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PERCEPÇÃO E TEORIA DA PRODUÇÃO DOS SIGNOS DE ECO: DESDOBRAMENTOS

CAIM PANCADAS ABEL MORTE

Neste esquema, as linhas pontilhadas representam o conhecimento (ou reconhecimento) de certas posições e funções lógicas que ainda é bastante “fluido”, de modo que só são distinguidas, por assim dizer, categorias bastante gerais – que, apesar de não serem propriamente nem categorias kantianas, nem ícones primários peirceanos, mas, em vez disso, “esboços” da consciência ou unidades intencionais frutos do ato de intencionalidade em direção a um fenômeno no mundo, ainda assim conservam muito daquilo que Kant (1781) escreveu sobre a estética e a analítica transcendentais. As linhas pontilhadas indicam justamente essa indistinção, ao passo que os retângulos de contornos grossos indicam o processo da consciência depois do reconhecimento de cada um dos momentos e agentes desse evento no espaço-tempo (e, sobretudo, depois da formulação linguística). Nesse momento, os papéis já estão determinados pela consciência, de modo que o juízo fica mais claro. É aí então que, abrindo mão de sentenças prontas, teríamos o seguinte esquema mental (que é, em última análise, uma relação sintática ou lógica): “Caim-matar-Abel”.

Diante disso, poderíamos questionar o que é, afinal, este esquema: o objeto, o signo ou o interpretante? Se pensarmos nele como objeto, então ele não pode ser outra coisa, que não objeto na e para a consciência (o objeto imediato peirceano), uma vez que, sem isso, não haveria nenhum trabalho no sentido de identificar e estabelecer o nexo entre agentes e ações. Mas esse objeto (entendido aqui como fenômeno, fluxo de consciência individual) não seria ele próprio uma proto-sentença, um proto-juízo – o que equivaleria a dizer que afirmar que “Isto é uma caneta” é já fazer um juízo dessa caneta, direcionando o signo para aquela caneta específica? Então que diferença haveria entre o objeto e o signo? Ora, qualquer um poderia fazer uma objeção, afirmando que, para que seja um signo, é preciso que alguma coisa de material represente (esteja no lugar de) este objeto. Nesse sentido, seria fácil afirmar que “Caim matou Abel” seria o signo cujo referente equivaleria àquele

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fenômeno no espaço-tempo, fluxo de consciência que, como já dissemos, só encontra a sua razão de ser, sua “materialidade” e individualidade dentro de uma consciência, pois, se não for assim, seremos obrigados a dizer que o perceptum já vem estruturado. Assim, a própria frase “Caim matou Abel”, enquanto componente mental resultante da percepção, estaria em lugar dos fatos (do objeto dinâmico, portanto). Mas, nesse caso, qual seria o interpretante? Como advoga Peirce (1990), o interpretante deve ser um outro signo (ou conjunto de signos), na medida em que, por um lado, está em lugar da expressão significante original, e na medida em que, por outro lado, pode ser realizado como outro(s) conjunto(s) de signos derivados da expressão significante primordial, tais como “Dois irmãos brigaram”, ou, ainda, uma sucessão de imagens na mente do intérprete – seja como uma lembrança do evento, para quem viu, seja a imaginação das ações, para quem não presenciou, mas é informado do acontecimento (e veremos, no capítulo 4, que essas duas ideias estão intimamente ligadas à noção de hipotipose, na obra econiana). Nesse sentido, fica fácil notar a indistinção entre os conceitos que compõem a representação teórica da função sígnica, de acordo com o modelo peirceano do qual Eco é tributário, pois (i) o objeto, para ser percebido como unidade para a consciência, precisa de ser conceitualizado, de modo que ele depende da ativação consciente, por parte do sujeito, da sua presença em algum aspecto ou capacidade, o que o torna sempre um objeto imediato e nunca um objeto dinâmico; logo, para o objeto ser “coisa-para-a-consciência” ele depende de uma

interpretação que afirme inequivocamente (isso é possível?) a sua presença enquanto

unidade intencional de significação – no exemplo acima, a individuação dos irmãos na cena, das ações levadas a cabo por um deles e do resultado final dessas ações, eventos que, por si, permitem um juízo por parte do sujeito que os percebe, juízo cuja validez pode ser ou não questionada; (ii) esse objeto imediato, que poderia ser considerado um “proto- signo” uma vez que está na consciência em lugar da sequência de eventos, demanda uma verbalização, demanda uma forma significante que, em alguma medida, veicule o juízo formado, e isso faz com que o objeto imediato seja “recoberto” pela sentença, pois, mesmo que alguém diga “Caim; matar; Abel”, colocando o evento de uma maneira bem esquemática, sem apelar para desinências verbais, artigos, pronomes, apostos, etc., muito provavelmente será bem-sucedido na transmissão da ideia (portanto, esse alguém será feliz ao ter escolhido essa sentença estranha como signo); e, finalmente, (iii) essa forma

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significante, que é produto do juízo perceptivo, quando é proferida numa situação normal de comunicação, chega a algum outro indivíduo e, por sua vez, desencadeia uma série de processamentos semióticos que, eventualmente, podem ser esquematizados como “Caim; matar; Abel” ou mesmo interpretadas como “Caim matou Abel”, fazendo recobrirem signo e interpretante; dito de outro modo, qual é a interpretação mais evidente do conjunto de signos “Caim matou Abel”, senão, justamente, a própria frase “Caim matou Abel”? Mesmo que não seja isso, mesmo que haja uma infinidade de outras possibilidades (algumas das quais meras paráfrases desse conjunto de signos), entre estas constará, naturalmente, por um lado, a “forma reduzida” (chamemo-la assim) “Caim matou Abel” que é idêntica ao signo – e, por isso, pode ser replicada –, e, por outro lado, uma representação mental do evento que, praticamente, recobre o objeto imediato. Portanto, pensar esse esquema – que é representativo da função sígnica elaborada no momento mesmo da percepção dos fatos em torno dos dois personagens bíblicos – como uma interpretação demanda a fixação de certos conteúdos, sejam eles conteúdos mentais mais ou menos fluidos, sejam eles simplesmente formas expressivas cristalizadas, é fatalmente derivar a linguagem da percepção, situando- as em momentos distintos e praticamente lineares da cognição.

Como escapar desse embaraço? E como continuar sustentando que existem limites para a interpretação no âmbito do “ser” anterior à linguagem? Como é que Eco se salva desse emaranhado de conceitos que se sobrepõem e muito frequentemente confundem mais do que esclarecem? Levando essas questões e objeções para o campo dos estudos literários, uma série de inquietações surge. A primeira delas tem a ver com a suposição de que a leitura do texto produz, na mente do leitor, um signo da obra. Fazendo o paralelo com os termos da semiótica econiana e peirceana, seria como se o texto, enquanto objeto dinâmico, imprimisse iconicamente a sua forma como um objeto imediato que, depois, será interpretado de acordo com algumas de suas particularidades ou capacidades, aspectos que, bem entendido, de alguma forma estão presentes (ainda que latentes) na forma. Mas, diante de tudo o que dissemos acima, é possível sustentar ainda que a abstração produzida pelo intérprete é, de algum modo, um signo da obra? Como sugerimos acima, só poderíamos chamar a abstração de signo da obra se a ela se prendesse uma forma de expressão que estabelecesse com ela uma função sígnica. Como isso não acontece – pois a seleção dos elementos pertinentes pode permanecer não-dita, não expressada pelo intérprete,

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configurando-se apenas como uma unidade intencional em sua mente –, a única ideia que podemos ter a respeito da abstração produzida é a de que ela é o tão-somente o fundamento

da experiência, sobre a qual se estabelecerão as funções sígnicas ulteriores. Nesse sentido,

recuperando aquele nosso exemplo hipotético acima, a abstração do texto T para o intérprete I é, em primeiro lugar, o reconhecimento da existência objetiva desse texto e, em segundo lugar, a representação individual e particularizada que o intérprete faz para si do texto. Nada além! Porém, mesmo essa concepção nos traz problemas: na medida em que a abstração é o objeto que ocupa o vértice direito do triângulo semiótico (o vértice reservado ao objeto), qual seria o representamen que estaria em seu lugar? Não poderia ser a interpretação “o texto T fala de X”, porque essa expressão não diz respeito ao objeto, mas sim à mediação entre o signo e o interpretante. Mas, na ausência de um signo, se colocássemos essa formulação no lugar do representamen, o que sobraria como interpretação do texto, uma vez que não haveria qualquer mediação (thirdness) entre o conhecimento objetivo do texto na percepção e o conhecimento que é possível se fazer dele através das constantes mediações proporcionadas pelo código de que dispomos para dar conta de nossas experiências? Percebe-se, portanto, como, ao nos livrarmos de um embaraço, criamos outro...

Poderíamos ser indulgentes com o esquema econiano e fazer uma distinção entre dois tipos de interpretação, mais ou menos como a distinção entre sema e fema, de Peirce, respectivamente: de um lado, uma interpretação que estaria mais ligada ao problema da percepção (como quando alguém diz que um texto com dois quartetos e dois tercetos, de estrutura rímica e rítmica regular é um soneto); de outro, uma interpretação mais ligada aos desdobramentos semióticos de um objeto em um contexto (como quando alguém infere que o soneto que ele ora lê fala, por exemplo, da “miserável condição humana”). Diante disso, e somente assim, é que se poderia sustentar – mas apenas com muita insegurança – que a abstração que um intérprete faz de um texto origina um signo, pois que essa abstração é o conteúdo de uma expressão que enforma e recorta os elementos do texto como uma percepção que ao mesmo tempo diz o que o texto é (um texto literário) e de que modo os elementos o representam (como uma espécie de “didascália” ou “resumo”, que caracterizaria o texto sem, necessariamente, inseri-lo num contexto comunicativo que dele

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tirará as mais diversas conclusões).57 Desse modo, teríamos então que o reconhecimento do texto, mediante processos lógico-dedutivos, aparece como sema da forma significante, ao passo que as interpretações decorrentes são femas. Assim, por exemplo, poderíamos separar, de um lado, uma interpretação de Guerra e paz que simplesmente dissesse que o livro “é a história de um casal, Pedro e Natasha, que se passa na Rússia czarista, que se encontra em guerra com Napoleão” – que, evidentemente, ressaltaria apenas um aspecto dos tantos elementos possíveis, mas que, mesmo assim, faria jus à obra Guerra e paz e a nenhuma outra, sendo essa interpretação facilmente reconhecida como digna da obra em questão –, e, de outro, uma interpretação que situasse essa característica essencial relevada dentro de um contexto qualquer de recepção e produção de sentidos, como alguém que diz que o livro “é a história de um casal, Pedro e Natasha, que se passa na Rússia czarista, que se encontra em guerra com Napoleão, e que nos mostra como o amor pode estar sujeito a contingências inesperadas e frutificar mesmo e sobretudo depois das traumáticas e adversas experiências que uma guerra proporciona etc.” Ou seja, ainda aqui haveria dois momentos distintos da cognição de um texto: um primeiro momento que coincide com o reconhecimento de padrões e estruturas sígnicas razoavelmente codificadas, cuja existência (para falar mais uma vez em “ser”) é garantida por uma estrutura autônoma que lhes prevê valores semânticos específicos, hierarquicamente organizados dentro de um sistema que leva em conta a força e a iterabilidade do contexto, e um segundo momento que diz respeito ao agenciamento desses elementos individualizados no primeiro momento em forma de uma proposição que lhes confira uma intencionalidade, no sentido de uma “razão de ser”, um motivo qualquer por estarem ali presentes, naquela ordem. Vê-se, então, que, mesmo adotando a teoria da percepção, ao tentar salvar os argumentos aparentemente contraditórios dentro da teoria econiana da produção de signos, cai-se mais uma vez no paradigma sincrônico que, como já vimos, entre outras coisas dá ao texto literário tratamento similar ao que é dado à língua.

57 Para dar um exemplo análogo com um objeto conhecido, poderíamos pensar no caso em que o sujeito,

vendo uma cadeira absolutamente original, como aquelas projetadas por artistas conceituais, poderia interpretá-la como “cadeira”, sem daí derivar mais nenhuma interpretação secundária. Num segundo momento, quando ele já tiver internalizado que tal objeto é uma cadeira, então aí sim ele poderia pensar no que, do ponto de vista do uso dos signos, é possível interpretar sobre uma cadeira, como, por exemplo, “essa cadeira serve para se sentar”; “essa cadeira foi projetada para dar mais conforto às costas”; “essa cadeira é para idosos”; “essa cadeira sempre me lembra que o Ocidente foi construído a partir do trono dos reis” etc., colocando, portanto, esse reconhecimento original num fundo de conhecimentos enciclopédicos.

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Todavia, a despeito dessa contradição, ainda que consentíssemos em manter essa distinção provisória entre dois momentos da interpretação, o reconhecimento dos elementos e o agenciamento lógico (sintático) deles, isso apenas deixaria ainda mais evidente a precariedade da teoria. Mesmo para uma teoria semiótica, é praticamente impossível distinguir entre as acepções mais sofisticadas de um signo e as acepções mais imediatas, assim como é decerto complicado distinguir os sentidos conotativos e os sentidos denotativos de um signo sem fazer qualquer menção a um contexto específico (e, mesmo assim, há momentos em que tal distinção é pouco clara).58 E, de qualquer modo, do ponto de vista da teoria e da crítica literárias, não há nenhum valor em se distinguir meramente algumas formas essenciais da literatura ou, ainda, fazer “resumos” da intriga de um romance ou dos versos de um poema. Desse modo, não se poderia traçar uma axiologia de valores entre duas interpretações absolutamente legítimas de um texto literário: Madame

Bovary é a história de uma mulher adúltera ou é a história de uma mulher perturbada pelos

arquétipos literários que ela consome em meio a um casamento insatisfatório? Crime e

castigo é a história de um criminoso frio e calculista ou é a história de como o homem não

pode sobreviver em paz com a sua culpa? De que modo podemos dizer que uma acepção é mais literal, ou mais legítima, ou mais natural do que a outra? Qual é, verdadeiramente, a interpretação do texto literário: a sua “didascália” ou a revelação do sentido implícito, do sentido que só vem à luz no contexto? Além disso, em literatura, como já vimos nos capítulos anteriores, os signos de que se compõe a obra na maior parte das vezes obtêm relevo por sua acepção não-literal: é o caso dos mundos-possíveis que a literatura cria e dos quais lança mão para dizer que um porco não equivale à nossa experiência de um porco, na medida em que ele é capaz de falar e construir casas que mais tarde serão derrubadas pelo fôlego indômito de um... lobo! Em decorrência disso, na literatura, muito frequentemente interessam as interpretações criativas, não-literais, que tomem a obra literária sob um aspecto semioticamente mais indireto do que a simples percepção de que, por exemplo,

Guerra e paz “é um livro sobre a Rússia”.59 Nesse sentido, não fosse pelas razões que já

58 Vimos, todavia, que o desejo de Eco, sobretudo nas obras das décadas de 1960 e 1970, foi o de consolidar

uma hierarquia de sentidos a partir do hábito cristalizado gerado pela média das interpretações, revelando, portanto, uma teoria semiótica implicitamente orientada pela dicotomia denotação versus conotação, mesmo quando o semioticista italiano coloca como objetivo particular fugir dessa axiologia.

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Sobre essas questões, recomendamos a leitura do texto de Culler (1992), onde o crítico norte-americano faz uma defesa da “superinterpretação”, não, obviamente, no sentido que Eco dá ao termo, mas sim no

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alegamos durante os comentários às obras de Eco e Peirce, poderíamos ainda acrescentar que, em literatura, mais do que no uso comum da linguagem, manter essa distinção entre interpretações imediatas e interpretações mais elaboradas parece-nos improcedente, visto que interpretar um texto literário é mostrar toda a potência que aquela forma de expressão tem em se fazer significativa para um intérprete em determinado aqui e agora, intérprete que quer comunicar a sua interpretação não como experiência diríamos “escolar” de um texto (aquela que se atém exclusivamente à trama, ao enredo, ao desenrolar da narrativa, na prosa, ou à estrutura rímica e rítmica, na poesia), mas sim como relação entre conceitos, conteúdos e experiências de mundo e de linguagem altamente sofisticadas (ou, pelo menos, tão sofisticadas quanto podem ser as próprias obras de arte), que englobam discussões muito mais prementes do ponto de vista “extraliterário”.

De qualquer maneira, o fato é que, colocando em xeque as ideias de Eco em torno da percepção e do modo como ela é supostamente governada pelas linhas de resistência do mundo, colocamos em xeque, consequentemente, a sua teoria dos limites da interpretação. Nesse sentido, qualquer tentativa de fixar os limites da interpretação com base nos critérios empiristas invocados por Eco dificilmente será bem sucedida. Ora, o que estamos alegando, acima, é que no nível empírico, no contato do sujeito com a matéria a ser conceitualizada, não existe, em princípio, nenhuma garantia formal sobre a qual se possa instaurar a “unidade fundamental dos comportamentos”. Se as formas e os conteúdos intencionais do

continuum do mundo empírico são noções negociáveis semioticamente, então a própria

ideia de unidade fica seriamente comprometida. Por um lado, não podemos pensar a unidade do ponto de vista da relação entre sujeito e mundo; por outro lado, o plano intersubjetivo, que depende muito dessa unidade, não pode ser delimitado com precisão, posto que nem para o próprio sujeito se pode pensar em regularidades formais ou intencionais. Nesse sentido, como podemos, nós, os sujeitos falantes, os intérpretes do mundo (e da literatura), estar de acordo sobre os juízos perceptivos e sobre as mais variadas conjecturas? Como podemos louvar a convergência das interpretações, se, em alguma

sentido de interpretações voluntariamente não-cooperativas, que, apesar disso, expandem os limites de um texto até, praticamente, os seus máximos graus, a fim de produzir respostas criativas por parte dos intérpretes, respostas que são referendadas pela comunidade de leitores do texto. Culler, a exemplo de Eco, é contra a “interpretação leviana” dos textos; mas, diferentemente do semioticista italiano, Culler toma uma postura mais moderada, aceitando as colaborações que a semiótica de Eco eventualmente consideraria “extravagantes”.

191 medida, escapam-nos os limites do próprio “ser”?

Nesse ponto da obra de Eco (1997) surge de forma decisiva uma personalidade que já havia sido diversas vezes anunciada: Kant. O filósofo alemão surge, em primeiro lugar, porque Eco está preocupado com o fundamento cognitivo para a conceitualização de objetos em geral, mas, também, de fenômenos de cuja natureza o código ainda não se deu conta. Poderíamos aqui estar falando do rinoceronte, para Marco Polo, do ornitorrinco, para os biólogos do século XIX, de um cavalo, para os indígenas da América, ou (mais precisamente do que nos interessa nesta tese) de um texto literário para qualquer um de seus intérpretes, uma vez que, na concepção de Eco, a abertura da obra literária implica numa “desautomatização” da percepção. Partindo daí, percebemos que Eco admite, baseado em Kant (mas, obviamente, também em Peirce, como vimos), que existe uma certa autonomia do campo da percepção, de onde as formas são abstraídas, em relação ao campo da expressão (a linguagem). Somente assim, como já analisamos, é possível para Eco estabelecer que existe um conjunto de elementos abstraídos que pode formar um objeto imediato para a consciência, objeto que, num segundo momento, formará um conceito e, por conta disso, numa segunda mediação, um signo tornado pertinente por um código, numa estrutura conceitual independente dos atos concretos de uso da linguagem (enciclopédia). Nesse sentido, independentemente da verbalização desse conceito, o que se tem é que o indivíduo que percebe é capaz de guardar uma representação, uma “memória” do fenômeno para si, a qual, eventualmente, uma expressão fará referência. Essa representação, associada a outras representações, poderá formar uma síntese maior, que comporá o que Eco chama de tipo cognitivo. Assim, mais uma vez Eco segmenta em temporalidades diferentes a relação entre a função sígnica e o mundo conceitualizado.

Essa ideia de autonomia do campo da percepção – e a sua consequente fragmentação temporal – Eco encontra no conceito de esquema, de Kant (1781). Nessa

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