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Capítulo   1.      Na forma do estilo: a Arte da Escrita na cultura luso‐hispânica nos séculos XVII e XVIII 

1.3. A propagação das normas da caligrafia 

A padronização dos documentos manuscritos no Setecentos estava de acordo  com  a  tentativa  de  regularização  das  práticas  da  escrita  administrativa,  essencial  à  execução das tarefas do Estado Moderno. “Com o passar do tempo, vulgarizaram‐se  nas chancelarias ‘fórmulas de expressão’ que ordenavam em detalhes os mais variados  aspectos  da  escrita  oficial:  desde  a  escolha  do  papel  e  da  caligrafia  às  referências  individuais ou às circunstâncias de um relato.”63 A uniformização dos documentos, em  Portugal,  se  deu  a  partir  das  Ordenações  de  D.  Duarte,  quando  foram  exaradas  recomendações para a utilização de formulários homogêneos e caligrafia legível, clara  e padronizada, bem como para a organização sumária de arquivos administrativos.64  Das  determinações,  constavam  também  os  suportes  que  deveriam  ser  usados  –  o  papel e o pergaminho – conforme a especificidade do documento.65  

Para  identificar  quais  eram  esses  rituais,  além  da  decifração  do  próprio  documento, geralmente inscrito em uma série que permite a avaliação de conjunto,  referências  importantes  são  os  manuais  da  arte  de  escrever,  sejam  impressos  ou  manuscritos. Estas obras são fontes riquíssimas para a compreensão de várias destas  distinções  na  matéria  escrita,  pois  evidenciam  as  normas  utilizadas  em  cada  tempo,  além de terem contribuído para a propagação das regras e posturas. Desde o século  XVI  passou‐se  a  imprimir  manuais  para  o  ensino  da  escrita,  seja  ela  compreendida  como texto, seja como imagem, na forma dada pelo trabalho caligráfico. Estas obras  contribuíram  para  o  avanço  e  a  propagação  da  arte  da  caligrafia  em  todo  o  mundo  ocidental com seus modelos de letras e ensinamentos teóricos. A caligrafia moderna  nasceu  na  Itália  no  início  do  século  XVI,  com  as  obras  de  grandes  mestres  como  Ludovico  degli  Arrigui,  o  Vicentino66  (1522),  Giovanni  Antonio  Tagliente67  (1524)  e 

      

63   MIRANDA.  “A arte  de  escrever  cartas.  Para  a  história  da epistolografia portuguesa no  século  XVIII", p.41.  64   MARQUILHAS.  A faculdade das letras, p. 16.  65   Durante o período filipino, foram exaradas diversas leis e regulamentos que regiam as normas  para escrita e cortesia, entre elas: Ley sobre os estyllos de escrever e falar, de 16/09/1597 BUC – Ms  2111, BNP – RES.2312v.; o alvará que “manda que se guarde a lei ao diante sobre o modo de falar e  escrever às pessoas nela declaradas”, de 1612 – BUC – Ms 712, f. 50 – e o alvará regendo a forma de se  passar as certidões da Torre do Tombo, de 1579 – BUC – Ms 713, f.248v.  66   ARRIGHI, Ludovico degli.  La operina, Roma: s.n.t., 1522. 

Giovanni Baptista Palatino68 (1540).  Fora da Itália, os primeiros manuais de ortografia  e  caligrafia  impressos  na  Europa  foram  Recopilación  subtilissima  intitulada 

Orthographia prática, de Juan de Iciar, em Zaragoza, em 1548; Alphabet de plusieurs  sortes de lettres, de Pierre Hamon, em Paris em 1561; A booke (sic) containing divers  sorts of hands, de John de Beau‐Chesne and John Baildon, em Londres, 1570.  

Em  Portugal,  as  mais  famosas  obras  para  o  ensino  da  leitura  e  da  escrita  editadas no século XVI são: Grammatica da Língua Portuguesa (Cartinha), de João de  Barros,  em  Lisboa,  em  1540;69  e  Regras  que  ensinam  a  maneira  de  escrever  e 

Orthografia  da  língua  Portuguesa,  com  hum  Dialogo  que  a  diante  se  segue  em  defensam  da  mesma  língua,  de  Pero  Magalhães  de  Gandavo,  em  Lisboa,  1574. 

Privilegiando a caligrafia, A arte de escrever, de Manuel Barata, foi editada em 157270 e  reeditada  em  1590  com  o  título  Exemplares  de  diversas  sortes  de  letras,  tirados  da 

polygraphia de Manvel Barata escriptor portvgves, acrescentados pello mesmo avtor,  pêra  comvm  proveito  de  todos,  acrescida  de  um  tratado  de  aritmética  e  outro  de 

ortografia,71 com uma terceira edição em 1592 (FIG. 1). Somente com um intervalo de  mais  de  um  século,  a  tipografia  portuguesa  publicou  outra  obra:  Nova  escola  para 

aprender a ler, escrever e contar (1722), de Manoel de Andrade de Figueiredo.  Dos 

        67   TAGLIENTE, Giovanni Antonio. La vera arte delo excellete scrivere de diverse varie sorti de litere. 

Venice, s.n.t. 1524. 

68   PALATINO,  Giovanni    Battista.  Libro  di  M.Giovanbattista.  Palatino  cittadino  romano,  Nel  qual  s’insegna à Scriuer ogni sorte lettera, Antica, &Moderna, di qualunque natione, com le sue regole, &  misure, & essempi. Rome, s.n.t., 1540. Reeditado em 1547. 

69   Esta  obra  fazia  parte  de  um  projeto  audacioso  de  João  de  Barros,  que  incluía  o  Diálogo  em  louvor  da  nossa  linguagem  e  Diálogo  da  viciosa  vergonha,  ambos  editados  em  1540;  seu  desmembramento  foi  uma  decisão  do  editor,  que  viu  na  Cartinha  uma  possibilidade  maior  de  vendagem,  quebrando  o  projeto  pedagógico  de  Barros.  Cf.  PEREIRA.  El  arte  de  escrever  de  Manuel  Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p. 239‐240. 

70   A  edição  de  1572  é  citada  por  alguns  autores,  porém  não  existe  um  exemplar  conhecido  atualmente. Sobre esta edição, há uma referência em MACHADO. Bibliotheca Lusitana, v.III, 190‐191,  mas Ana Martinez Pereira afirma que alguns bibliófilos a consideram inexistente. PEREIRA. El arte de  escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p. 235‐236. Em  2009 foi lançada uma edição fac‐similar, pela Universidade do Minho, a partir do original da Biblioteca  Pública de Braga. 

71   O  título  de  aritmética  é  de  Gaspar  Nicolás,  que  teve  sua  primeira  edição  em  1519;  a  de  Ortografia é de Pero de Gandavo, citado acima; Ana Martinez Pereira supõe que a união das três obras  tenha sido um projeto editorial do livreiro João de Ocanhas, que organizou as edições. Cf. PEREIRA. El  arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico dela segunda mitad del siglo XVI, p.248. 

manuscritos,  não  se  pode  deixar  de  citar  o  manual  de  Giraldo  Fernandes  do  Prado,  pintor e calígrafo que, 12 anos antes de Barata, produziu Tratado da letra latina (1560‐ 1561),  com  clara  inspiração  no  espanhol  Juan  de  Iciar  (FIG.  2).72  Na  Espanha,  houve  uma produção mais significativa, compreendendo cerca de sessenta edições impressas  e/ou manuscritas entre os séculos XVI e XVII hoje conhecidas.73 

Das  cartinhas74  às  mostras  caligráficas  mais  requintadas,  foram  muitos  os  registros  produzidos.  O  volume  documental  hoje  preservado,  porém,  deve  estar  aquém do que possivelmente circulou no mundo ocidental, considerando que houve  uma produção de material didático difundido sob a forma manuscrita e que hoje está  perdido ou mal divulgado. Segundo Justino Magalhães,75 a produção e comercialização  das  cartinhas  como  livro  do  professor  eram  atividades  rentáveis  no  século  XVI  em  Portugal e estendeu‐se aos domínios ultramarinos. Rita Marquilhas revela o caso do  padre  jesuíta  Francisco  da  Lapa,  que  imprimia  bulas  e  cartinhas,  mesmo  sem  as  licenças necessárias (desde que fosse devidamente remunerado), e que foi notificado  pelo Santo Ofício devido à descoberta de umas cartilhas por ele impressas, destinadas  à exportação.76 Este material didático seria usado para o aprendizado tanto da leitura 

      

72   SERRÃO. Maniera, mural painting and calligraphy: Giraldo Fernandez de Prado (c. 1530‐1592);  SERRÃO.  O  fresco  maneirista  de  Vila  Viçosa  (1540‐1640).  Outros  materiais  manuscritos  portugueses  ainda precisam ser mais pesquisados. 

73   Algumas  obras  e  calígrafos  espanhóis  serão  tratados  detidamente  ao  longo  da  tese,  especialmente aqueles que se relacionam mais diretamente com a caligrafia portuguesa. Para uma visão  global da produção espanhola Cf. PEREIRA. Manuales de escritura de los siglos de oro. Repertório crítico  e analítico de obras manuscritas e impressas. Para uma relação que inclui o século XVIII ver CORTARELO  Y MORI. Dicionário biográfico y bibliográfico de calígrafos españoles. Para uma visão da história geral da  caligrafia Cf. MEDIAVILLA. Caligrafía. Del signo caligráfico a la pintura abstracta.  74   Cartinhas para aprender a ler são pequenos impressos, de poucas páginas, cujo objetivo era a  introdução  das  letras  e  das  sílabas  aos  iniciantes  da  leitura  ou  da  escrita.  O  termo  é  originado  de  “cartas”, como era designada cada uma das páginas que apresentavam o alfabeto, conforme o método  adotado. Também conhecida como Cartilhas.  75   MAGALHÃES. Ler e escrever no mundo rural do antigo regime: um contributo para a história da  alfabetização e da escolarização em Portugal, p. 168‐177.  76   MARQUILHAS. A faculdade das letras. Leitura e escrita em Portugal no séc. XVII, p. 199. Telmo  Verdelho apresenta dados interessantes sobre a exportação de milhares de cartinhas para a Índia e para  a  África  durante  o  século  XVI,  dizendo  que  “as  ‘Artes  de  aprender  a  ler’  tornaram‐se  frequentes  e  poderão mesmo ter constituído os primeiros best‐seller do negócio editorial português.” VERDELHO. Um  remoto  convívio  interlinguístico.  Tradição  teórica  e  herança  metalinguística  latino‐portuguesa.  In:  MATEUS (org.). Caminhos do português, p. 80. 

quanto  da  escrita.  Na  carência  de  obras  impressas,  não  era  incomum  que  os  professores  e  alunos  recorressem  a  traslados  manuscritos,  às  vezes  feitos  pelos  próprios mestres. Além das obras de ortografia, como a de João de Barros, transmitida  em cópias manuscritas,77 sentenças judiciais, contratos e documentos de cartório eram  usados como material didático.  

Na Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa há um documento de grande  interesse,  que  mostra  a  produção  e  circulação  de  cópias  manuscritas  de  obras  didáticas durante o século XVIII. Trata‐se da obra Cartilha para ensinar os mininos a ler; 

e Compendio da doutrina Chrystã, de Frei Antonio da Graça,78 que é apresentada na 

forma de um pequeno caderno manuscrito em letra cursiva elegante, clara e regular  nas formas, na inclinação e nos espaçamentos entre as palavras.  O texto compreende  o  Prólogo  e  o  Compêndio  da  Doutrina  Cristã.    As  cartas  propriamente  ditas  apresentam  o  alfabeto  e  as  sílabas  das  palavras  em  letras  romanas  (maiúsculas  e  minúsculas),  bastarda  e  grifa.  Era  comum  o  uso  dos  caracteres  romanos  para  a  apresentação do alfabeto para os iniciantes, pela sua clareza visual. Embora esta obra  fosse destinada ao ensino da leitura, como o próprio autor anunciara no prólogo, ela  poderia ter sido usada para o ensino da escrita, como referência de modelos de letras  e formação de sílabas.  

Este  manuscrito  foi  copiado  por  um  homem  letrado,  mestre  de  meninos,  possivelmente um religioso (dada a origem da biblioteca que o abriga), que mostrou  uma preocupação em inscrever as letras da maneira mais regular possível, procurando  facilitar o esforço do aluno na compreensão das formas. E o que revela o seu trabalho  é a facilidade em escrever uma boa cursiva e a dificuldade em manter uma unidade  formal nas letras romanas maiúsculas e minúsculas. O copista possivelmente não tinha  a  intenção  de  que  sua  cópia  em  algum  momento  servisse  de  modelo  de  letras  para 

      

77    Na  Academia  de  Ciências  de  Lisboa  existem  algumas  cópias  manuscritas  do  século  XVIII  de  cartilhas e obras didáticas, entre elas: Gramatica da Lingua Portugueza, e composta por Joam de Barros  – Biblioteca dos Frades (Ms 636 série vermelha);  Orthografia de Joam de Barros. Impresa em Lisboa por  Luiz  Rotorigio  [?]  anno  1540  (Ms  866,  série  vermelha);    Cartilha  para  ensinar  os  mininos  a  ler;  e  Compendio da doutrina Chrystã. (Ms. 538 série vermelha). 

78   GRAÇA. Cartilha para ensinar os mininos a ler; e Compendio da doutrina Chrystã. Manuscrito,  s.d – ACL – Ms 538 série vermelha. 

outros  escrivães,  mas  é  perceptível  alguma  similitude  entre  as  suas  dificuldades  formais  e  as  de  alguns  calígrafos  que  trabalharam  em  documentos  adornados  na  América  portuguesa.  Um  exemplo  encontra‐se  no  compromisso  da  irmandade  de  Nossa Senhora do Rosário da Freguesia de São José da Barra Longa, Capitania de Minas  Gerais,  feito  em  176079  (FIG.3  a  e  b).  Nas  duas  imagens  nota‐se  nas  letras  Q  e  S  o  deslocamento da verticalidade à direita; segundo as regras, a letra romana maiúscula  deveria formar um ângulo reto com a linha horizontal da pauta. Também a distribuição  desigual de peso das formas do T, ora muito achatada, ora larga demais, faz com que  essas  letras  fujam  das  proporções  mais  usadas  e  indicadas  pelos  mestres  calígrafos.  Esta  comparação  sugere  que,  paralelamente  aos  impressos,  existia  uma  série  de  amostras  manuscritas  de  letras  que  circulavam  entre  os  escrivães  e  que  não  foram  originalmente produzidas para esse fim. Um tema caro aos mestres da arte da escrita  era a geometria da letra, especialmente a romana, como será apresentado à frente:  “es  imposible  haber  perfección  donde  falta  proporción  y  medida”,  como  afirmava  Diego Bueno80 (1700) relembrando antigos calígrafos. O desvirtuamento dos princípios  da  forma  nestes  dois  manuscritos,  de  naturezas  e  finalidades  distintas,  revela  como  são apropriadas as regras propagadas nos manuais impressos e como a informação, os  padrões e os usos dos objetos são extremamente dinâmicos.  

A  despeito  do  material  manuscrito  produzido  formal  ou  informalmente  para  aprendizagem em vários níveis, pela ausência de impressões nacionais destinadas ao  ensino  da  caligrafia  durante  mais  de  um  século,  discípulos  e  mestres  portugueses  utilizaram  livros  editados  em  outras  línguas.  A  questão  da  tradução,  embora  fulcral  para  a  disseminação  global  do  conhecimento,  não  é  simples.  Como  lembra  Charles  Whiters, o processo é complexo e intelectualizado, pois “translation does not directly  ensure correspondence between one language and another or between the intentions  of  the  writer  and  the  needs  of  his  audience”.81  Tradutores  acabavam  agindo  como 

       79   BGJM, s/r. 

80   “É  impossível  haver  perfeição  onde  falta  proporção  e  medida”.  BUENO.  Arte  de  leer  con  elegancia las escrituras más generales, y comunes en Europa…, p. 29. 

81   “A tradução não assegura diretamente a correspondência entre uma língua e outra ou entre as  intenções  do  escritor  e  as  necessidades  de  seu  público”.    WITHERS.  Above  and  beyond  the  Nation.  Cosmopolitan networks, p. 52. 

mediadores  culturais,  pois  ao  adaptarem  os  textos  originais  à  nova  linguagem,  também os adaptavam às formas de compreensão de outra sociedade, mudando seu  sentido original. Neste sentido, traduzir não era apenas uma questão de idioma, mas  também transformava o sentido original da mensagem. A questão se torna ainda mais  complexa quando envolve o aprendizado da forma escrita de uma língua. Se o ensino  não é linear e a maneira de se relacionar com o conhecimento é uma prática cultural,  como traduzir para o português edições da “arte da escrita” produzidas na Itália, na  França ou em Flandres? E como publicar estas traduções, se o processo ainda envolvia  um trabalho apurado das técnicas de gravação e impressão das mostras caligráficas, do  qual Portugal estava ainda tão distante?82  A proximidade cultural e linguística fazia com que manuais espanhóis fossem os  preferidos durante a primeira metade do século XVIII. Essa aproximação da língua foi  reforçada  por  João  Franco  Barreto,  citado  por  Manoel  de  Andrade  de  Figueiredo  (1722),  quando  explicava  a  formação  dos  plurais  das  palavras  terminadas  em  al:  “porque assim o pede a boa analogia da língua Latina e correspondência que com a  Castelhana  temos”.83    Justino  Magalhães  menciona  que  a  obra  do  famoso  calígrafo  espanhol Pedro Díaz Morante (1616‐1631) foi usada nas aulas do professor e organista  Francisco  Martins,  que  se  ocupou  do  ensino  de  Francisco  Xavier  de  Oliveira,  o  Cavaleiro de Oliveira, nascido em 1702, filho de homem das letras e detentor de uma  biblioteca muito numerosa.84 Percebemos também a interação cultural ibérica na obra  de Manoel de Andrade de Figueiredo, que enumerou sete autores espanhóis dos quais  tinha  conhecimento  das  obras,  mas  sua  admiração  dirigia‐se  especialmente  a  dois  calígrafos: segundo ele, “todos os bons escritores, não só os que compuseram, como 

      

82   Para  uma  análise  sobre  o  desenvolvimento  da  gravura  em  Portugal,  Cf.  FARIA.  A  imagem  impressa: produção, comércio e consumo de gravura no final do antigo regime.  

83   FIGUEIREDO. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 66. Sobre o bilinguismo, Cf.  BUESCU. “Y la Hespañola es facil para todos”. O bilinguismo, fenómeno estrutural (séculos XVI‐XVIII). In:  BUESCU. Ensaios de história cultural (séculos XV‐XVIII), p. 49‐65. 

84   MAGALHÃES.  Ler  e  escrever  no  mundo  rural  do  antigo  regime,  p.4.  Pedro  Díaz  Morante  publicou Nueva arte donde se destierram las ignorancias que hasta ou ávido em ensenãr a escrivir em  cinco partes, entre 1616 e 1631; a partir do segundo volume os títulos ficaram resumidos a Arte nueva  de escrivir. A quinta parte não possui exemplar conhecido. Magalhães não distingue qual dos volumes  fazia  parte  do  acervo  bibliográfico  citado.  A  biografia  e  a  obra  de  Morante  serão  apresentadas  em  maiores detalhes no capítulo 2. 

os que bem escrevem, devem a perfeição de seus caracteres a Velde, e a galantaria de  penadas a Morante,”85 personagem a quem é constantemente comparado.  

Outro exemplo desse complexo intercâmbio linguístico e cultural está evidente  na formação dos irmãos menores de D. João V, D. Miguel e D. José, que a partir de  1718 tiveram como professor da escrita o calígrafo espanhol Don Marcos de la Roelas  y Paz. Sabe‐se muito pouco sobre sua atuação, mas é possível que as portas do Reino  português  lhe  tenham  sido  abertas  por  intermédio  de  mostras  caligráficas  por  ele  trabalhadas.86  Com  um  estilo  bastante  rebuscado  e  dramático,  misturava  volteios  caligráficos  a  desenhos  com  tracejados,  pontilhismos  e  aguadas.  Ainda  usava  as  técnicas da gravura, do desenho e da pintura para compor cenários, criando resultados  bastante impactantes (FIG. 4).  Roelas escreveu Pratica de el noble, y primoroso Arte de 

Escrivir vários caracteres, y distintas formas de letras  que humildemente dedica a La  magestad del Rey nuestro señor Don Juan quinto de Portugal,87 em 1718, para servir 

de material didático a seus pupilos reais. O prólogo é um enaltecimento à grandeza e  sabedoria de D. João V, apresentado como um soberano que afirmava a religião cristã  nos quatro continentes e estimulava o conhecimento das letras e das ciências:   Viven todos con Vosea Majestad felices: y es que se adorna su Trono de piedades y  discreciones. Unos y otros son tesoro de sus vasallos; Pues en las unas se aumenta la  Religión; y en las otras se establece la Astrea (sic) de la Justicia.88  

Ao  longo  da  obra  existem  inúmeros  desenhos  caligráficos  representando  o  monarca  e  os  infantes,  a  cavalo  ou  a  pé.  Em  uma  das  imagens,89  o  rei  está  com  o 

      

85   Os espanhóis citados são Juan de Iciar, Francisco Lucas, Saraiva, Pedro Díaz Morante, José de  Casanova, Irmão Lourenço Ortiz e Juan Claudio Aznar de Polanco; além destes, cita cinco italianos, dois  “genoveses”,  dois  flamengos,  um  francês  e  um  inglês,  o  que  indica  maior  proximidade  com  as  obras  espanholas.  Jan  van  de  Velde  foi  um  dos  grandes  calígrafos  flamengos,  tendo  publicado  sua  obra  Spieghel der Schrijfkonste em 1605. FIGUEIREDO. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar,  p.52. 

86   Cf. PEREIRA. Un calígrafo español en la corte de D. João V: Marcos de las Roelas y Paz.  87   BNP – Reservados, COD 10833. 

88   “Vivem todos felizes com Vossa Majestade: adorna seu Trono de piedades e de discrição. Um e  outro  são  tesouros  de  seus  vassalos,  porque  nas  primeiras  se  aumenta  a  religião,  e  na  outra  se  estabelece  a  [?]  da  Justiça”.    ROELAS  Y  PAZ.  Practica  de  el  Noble,  y  primoroso  Arte  de  Escrivir  vários  caracteres, y distintas formas de letras (...), f. 4v –  BNP – Reservados, COD 10833. 

bastão  do  comando  real  na  mão;  à  esquerda  encontra‐se  o  brasão  de  Portugal  e  à  direita a esfera armilar, representando o Império ultramarino. Em outra imagem, um  desenho  caligráfico  feito  em  linhas  contínuas  formando  volteios  apresenta  um  cavaleiro  em  companhia  de  seu  cão,  ambos  enfrentando  um  dragão  (a  fera  emblemática da Casa de Bragança).  

O autor redigiu os modelos para cópias de texto em espanhol e em português,  apresentando ainda um alfabeto da letra bastarda portuguesa, que pouco se distinguia  da bastarda espanhola. Os textos tratavam de religiosidade, moral e história, mas ao  mesmo  tempo  relatavam  os  feitos  da  Casa  dos  Áustria  na  expulsão  dos  mouros  durante o período de união das coroas ibéricas. Dada essa variedade de conteúdos e  ao bilinguismo, há de se considerar que o manuscrito provavelmente foi resultado de  uma reunião de trabalhos antigos e novos, estes últimos feitos especialmente para os  infantes.90  A  obra  não  é  propriamente  um  tratado,  mas  uma  demonstração  das  habilidades do autor como calígrafo, acrescida de alguns ensinamentos práticos sobre  a  arte  da  escrita.  A  presença  de  D.  Marcos  de  la  Roelas  Y  Paz  no  cerne  da  Corte  portuguesa  é  um  exemplo  de  como  se  expressavam  as  relações  culturais  luso‐ hispânicas.  O  manual  dos  infantes,  portanto,  acaba  por  ser  ele  mesmo  a  síntese  da  confluência cultural da Península Ibérica no que se refere à arte da escrita. A partir das  interseções  que  são  visíveis  nesse  documento,  bem  como  através  da  referência  espanhola  na  formação  de  Manoel  de  Andrade  de  Figueiredo  –  considerado  o  expoente  da  “letra  portuguesa”  nesse  período  –  é  possível  assumir  a  existência  de  práticas comuns e, por meio dos manuais espanhóis, delinear o perfil da aprendizagem  e das regras da execução de alguns materiais escritos circulantes no mundo português  entre os séculos XVII e XVIII.               89   ROELAS Y PAZ. Practica de el Noble, y primoroso Arte de Escrivir vários caracteres, y distintas  formas de letras (...), f. 29 – BNP – Reservados, COD 10833.  90    diferenças na qualidade dos papéis utilizados, o que reforça a tese da construção do objeto