Eurípedes retoma o argumento. Após fornecer uma versão da morte de Clitemnestra na Electra, onde a protagonista surge casada com um camponês, transferindo a ação dos palácios para o meio rural, coloca, em Orestes, o herói tomado pelo remorso, enquanto o povo decide, em assembléia, a lapidação dos matricidas.
Entrementes, chegam a Argos, Menelau e Helena, ardilosos, prestes a tomar domínio da cidade a partir da morte dos sobrinhos. Mas não é o que se dá, pois Pílades dessa vez assume o comando e estabelece um plano: irão matar Helena, causadora inicial das desgraças argivas, motivo da morte de tantos parentes queridos na cidade, reconquistando a afeição do povo, e seqüestrarão Hermíone, filha de Menelau, para forçar este a consentir que os irmãos permaneçam vivos. Desse modo, o delirante Orestes se converte num celerado, praticamente em um serial killer , e realiza todo o plano. Helena é resgatada pelos deuses no último segundo, transformando-se em deusa,
num equivalente, às avessas, do sacrifício de Ifigênia em Áulis. Os três amigos, Orestes, Electra e Pílades, se transformam numa gangue implacável que, em uma continuação, Ifigênia em Taúrida – onde vão buscar o socorro da irmã sacerdotisa -, voltarão a se
reunir, dessa vez para dar cabo de Aletes, filho de Egisto com Clitemnestra, ou seja, irmão dos matricidas, que tentaria usurpar o trono.
A lógica de Eurípedes parece-nos, portanto, completamente diversa da de Ésquilo e mesmo da encontrada em Sófocles. Eurípedes reinventa a tragédia, ou melhor, realiza um mergulho no trágico102, habitando, propositadamente, um estilo arcaico para
tornar impressionantes as paixões humanas, lapidando o paradoxo e iniciando a invenção do indivíduo e da psicanálise.
No Hamlet, de Shakespeare, Orestes irá retornar. Agora envolto em novas complexidades, louco desde a abertura da peça, visitado pelo fantasma do pai, sabendo ter que causar a morte da própria mãe. Sua história, porém se duplica ou mesmo se multiplica, em diversos duplos. Em Laertes (que vingará a morte do pai causando a morte de Hamlet), vingança do próprio espelho. Na trupe de atores que encena a peça trágica para o rei (encenariam o Agamêmnon?). Na travessia de Fortimbrás, que também teve o pai morto e que irá reconquistar o reino, trazendo a paz. Na fala final, Hamlet pede a Horácio – que, apesar da juventude, se auto- intitula “um antigo romano” – para que narre sua história. Pois Hamlet se sabe um tirano e vive a loucura do paradoxo na Inglaterra do século XVII: estudante universitário, como os demais personagens jovens, sabe a necessidade de renovar a lei e o Estado, o que, no caso,
representa sua própria derrocada, afinal que faziam tantos nomes latinos em oficiais na distante Dinamarca? Senão representar que Hamlet ocupava indevidamente o lugar de Fortimbrás.
Quando Goethe escreve o Prólogo no Céu do seu Fausto, a cena é praticamente a mesma do Livro de Jó, sendo, no entanto, completamente diferente. Três arcanjos
apresenta-se ao Senhor, que lhe indaga sobre o mundo. O Demônio, com linguagem pândega, lamenta a sorte dos homens, miseráveis, e a própria sorte por ter como missão atormentar criaturas tão fracas. O Senhor comenta sobre Fausto, sua ovelha especial. Mefistófeles alega que este o serve na ânsia do Infinito, movido pela busca de totalidade e não propriamente pela fé. O Senhor, então, autoriza-o a tentar a ruína de Fausto para aquilatar sua predisposição. Mefistófeles garante que sairá vitorioso na disputa. Fecha- se o céu, dissipam-se as nuvens, resta o Diabo, só, que, em solilóquio, orgulha-se de conviver com Deus.
O que temos agora é um Satã cultural, emergindo da Antigüidade clássica e atravessando a revolução romântica para instaurar-se com todo seu cinismo no bojo do classicismo alemão. É, por assim dizer, um artista de circo, a personificar a picardia literária em sua crítica às Letras. Passaram-se cerca de vinte e cinco séculos desde que o poeta bíblico redigira o seu poema dramático. E agora um novo poeta, considerado o mais brilhante do seu tempo, retoma o mote, com a diferença de que, se para o poeta antigo o Mal não estava exatamente exemplificado no Satanás, agora o demônio, que tem vários nomes, mas atende, sobretudo, por Mefistófeles, já satiriza seu próprio declínio após o apogeu do seu poder na Idade Média. Se antes o aedo identificava-se como Porta-Voz de Deus, agora o poeta tenta dublar o demônio para conviver prazeroso na esfera da criação.
Eugene O’Neil retomará a trama da Oréstia em seu Morning becomes Electra103, onde os protagonistas, dessa feita, viverão a história das profundas crises
sociais no sul dos Estados Unidos e a trama dos desejos não revelados. O coro irá ganhar tonalidades pitorescas e a revelação do inconsciente plasmará as novas odisséias que se anunciam para outras eras.
103 O’NEIL, Eugene. Electra enlutada. Tradução de R. Magalhães Júnior e Miroel Silveira. Rio de
Essa ressemantização permanente não nos fala apenas sobre o valor e a importância das obras clássicas aqui trabalhadas, mas também sobre um movimento de interação. Movimento este que encaminha, no Direito, a novos debates sobre a representação e sobre o significado das decisões judiciais.
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