita uma receita de tinta preta excelente. O livro é encerrado com  a mesma gravura da alegoria que se encontra na terceira folha e com as imagens de  São Miguel e das armas de Portugal, seguindo a mesma organização do início do livro.  Todas as gravuras foram retiradas de livros impressos, pois é perceptível a presença de  textos no verso da folha de cada imagem.  São muitas as informações sobre as relações entre o impresso e o manuscrito  que podem ser recolhidas desse exemplar de mostras de letras capitulares. A edição  de um livro, seja impresso ou manuscrito, seguia uma lógica de constituição material  tendo em vista uma determinada qualidade de leitores, como tem sido defendido por  Roger  Chartier  e  por  outros  historiadores  da  cultura  escrita.383  Alguns  aspectos  de  distinção  se  originavam  na  constituição  material  do  livro:  a  capa,  o  tipo  de  papel  utilizado  ou  a  organização  dos  tópicos  do  texto  original.    Assim,  a  partir  dos  dados  materiais apresentados nas edições, o historiador consegue levantar indícios sobre as 

      

382   Cetras  são  os  desenhos  feitos  por  cruzamentos  de  retas  perpendiculares  formando  uma  espécie de rede, cujas linhas podem ser finalizadas por curvas; são utilizadas tanto para formação de  vinhetas quanto hastes de letras e outros detalhes menores. 

383   Cf. CHARTIER. A aventura do livro: do leitor ao navegador, p. 110‐112, entre outros estudos do  autor que reforçam a ideia. 

motivações  do  editor  e  dos  possíveis  destinatários.  Em  geral,  estas  informações  são  direcionadas aos estudos sobre o perfil do leitor, mas podem ser usadas igualmente  para  inferir  sobre  a  origem  do  objeto,  como  o  caso  deste  tão  particular  “livro  de  capitulares”. 

A  sua  constituição  formal  difere‐se  substancialmente  dos  quatro  cadernos  manuscritos  de  amadores  da  pintura  analisados  anteriormente,  principalmente  pela  inserção repetida das gravuras nas folhas iniciais e finais, que deixam antever a ideia  de  um  planejamento  gráfico  para  o  objeto.  Pode‐se  considerar  que  a  presença  das  gravuras,  em  sua  ordem  sequencial  bem  definida,  cria  uma  nova  dimensão  de  apropriação  e  leitura  do  objeto  ao  aproximá‐lo  da  tecnologia  e  da  estética  do  livro  impresso. Um segundo aspecto que diferencia este manuscrito dos demais analisados  é  a  presença  de  duas  folhas  iniciais  (que  receberam  inscrições  manuscritas  provavelmente  do  proprietário)  que  originalmente  estariam  em  branco.  Estruturalmente,  estas  folhas  formam  um  conjunto  com  as  páginas  que  contém  as  gravuras, servindo como as “guardas”, ou seja, as folhas que unem o corpo do livro à  capa,  seguindo  um  modelo  tradicionalmente utilizado  na  encadernação  de  um  livro.  Um terceiro aspecto que difere este manuscrito dos cadernos de amadores é que os  desenhos foram feitos antes da sua encadernação, conforme pode ser observado pelo  sistema de costura utilizado, assim como pela posição dos desenhos na folha, muito  próximos ao dorso do livro; este processo obviamente facilitava a execução das letras,  conferindo  melhor  qualidade  aos  desenhos.  Um  quarto  aspecto  que  distingue  este  objeto  dos  demais  é  a  contraposição  entre  a  qualidade  do  desenho  das  letras  capitulares  e  a  cursividade  da  escrita  das  anotações,  cujas  características  indicam  terem sido feitas por um indivíduo que não dominava a letra em seus aspectos gráficos  e que, portanto, não poderia ter sido o autor das capitulares ornamentadas (FIG.33).  

Esses vestígios materiais, estruturais e visuais do objeto levam a considerar a  hipótese de que o editor, o copista e o proprietário (Frei José de Nossa Senhora das  Neves, originário da Bahia) eram três pessoas distintas, reforçando a ideia de que este  não  era  um  exemplar  de  caderno  de  amadores,  como  os  analisados  anteriormente.  Pelo contrário, é de se considerar que o Alfabeto de Letras debuxadas por diferentes 

modos  foi  idealizado  para  comercialização.  Além  da  importância  de  ser  um  raro 

exemplar  de  mostra  caligráfica  manuscrita  ainda  preservado,  este  objeto  pode  ser  também  um  exemplo  de  como  se  produziam  mostras  feitas  à  mão  destinadas  ao  mercado  consumidor  e  como  estes  manuscritos  se  apropriavam  dos  recursos  do  objeto impresso.  

As  letras  e  ornamentos  de  Andrade  que  foram  copiadas  neste  pequeno  livro  possuem,  em  geral,  as  mesmas  dimensões  das  encontradas  em  Nova  escola...384  As  variações encontradas não são significativas e podem estar relacionadas às distinções  naturais entre os traços da gravura e os da inscrição à tinta: em geral, a linha da pena é  mais grossa do que a do buril e, no estado atual de degradação da tinta, essa diferença  aparece ainda mais acentuada. As variações significativas pautam‐se nas modificações  que  o  desenhista  fez  na  letra  de  Andrade,  procurando  (e  alcançando)  uma  melhor  legibilidade.  Pelas  marcas  encontradas  no  papel  –  pequenas  abrasões  e  ausências  localizadas de fibras – dá‐se a entender que inicialmente a letra foi copiada de modo  idêntico ao modelo, tendo sido modificada depois da aplicação da tinta. Do primeiro  estilo apresentado, foram quatro as letras alteradas: 

 

 Letra H (folha 33): foram removidos os volteios da parte central inferior (FIG.34);   Letra I (folha 34): foram removidos os quatro  volteios nas extremidades da letra  (FIG.35);   Letra T (folha 44): foi removida a sequência de desenho da parte inferior, deixando  o corte superior da letra mais legível (FIG.36);    Letra U (folha 45): foi removida a decoração que unia as duas linhas externas da  letra (FIG.37).  Do segundo estilo de letra duas modificações foram identificadas:        

384   Todas  as  letras  do  Alfabeto  ...  e  de  Nova  Escola  ...  tiveram  suas  medidas  tomadas  e  comparadas.  Para  isso  foi  usado  o  exemplar  da  obra  de  Manoel  de  Andrade  de  Figueiredo  que  se  encontra na Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa, BACL – 11  744  21. 

 Letra C (folha 51): foram removidas a cetra e os volteios da parte central (FIG.38);   Letra E (folha 53): foi substituído um volteio circular por um cruzado, no centro do  desenho (FIG.39). 

Para  concluir  essas  modificações  e  não  prejudicar  a  estética  da  letra,  o  desenhista  criou  outros  pequenos  elementos  decorativos  e  alterou  algumas  espessuras e detalhes de linhas. Outras modificações sutis também foram feitas nas  capitulares  de  estilo  vegetalista:  o  desenhista  preencheu  espaços  vazios,  trocando  linhas por folhas, e alcançando um maior volume. A escolha desses preenchimentos e  dos efeitos de sombra promovidos pela diferença da diluição da tinta fez com que as  formas  se  modificassem.  Os  pequenos  detalhes  executivos  evidenciam,  assim,  as  especificidades  da  mão  que  desenha,  da  mídia  utilizada,  da  estética  pessoal  e  das  opções tomadas por um dado copista, calígrafo ou desenhista.