Capítulo 1. Na forma do estilo: a Arte da Escrita na cultura luso‐hispânica nos séculos XVII e XVIII
1.3. A propagação das normas da caligrafia
A padronização dos documentos manuscritos no Setecentos estava de acordo com a tentativa de regularização das práticas da escrita administrativa, essencial à execução das tarefas do Estado Moderno. “Com o passar do tempo, vulgarizaram‐se nas chancelarias ‘fórmulas de expressão’ que ordenavam em detalhes os mais variados aspectos da escrita oficial: desde a escolha do papel e da caligrafia às referências individuais ou às circunstâncias de um relato.”63 A uniformização dos documentos, em Portugal, se deu a partir das Ordenações de D. Duarte, quando foram exaradas recomendações para a utilização de formulários homogêneos e caligrafia legível, clara e padronizada, bem como para a organização sumária de arquivos administrativos.64 Das determinações, constavam também os suportes que deveriam ser usados – o papel e o pergaminho – conforme a especificidade do documento.65
Para identificar quais eram esses rituais, além da decifração do próprio documento, geralmente inscrito em uma série que permite a avaliação de conjunto, referências importantes são os manuais da arte de escrever, sejam impressos ou manuscritos. Estas obras são fontes riquíssimas para a compreensão de várias destas distinções na matéria escrita, pois evidenciam as normas utilizadas em cada tempo, além de terem contribuído para a propagação das regras e posturas. Desde o século XVI passou‐se a imprimir manuais para o ensino da escrita, seja ela compreendida como texto, seja como imagem, na forma dada pelo trabalho caligráfico. Estas obras contribuíram para o avanço e a propagação da arte da caligrafia em todo o mundo ocidental com seus modelos de letras e ensinamentos teóricos. A caligrafia moderna nasceu na Itália no início do século XVI, com as obras de grandes mestres como Ludovico degli Arrigui, o Vicentino66 (1522), Giovanni Antonio Tagliente67 (1524) e
63 MIRANDA. “A arte de escrever cartas. Para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII", p.41. 64 MARQUILHAS. A faculdade das letras, p. 16. 65 Durante o período filipino, foram exaradas diversas leis e regulamentos que regiam as normas para escrita e cortesia, entre elas: Ley sobre os estyllos de escrever e falar, de 16/09/1597 BUC – Ms 2111, BNP – RES.2312v.; o alvará que “manda que se guarde a lei ao diante sobre o modo de falar e escrever às pessoas nela declaradas”, de 1612 – BUC – Ms 712, f. 50 – e o alvará regendo a forma de se passar as certidões da Torre do Tombo, de 1579 – BUC – Ms 713, f.248v. 66 ARRIGHI, Ludovico degli. La operina, Roma: s.n.t., 1522.
Giovanni Baptista Palatino68 (1540). Fora da Itália, os primeiros manuais de ortografia e caligrafia impressos na Europa foram Recopilación subtilissima intitulada
Orthographia prática, de Juan de Iciar, em Zaragoza, em 1548; Alphabet de plusieurs sortes de lettres, de Pierre Hamon, em Paris em 1561; A booke (sic) containing divers sorts of hands, de John de Beau‐Chesne and John Baildon, em Londres, 1570.
Em Portugal, as mais famosas obras para o ensino da leitura e da escrita editadas no século XVI são: Grammatica da Língua Portuguesa (Cartinha), de João de Barros, em Lisboa, em 1540;69 e Regras que ensinam a maneira de escrever e
Orthografia da língua Portuguesa, com hum Dialogo que a diante se segue em defensam da mesma língua, de Pero Magalhães de Gandavo, em Lisboa, 1574.
Privilegiando a caligrafia, A arte de escrever, de Manuel Barata, foi editada em 157270 e reeditada em 1590 com o título Exemplares de diversas sortes de letras, tirados da
polygraphia de Manvel Barata escriptor portvgves, acrescentados pello mesmo avtor, pêra comvm proveito de todos, acrescida de um tratado de aritmética e outro de
ortografia,71 com uma terceira edição em 1592 (FIG. 1). Somente com um intervalo de mais de um século, a tipografia portuguesa publicou outra obra: Nova escola para
aprender a ler, escrever e contar (1722), de Manoel de Andrade de Figueiredo. Dos
67 TAGLIENTE, Giovanni Antonio. La vera arte delo excellete scrivere de diverse varie sorti de litere.
Venice, s.n.t. 1524.
68 PALATINO, Giovanni Battista. Libro di M.Giovanbattista. Palatino cittadino romano, Nel qual s’insegna à Scriuer ogni sorte lettera, Antica, &Moderna, di qualunque natione, com le sue regole, & misure, & essempi. Rome, s.n.t., 1540. Reeditado em 1547.
69 Esta obra fazia parte de um projeto audacioso de João de Barros, que incluía o Diálogo em louvor da nossa linguagem e Diálogo da viciosa vergonha, ambos editados em 1540; seu desmembramento foi uma decisão do editor, que viu na Cartinha uma possibilidade maior de vendagem, quebrando o projeto pedagógico de Barros. Cf. PEREIRA. El arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p. 239‐240.
70 A edição de 1572 é citada por alguns autores, porém não existe um exemplar conhecido atualmente. Sobre esta edição, há uma referência em MACHADO. Bibliotheca Lusitana, v.III, 190‐191, mas Ana Martinez Pereira afirma que alguns bibliófilos a consideram inexistente. PEREIRA. El arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p. 235‐236. Em 2009 foi lançada uma edição fac‐similar, pela Universidade do Minho, a partir do original da Biblioteca Pública de Braga.
71 O título de aritmética é de Gaspar Nicolás, que teve sua primeira edição em 1519; a de Ortografia é de Pero de Gandavo, citado acima; Ana Martinez Pereira supõe que a união das três obras tenha sido um projeto editorial do livreiro João de Ocanhas, que organizou as edições. Cf. PEREIRA. El arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p.248.
manuscritos, não se pode deixar de citar o manual de Giraldo Fernandes do Prado, pintor e calígrafo que, 12 anos antes de Barata, produziu Tratado da letra latina (1560‐ 1561), com clara inspiração no espanhol Juan de Iciar (FIG. 2).72 Na Espanha, houve uma produção mais significativa, compreendendo cerca de sessenta edições impressas e/ou manuscritas entre os séculos XVI e XVII hoje conhecidas.73
Das cartinhas74 às mostras caligráficas mais requintadas, foram muitos os registros produzidos. O volume documental hoje preservado, porém, deve estar aquém do que possivelmente circulou no mundo ocidental, considerando que houve uma produção de material didático difundido sob a forma manuscrita e que hoje está perdido ou mal divulgado. Segundo Justino Magalhães,75 a produção e comercialização das cartinhas como livro do professor eram atividades rentáveis no século XVI em Portugal e estendeu‐se aos domínios ultramarinos. Rita Marquilhas revela o caso do padre jesuíta Francisco da Lapa, que imprimia bulas e cartinhas, mesmo sem as licenças necessárias (desde que fosse devidamente remunerado), e que foi notificado pelo Santo Ofício devido à descoberta de umas cartilhas por ele impressas, destinadas à exportação.76 Este material didático seria usado para o aprendizado tanto da leitura
72 SERRÃO. Maniera, mural painting and calligraphy: Giraldo Fernandez de Prado (c. 1530‐1592); SERRÃO. O fresco maneirista de Vila Viçosa (1540‐1640). Outros materiais manuscritos portugueses ainda precisam ser mais pesquisados.
73 Algumas obras e calígrafos espanhóis serão tratados detidamente ao longo da tese, especialmente aqueles que se relacionam mais diretamente com a caligrafia portuguesa. Para uma visão global da produção espanhola Cf. PEREIRA. Manuales de escritura de los siglos de oro. Repertório crítico e analítico de obras manuscritas e impressas. Para uma relação que inclui o século XVIII ver CORTARELO Y MORI. Dicionário biográfico y bibliográfico de calígrafos españoles. Para uma visão da história geral da caligrafia Cf. MEDIAVILLA. Caligrafía. Del signo caligráfico a la pintura abstracta. 74 Cartinhas para aprender a ler são pequenos impressos, de poucas páginas, cujo objetivo era a introdução das letras e das sílabas aos iniciantes da leitura ou da escrita. O termo é originado de “cartas”, como era designada cada uma das páginas que apresentavam o alfabeto, conforme o método adotado. Também conhecida como Cartilhas. 75 MAGALHÃES. Ler e escrever no mundo rural do antigo regime: um contributo para a história da alfabetização e da escolarização em Portugal, p. 168‐177. 76 MARQUILHAS. A faculdade das letras. Leitura e escrita em Portugal no séc. XVII, p. 199. Telmo Verdelho apresenta dados interessantes sobre a exportação de milhares de cartinhas para a Índia e para a África durante o século XVI, dizendo que “as ‘Artes de aprender a ler’ tornaram‐se frequentes e poderão mesmo ter constituído os primeiros best‐seller do negócio editorial português.” VERDELHO. Um remoto convívio interlinguístico. Tradição teórica e herança metalinguística latino‐portuguesa. In: MATEUS (org.). Caminhos do português, p. 80.
quanto da escrita. Na carência de obras impressas, não era incomum que os professores e alunos recorressem a traslados manuscritos, às vezes feitos pelos próprios mestres. Além das obras de ortografia, como a de João de Barros, transmitida em cópias manuscritas,77 sentenças judiciais, contratos e documentos de cartório eram usados como material didático.
Na Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa há um documento de grande interesse, que mostra a produção e circulação de cópias manuscritas de obras didáticas durante o século XVIII. Trata‐se da obra Cartilha para ensinar os mininos a ler;
e Compendio da doutrina Chrystã, de Frei Antonio da Graça,78 que é apresentada na
forma de um pequeno caderno manuscrito em letra cursiva elegante, clara e regular nas formas, na inclinação e nos espaçamentos entre as palavras. O texto compreende o Prólogo e o Compêndio da Doutrina Cristã. As cartas propriamente ditas apresentam o alfabeto e as sílabas das palavras em letras romanas (maiúsculas e minúsculas), bastarda e grifa. Era comum o uso dos caracteres romanos para a apresentação do alfabeto para os iniciantes, pela sua clareza visual. Embora esta obra fosse destinada ao ensino da leitura, como o próprio autor anunciara no prólogo, ela poderia ter sido usada para o ensino da escrita, como referência de modelos de letras e formação de sílabas.
Este manuscrito foi copiado por um homem letrado, mestre de meninos, possivelmente um religioso (dada a origem da biblioteca que o abriga), que mostrou uma preocupação em inscrever as letras da maneira mais regular possível, procurando facilitar o esforço do aluno na compreensão das formas. E o que revela o seu trabalho é a facilidade em escrever uma boa cursiva e a dificuldade em manter uma unidade formal nas letras romanas maiúsculas e minúsculas. O copista possivelmente não tinha a intenção de que sua cópia em algum momento servisse de modelo de letras para
77 Na Academia de Ciências de Lisboa existem algumas cópias manuscritas do século XVIII de cartilhas e obras didáticas, entre elas: Gramatica da Lingua Portugueza, e composta por Joam de Barros – Biblioteca dos Frades (Ms 636 série vermelha); Orthografia de Joam de Barros. Impresa em Lisboa por Luiz Rotorigio [?] anno 1540 (Ms 866, série vermelha); Cartilha para ensinar os mininos a ler; e Compendio da doutrina Chrystã. (Ms. 538 série vermelha).
78 GRAÇA. Cartilha para ensinar os mininos a ler; e Compendio da doutrina Chrystã. Manuscrito, s.d – ACL – Ms 538 série vermelha.
outros escrivães, mas é perceptível alguma similitude entre as suas dificuldades formais e as de alguns calígrafos que trabalharam em documentos adornados na América portuguesa. Um exemplo encontra‐se no compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Freguesia de São José da Barra Longa, Capitania de Minas Gerais, feito em 176079 (FIG.3 a e b). Nas duas imagens nota‐se nas letras Q e S o deslocamento da verticalidade à direita; segundo as regras, a letra romana maiúscula deveria formar um ângulo reto com a linha horizontal da pauta. Também a distribuição desigual de peso das formas do T, ora muito achatada, ora larga demais, faz com que essas letras fujam das proporções mais usadas e indicadas pelos mestres calígrafos. Esta comparação sugere que, paralelamente aos impressos, existia uma série de amostras manuscritas de letras que circulavam entre os escrivães e que não foram originalmente produzidas para esse fim. Um tema caro aos mestres da arte da escrita era a geometria da letra, especialmente a romana, como será apresentado à frente: “es imposible haber perfección donde falta proporción y medida”, como afirmava Diego Bueno80 (1700) relembrando antigos calígrafos. O desvirtuamento dos princípios da forma nestes dois manuscritos, de naturezas e finalidades distintas, revela como são apropriadas as regras propagadas nos manuais impressos e como a informação, os padrões e os usos dos objetos são extremamente dinâmicos.
A despeito do material manuscrito produzido formal ou informalmente para aprendizagem em vários níveis, pela ausência de impressões nacionais destinadas ao ensino da caligrafia durante mais de um século, discípulos e mestres portugueses utilizaram livros editados em outras línguas. A questão da tradução, embora fulcral para a disseminação global do conhecimento, não é simples. Como lembra Charles Whiters, o processo é complexo e intelectualizado, pois “translation does not directly ensure correspondence between one language and another or between the intentions of the writer and the needs of his audience”.81 Tradutores acabavam agindo como
79 BGJM, s/r.
80 “É impossível haver perfeição onde falta proporção e medida”. BUENO. Arte de leer con elegancia las escrituras más generales, y comunes en Europa…, p. 29.
81 “A tradução não assegura diretamente a correspondência entre uma língua e outra ou entre as intenções do escritor e as necessidades de seu público”. WITHERS. Above and beyond the Nation. Cosmopolitan networks, p. 52.
mediadores culturais, pois ao adaptarem os textos originais à nova linguagem, também os adaptavam às formas de compreensão de outra sociedade, mudando seu sentido original. Neste sentido, traduzir não era apenas uma questão de idioma, mas também transformava o sentido original da mensagem. A questão se torna ainda mais complexa quando envolve o aprendizado da forma escrita de uma língua. Se o ensino não é linear e a maneira de se relacionar com o conhecimento é uma prática cultural, como traduzir para o português edições da “arte da escrita” produzidas na Itália, na França ou em Flandres? E como publicar estas traduções, se o processo ainda envolvia um trabalho apurado das técnicas de gravação e impressão das mostras caligráficas, do qual Portugal estava ainda tão distante?82 A proximidade cultural e linguística fazia com que manuais espanhóis fossem os preferidos durante a primeira metade do século XVIII. Essa aproximação da língua foi reforçada por João Franco Barreto, citado por Manoel de Andrade de Figueiredo (1722), quando explicava a formação dos plurais das palavras terminadas em al: “porque assim o pede a boa analogia da língua Latina e correspondência que com a Castelhana temos”.83 Justino Magalhães menciona que a obra do famoso calígrafo espanhol Pedro Díaz Morante (1616‐1631) foi usada nas aulas do professor e organista Francisco Martins, que se ocupou do ensino de Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, nascido em 1702, filho de homem das letras e detentor de uma biblioteca muito numerosa.84 Percebemos também a interação cultural ibérica na obra de Manoel de Andrade de Figueiredo, que enumerou sete autores espanhóis dos quais tinha conhecimento das obras, mas sua admiração dirigia‐se especialmente a dois calígrafos: segundo ele, “todos os bons escritores, não só os que compuseram, como
82 Para uma análise sobre o desenvolvimento da gravura em Portugal, Cf. FARIA. A imagem impressa: produção, comércio e consumo de gravura no final do antigo regime.
83 FIGUEIREDO. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 66. Sobre o bilinguismo, Cf. BUESCU. “Y la Hespañola es facil para todos”. O bilinguismo, fenómeno estrutural (séculos XVI‐XVIII). In: BUESCU. Ensaios de história cultural (séculos XV‐XVIII), p. 49‐65.
84 MAGALHÃES. Ler e escrever no mundo rural do antigo regime, p.4. Pedro Díaz Morante publicou Nueva arte donde se destierram las ignorancias que hasta ou ávido em ensenãr a escrivir em cinco partes, entre 1616 e 1631; a partir do segundo volume os títulos ficaram resumidos a Arte nueva de escrivir. A quinta parte não possui exemplar conhecido. Magalhães não distingue qual dos volumes fazia parte do acervo bibliográfico citado. A biografia e a obra de Morante serão apresentadas em maiores detalhes no capítulo 2.
os que bem escrevem, devem a perfeição de seus caracteres a Velde, e a galantaria de penadas a Morante,”85 personagem a quem é constantemente comparado.
Outro exemplo desse complexo intercâmbio linguístico e cultural está evidente na formação dos irmãos menores de D. João V, D. Miguel e D. José, que a partir de 1718 tiveram como professor da escrita o calígrafo espanhol Don Marcos de la Roelas y Paz. Sabe‐se muito pouco sobre sua atuação, mas é possível que as portas do Reino português lhe tenham sido abertas por intermédio de mostras caligráficas por ele trabalhadas.86 Com um estilo bastante rebuscado e dramático, misturava volteios caligráficos a desenhos com tracejados, pontilhismos e aguadas. Ainda usava as técnicas da gravura, do desenho e da pintura para compor cenários, criando resultados bastante impactantes (FIG. 4). Roelas escreveu Pratica de el noble, y primoroso Arte de
Escrivir vários caracteres, y distintas formas de letras que humildemente dedica a La magestad del Rey nuestro señor Don Juan quinto de Portugal,87 em 1718, para servir
de material didático a seus pupilos reais. O prólogo é um enaltecimento à grandeza e sabedoria de D. João V, apresentado como um soberano que afirmava a religião cristã nos quatro continentes e estimulava o conhecimento das letras e das ciências: Viven todos con Vosea Majestad felices: y es que se adorna su Trono de piedades y discreciones. Unos y otros son tesoro de sus vasallos; Pues en las unas se aumenta la Religión; y en las otras se establece la Astrea (sic) de la Justicia.88
Ao longo da obra existem inúmeros desenhos caligráficos representando o monarca e os infantes, a cavalo ou a pé. Em uma das imagens,89 o rei está com o
85 Os espanhóis citados são Juan de Iciar, Francisco Lucas, Saraiva, Pedro Díaz Morante, José de Casanova, Irmão Lourenço Ortiz e Juan Claudio Aznar de Polanco; além destes, cita cinco italianos, dois “genoveses”, dois flamengos, um francês e um inglês, o que indica maior proximidade com as obras espanholas. Jan van de Velde foi um dos grandes calígrafos flamengos, tendo publicado sua obra Spieghel der Schrijfkonste em 1605. FIGUEIREDO. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, p.52.
86 Cf. PEREIRA. Un calígrafo español en la corte de D. João V: Marcos de las Roelas y Paz. 87 BNP – Reservados, COD 10833.
88 “Vivem todos felizes com Vossa Majestade: adorna seu Trono de piedades e de discrição. Um e outro são tesouros de seus vassalos, porque nas primeiras se aumenta a religião, e na outra se estabelece a [?] da Justiça”. ROELAS Y PAZ. Practica de el Noble, y primoroso Arte de Escrivir vários caracteres, y distintas formas de letras (...), f. 4v – BNP – Reservados, COD 10833.
bastão do comando real na mão; à esquerda encontra‐se o brasão de Portugal e à direita a esfera armilar, representando o Império ultramarino. Em outra imagem, um desenho caligráfico feito em linhas contínuas formando volteios apresenta um cavaleiro em companhia de seu cão, ambos enfrentando um dragão (a fera emblemática da Casa de Bragança).
O autor redigiu os modelos para cópias de texto em espanhol e em português, apresentando ainda um alfabeto da letra bastarda portuguesa, que pouco se distinguia da bastarda espanhola. Os textos tratavam de religiosidade, moral e história, mas ao mesmo tempo relatavam os feitos da Casa dos Áustria na expulsão dos mouros durante o período de união das coroas ibéricas. Dada essa variedade de conteúdos e ao bilinguismo, há de se considerar que o manuscrito provavelmente foi resultado de uma reunião de trabalhos antigos e novos, estes últimos feitos especialmente para os infantes.90 A obra não é propriamente um tratado, mas uma demonstração das habilidades do autor como calígrafo, acrescida de alguns ensinamentos práticos sobre a arte da escrita. A presença de D. Marcos de la Roelas Y Paz no cerne da Corte portuguesa é um exemplo de como se expressavam as relações culturais luso‐ hispânicas. O manual dos infantes, portanto, acaba por ser ele mesmo a síntese da confluência cultural da Península Ibérica no que se refere à arte da escrita. A partir das interseções que são visíveis nesse documento, bem como através da referência espanhola na formação de Manoel de Andrade de Figueiredo – considerado o expoente da “letra portuguesa” nesse período – é possível assumir a existência de práticas comuns e, por meio dos manuais espanhóis, delinear o perfil da aprendizagem e das regras da execução de alguns materiais escritos circulantes no mundo português entre os séculos XVII e XVIII. 89 ROELAS Y PAZ. Practica de el Noble, y primoroso Arte de Escrivir vários caracteres, y distintas formas de letras (...), f. 29 – BNP – Reservados, COD 10833. 90 Há diferenças na qualidade dos papéis utilizados, o que reforça a tese da construção do objeto