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Capítulo  2.   Da tua pena, a tua vida: os profissionais da escrita na cultura hispano‐ luso ‐brasileira

2.1. Ofícios da escrita e os profissionais da boa pena

2.1.2. Tabeliães e notários públicos 

Os  profissionais  responsáveis  por  dar  pública  forma  a  cópias  e  traslados  de  documentos  e  conferir  autenticidade  de  papéis  e  assinaturas  eram  os  tabeliães  e  notários  públicos.    Na  administração  portuguesa,  para  ocuparem  o  cargo,  deveriam  prestar exame perante a Mesa do Desembargo do Paço e averiguar suas habilidades  na escrita e na leitura, além de terem carta regularmente passada pelo mesmo órgão,  na  qual  eram  descritos  os  seus  direitos  e  deveres.218  Em  1768,  Luis  de  Olod219  descrevia  em  detalhes  o  que  um  mestre  deveria  ensinar  a  seu  discípulo  para  reconhecer  a  autenticidade  de  documentos  e  assinaturas.  O  primeiro  passo  era  a  análise  das  características  da  letra  em  sua  uniformidade,  direção,  soltura,  ligadura,  princípios e finalizações, ângulos e aberturas. Em seguida, a observação da existência  de  retoques,  pontilhismos  (indício  do  uso  de  moldes)  ou  rasuras  nos  suportes.  São 

       217   FURTADO. Homens de negócios, p. 75‐80.  

218   Segundo  M.  Fleiuss  em  História  administrativa  do  Brasil,  1922,  Apud  MENDES.  Combinações  Lexicais restritas em manuscritos setecentistas de dupla concepção discursiva: escrita e oral, p. 89.  219   OLOD. Tratado del origen, y arte de escribir bien, p. 132. 

vários os pormenores descritos pelo autor, mas como um verdadeiro investigador, o  perito também deveria avaliar as condições físicas do escritor do original à época da  suposta  falsificação:  sua  idade,  pois  os  anciães  têm  a  mão  menos  firme;  se  esteve  doente;  se  andou  em  viagem;  se  tinha  o  hábito  de  escrever  com  frequência...  Se,  depois de todo o exame – que poderia incluir a ajuda de um “vidro de multiplicar” – o  examinador  ainda  tivesse  dúvidas,  deveria  recorrer  ao  auxílio  de  outros  experts.  As  especificidades detalhadas por Olod confirmam que a pessoalidade do traço da letra é  inegável  e  acabam  por  relacionar‐se  às  condições  sócio‐culturais  e  conjunturais  do  sujeito que a redige.  

As  aulas  de  Luis  de  Olod  procuravam  dar  informações  sobre  uma  demanda  crescente  de  verificação  de  autenticidade  de  documentos  –  proporcional  ao  incremento da burocracia do Estado moderno – e sintetizaram práticas já vigentes no  mundo da escrita. O autor recuperou as informações contidas na obra de Juan Claudio  Aznar  de  Polanco  (1715)  que,  segundo  Cotarelo  y  Mori,220  foi  o  primeiro  a  publicar  regras de análise paleográfica para fins de autenticação de assinaturas. No capítulo XI,  Polanco ensinava o “Modo de hacer la declaración, cuando se ofrece algún cotejo de  Firmas,  o  Letras,  y  lo  que  se  ha  de  hacer  para  conocer  si  son  verdaderas  o  contrahechas.”  Descrevia  como  se  poderiam  usar  os  recursos  da  geometria  para  comparar  a  autenticidade  da  assinatura,  medindo  as  proporções  das  letras  originais  com  compasso  para  estabelecer  as  relações  entre  altura  e  largura  a  partir  de  várias  amostras originais dadas a priori. 

 Na  Espanha,  durante  muito  tempo,  a  verificação  de  autenticidade  de  assinaturas  foi  feita  pelos  mestres  de  primeiras  letras  ligados  à  Irmandade  e  Congregação  de  São  Cassiano.  Porém,  diante  dos  abusos  e  imprecisões  de  laudos  assinados por profissionais da escrita, nem sempre tão capacitados na autenticação de  documentos, em 1729 foi criado o Cuerpo de Revisores de Firmas y Letras Antiguas.  Assim sendo, por determinação real, os juízes deveriam trabalhar com apenas seis dos 

      

220   AZNAR DE POLANCO. Arte nuevo de escribir por preceptos geometricos, y reglas mathematicas  (1719),  f.  138,  138v;  COTARELO  Y  MORI,  Emílio.  Diccionario  biografico  y  bibliografico  de  calígrafos  españoles.v.1, p. 135. 

mais capacitados mestres associados à Congregação de São Cassiano. Este número era  fixo  e  outro  nome  seria  indicado  apenas  após  a  morte  ou  incapacidade  de  algum  membro do grupo. Somente em 1747 a determinação passou a vigorar, após uma série  de  contendas  entre  os  mestres  escolhidos  e  os  mestres  excluídos.  Ainda  assim,  era  grande  a  distância  entre  a  lei  e a prática, e  as  discordâncias  continuaram  por  várias  décadas seguintes.221  

Fernando  Bouza  Álvarez222  lembra  que  na  Alta  Idade  Moderna  europeia,  os  peritos  de  escrita  eram  constantemente  solicitados  a  participar  de  investigações  judiciais,  atestando  a  autoria  dos  manuscritos.  O  domínio  da  letra  como  desenho223  para os homens da escrita daria possibilidade a práticas inusitadas, como a falsificação  de documentos e assinaturas. Portanto, a habilidade e o treino da mão para o desenho  e a escrita poderiam ainda ser utilizados para fins não idôneos. Como lembra Bouza,  por  possuírem  uma  estrutura  aberta,  os  manuscritos  estavam  mais  suscetíveis  às  falsificações, como no caso das genealogias, já que o reduzido número de documentos  originais sobre as linhagens dificultava a conferência das informações e abria campo  para  a  alteração  de  dados.  São  muitos  os  exemplos  de  casos  de  falsificação  de  assinaturas  e  fraudes  de  documentos.  Bouza  nos  dá  dois  exemplos  de  eventos  ocorridos no século XVII espanhol: em 1655, dezenas de peritos, escrivães e mestres  de primeiras letras foram solicitados a dar parecer sobre a autoria de determinados  bilhetes  públicos  que  desclassificavam  um  candidato  a  um  hábito  da  Ordem  de  Santiago;  o  outro  caso  citado  refere‐se  à  profissionalização  da  falsificação  e  relata  sobre  a  experiência  de  Miguel  de  Molina,  escrivão  nas  primeiras  décadas  do  século  XVII  que  acabou  por  se  tornar  um  célebre  falsário  de  documentos  oficiais.224  Já  na  América  portuguesa  setecentista,  Marco  Antônio  Silveira  comenta  o  evento  relacionado  entre  um  comerciante  de  fazenda  e  José  Joaquim  da  Rocha,  na  época  atuante  como  escrivão  do  cartório  dos  ausentes  em  Vila  Rica,  que  teve  problemas  judiciais porque um ex‐secretário seu havia passados documentos no mercado com a         221   GALENDE DÍAZ.  “El cuerpo de revisores de letras antiguas”, p. 238‐239.  222   Cf. BOUZA ÁLVAREZ. Corre manuscrito,  223   Esse tema será abordado extensivamente no capítulo 3.   224    BOUZA ÁLVAREZ. Corre manuscrito, p. 45 e 78. 

sua assinatura, valendo‐se da intimidade que tinha com a letra do antigo patrão. Com  o  avanço  das  atividades  comerciais  na  região  das  Minas  durante  o  século  XVIII,  Portugal  teve  que  implantar  um  controle  de  escrituração  nas  firmas  comerciais,  punindo severamente o crime de falsa identidade.225 

Além  das  habilidades  do  desenho,  relacionadas  à  capacidade  manual  do  calígrafo  ou  escrivão,  para  falsificar  um  documento  havia  uma  série  de  recursos,  tal  como usar das técnicas de escritura para renovar a tinta de letras velhas ou envelhecer  a  tinta  de  escritos  novos.  Estas  receitas  se  encontravam  nos  mais  diversos  livros  de  “segredos das artes”226 ou mesmo em manuais destinados a  jovens, nos  quais estas  receitas  eram  descritas,  certamente  para  outras  finalidades.  José  Lopes  Baptista  de  Almada,227  seguindo  alguns  de  seus  contemporâneos,  instruía  em  como  fazer  tal  tratamento: para as tintas que perderam a cor com o tempo, dever‐se‐ia cozinhar em  vinho algumas galhas de árvore em pedaços228 e aplicar o resultado desse cozimento  sobre o papel, com uma esponja.  Outra técnica faria aproveitar o resultado de  uma  mistura  química  para  dois  efeitos  diversos:  destilar  em  um  vidro,  em  fogo  brando,  pedra‐ume, vermelhão, salitre e caparrosa romana,229 na proporção de 5:4:3:1; deste  cozimento tirar‐se‐iam duas soluções: a primeira, branca, que se usaria pra renovar as  letras, e a segunda, verde, que se usaria para tornar a tinta com aspecto envelhecido,  devendo‐se passar o papel sobre o vapor proporcionado pelo aquecimento desta água. 

       225   SILVEIRA. O universo do indistinto, p. 97‐98. 

226    Ver,  como  exemplo,  Segredos  das  Artes  liberaes,  e  mecanicas,  recopilados,  e  traduzidos  de  varios  authores  selectos,  que  trataõ  de  Fisica,  Pintura,  Arquitetura,  Optica,  Quimica,  Douradura,  e  Acharoado, cum outras varias curiosidades proveitosas, e divertidas. Seu Autor o Licenciado D. Bernardo  de  Montón  vertido  de  Castelhano  em  Portuguez  por  Joaquim  Feyo  Cerpa.  Lisboa,  Na  Officina  de  Domingos  Gonçalves.  MDCCXLIV.  Com  todas  as  licenças  necessárias;  Segredos  necessários  para  os  ofícios, Artes e manufacturas e para muitos objectos sôbre a economia doméstica. Lisboa: Officina de  Simão Taddeo Ferreira, 1794. 

227   ALMADA.  Prendas  da  adolescencia  ou  adolescencia  prendada,  p.  15  e  16.    Esse  autor  será  abordado com mais detalhes neste e no próximo capítulo. 

228   A  galha  apodrecida,  rica  em  tanino,  é  um dos  materiais usados para  fazer  a  tinta  ferrogálica  usada na época. 

229   A caparrosa, ou sulfato ferroso, é um dos componentes da tinta ferrogálica, de coloração azul  esverdeado, também conhecido como vitríolo verde. 

Estas  técnicas  obviamente  não  eram  ensinadas  para  finalidades  ilícitas,  mas  serviam igualmente para falsificar a idade dos documentos alterando algumas de suas  características visuais mais claras, como são a qualidade e a cor da tinta ferrogálica,  que se oxida permanentemente em contato com o ar, perdendo sua coloração escura  inicial e ganhando o tom sépia. Sendo conhecimento disseminado através dos manuais  populares  para  as  artes  liberais,  estes  recursos  eram  igualmente  conhecidos  pelos 

experts,  que  deveriam  estar  capacitados  a  detectar  estas  modificações  a  partir  da 

análise organoléptica das tintas utilizadas.