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Sincronia na diacronia: a percepção e as regularidades do sentido

PERCEPÇÃO E TEORIA DA PRODUÇÃO DOS SIGNOS DE ECO: DESDOBRAMENTOS

3.2. Sincronia na diacronia: a percepção e as regularidades do sentido

Diante da dificuldade de circunscrever os limites da interpretação no horizonte da lógica cultural dos signos, Eco opta por procurar na teoria da percepção a ancoragem necessária para as suas conjecturas teóricas. É nesse âmbito que Eco busca escorar a intersubjetividade, entendida como garantia fundamental do entendimento coletivo sobre os textos e, principalmente, como ancoragem para a validez das interpretações. E, de acordo com Eco, essas questões passam necessariamente por uma reflexão sobre o “ser”, de modo que a pergunta fundamental que um estudo sobre a percepção deve responder é: “[p]or que

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existe o ser em vez de nada?”. Por que é que encontramos, em todo lugar, o “ser” – em nós mesmos, nos outros, no mundo, na nossa consciência, na linguagem? Uma primeira tentativa de resposta diria que o “ser” é o que se coloca como o fundamento duplo da percepção: de um lado, o “ser” é o sujeito consciente de onde emanam os gestos, as atitudes, as volições, os desejos, as intenções, enfim, toda a gama de sentimentos, ações e estados mentais que, por um lado, constitui o “ego cogito” que se posta diante do mundo e, por outro, instaura a percepção de si como sujeito; por outro lado, o “ser” é também o próprio mundo, ou aquilo que está diretamente relacionado a esse “ego cogito”. Portanto, de acordo com essa definição preliminar, a ideia do “ser” está intimamente ligada à percepção e, por conseguinte, à possibilidade de conhecimento de algo. Sem o “ser”, quer o pensemos na sua forma arqui-intencional (o sujeito), quer o pensemos na sua forma extensiva (a coisa-para-o-sujeito), não existe qualquer possibilidade de intuir ou formular ideias a respeito de nós mesmos ou daquilo que nos cerca. E, sem a afinidade recíproca dessas duas formas do “ser”, o “ego cogito” e o mundo, não existe a possibilidade de conhecimento.45

45 O leitor deste trabalho terá notado como essas frases soam assaz kantianas. É de Kant o postulado de que a

sensação, juntamente com os conceitos a priori, redunda no entendimento do mundo. Isso se deve, mais uma vez, à herança kantiana de Eco, que frequentemente desponta em suas formulações. De qualquer maneira, apesar dessa herança kantiana, é mais ou menos assente que, quando se trata do estudo da percepção e do conhecimento de algo mediante a percepção, deve-se, em princípio, pôr em dúvida o próprio “ser”, sua identidade, regularidade e presença – e mesmo a fenomenologia da percepção, que rompeu em grande medida com a noção kantiana de esquema, não despreza a ideia de correlação entre o “ser” que percebe e a coisa percebida (ver, por exemplo, Merleau-Ponty 1945), seguindo uma instrução cartesiana. Aliás, quer nos parecer que qualquer alternativa a isso poderia cair num psicologismo ou num empirismo vulgares, que as Investigações lógicas de Husserl (1901), apesar dos excessos, tentam contra- atacar. Há ainda, é claro, a alternativa do pragmatismo de Rorty (1979 e 2000), que procura romper com a ilusão de uma epistemologia cujos fundamentos autossatisfatórios são, por isso mesmo, inquestionáveis, abraçando uma noção mais ligada ao darwinismo e ao que se poderia denominar “pathos” humano (valores como “esperança”, “humanismo” etc. têm um lugar privilegiado no pensamento de Rorty, muito mais do que a epistemologia, por exemplo). Rorty (2000, pp. 38-39) afirma: “No contexto da filosofia acadêmica pós-kantiana, a substituição do conhecimento pela esperança tem um significado bastante específico. Significa desistir da ideia kantiana de que há algo chamado ‘a natureza do conhecimento humano’ ou ‘o escopo e os limites do conhecimento humano’ ou ‘a situação epistêmica humana’, que deve ser estudado e descrito pelos filósofos. [...] Pois, tendo-a [a ideia kantiana] abandonado, não seremos mais capazes de dar sentido à afirmação de Descartes de que o fato de podermos estar sonhando impõe dúvidas sobre todo o nosso conhecimento do mundo exterior. E isto porque não iremos reconhecer nada como ‘nosso conhecimento do mundo exterior’ ou ‘a ordem natural das razões’ – uma ordem que, por exemplo, começa com as ‘contribuições dos sentidos’ e segue daí para cima da maneira tradicionalmente reverenciada pelos empiristas, de Locke a Quine. [...] Desistir da ideia de uma justificação independente do contexto é desistir da ideia de ‘conhecimento’ como um objeto apropriado de estudo – a ideia que Descartes e Kant herdam do Teeteto de Platão.” Essa afirmação de Rorty – que, de certo modo, reverbera as posturas desconstrucionistas vistas no capítulo anterior – mostra que é possível pensar o “ser” sem investigar o fundamento lógico-formal que o determina na e para a consciência. Mas essa alternativa

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Por isso, podemos afirmar que, quando se trata de percepção, está-se tratando também da questão em torno do “ser”. Nesse sentido, o “ser” pode ser pensado sob dois pontos de vista praticamente antagônicos: ele pode ser considerado como presença inexorável fora da consciência ou ele pode ser considerado como presença a partir da consciência. De qualquer forma que se pense no “ser”, o certo é que ele não escapa de uma reflexão que leve em conta o problema da linguagem como mediadora entre o “ser-no- mundo” e o “ser-para-alguém”. Como o próprio Eco nos lembra,

[o] ser já existe antes de se falar dele. Mas só podemos transformá-lo de evidência insuprimível num problema (que aguarda resposta) porque falamos dele. A primeira abertura ao ser é uma espécie de experiência estática, embora no sentido mais materialista do termo, mas enquanto permanecemos nesta evidência inicial, e muda, o ser não é um problema filosófico, tal como não é problema filosófico para o peixe a água que o sustém. Mas no momento em que é do ser que falamos, não falamos dele ainda nessa sua forma omnienvolvente, porque, como já se disse, o do ser (a mais natural e imediata das experiências) é o menos natural de todos os problemas, o que o senso comum nunca se põe; nós começamos a caminhar às apalpadelas no ser, nele recortando entes, e nele construindo pouco a pouco um Mundo. [Eco 1997, p. 31.]

O “ser” existe antes de falarmos dele, mas só se manifesta na linguagem – eis o que afirma Eco. O “ser” é aquilo que nos faz falar: “[o] ser, enquanto pensável, apresenta-se- nos desde o princípio como um efeito de linguagem” (Eco 1997, p. 33, destaque do autor). E, por isso, “[n]o momento em que nos aparece à frente, o ser suscita interpretação; no momento em que podemos falar dele, está já interpretado” (idem, ibidem). Percebe-se, então, que, para Eco, a questão do “ser” está fundamentalmente ligada à questão da interpretação do mundo e de sua conceitualização através da linguagem, mediante a percepção. Ora, se o “ser” manifesta-se e torna-se evidência insuprimível apenas no âmbito da linguagem, significa então que o próprio “ser” está submetido à intersubjetividade, uma das características da linguagem (seja enquanto sistema semântico, seja enquanto princípios

redunda, no fim das contas, numa reflexão sobre o “ser”, ainda que no seu aspecto mais provisório e circunstancial. Aos poucos, veremos que Eco afasta-se cada vez mais dessa possibilidade, ainda que assuma alguns princípios peirceanos que estão, também, na base do pragmatismo de Rorty.

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de cooperação pragmática). Com isso queremos apenas dizer que, segundo Eco, restrito ao universo exterior ao campo da consciência, o “ser” não se exprime, o “ser” não se coloca como um problema, o “ser” não pode ser discutido, debatido, interrogado, de modo que todo e qualquer conhecimento sobre o “ser” torna-se ou impossível (porque jamais o sujeito poderá ter acesso à suposta “essência” do “ser”), ou incontestável (porque, por mais que o sujeito tivesse acesso, o conhecimento, restrito à sua consciência e não estendido ao campo intersubjetivo, seria puramente subjetivo, privado). Apenas com a introdução da linguagem, que apresenta o “ser” para além de sua própria condição empírica, é que podemos colocá-lo como ponto de convergência do conhecimento compartilhado. Isso significa que a aceitabilidade coletiva do “ser” depende, inicialmente, do fator intersubjetivo: pensar no “ser” é pensá-lo não mais conforme sua própria origem, mas sim conforme a sua inserção cultural numa estrutura que é, ao mesmo tempo, pré-categorial e pós-categorial.

Sendo assim, surge uma outra inquietação: como é que podemos, entre nós, falar de algo a respeito do “ser” e estarmos em acordo com nossos predicados? Como é que podemos nos compreender mutuamente quando temos o “ser” como fundamento do discurso? Se o “ser” só se manifesta na linguagem, então o jogo das trocas simbólicas determina o fundamento do “ser”? Se for assim, então o ser aparece como uma mera “arbitrariedade”, uma relação frouxa entre linguagem e mundo? Em vista disso, o entendimento em torno do “ser” seria equivalente ao entendimento em torno da linguagem? Relegado exclusivamente ao âmbito da linguagem, o “ser” não se diferenciaria muito daquilo que arbitrariamente se concebe como a sua “essência”. Dito de outro modo, a “essência” do ser na linguagem ou é um conjunto de traços estruturados em eixos, axiologias, particulares de base, que se somam para formar as identidades no seio de um sistema maior de hiperonímia e hiponímia, ou é tão-somente um valor que se agrega por oposição a outros “seres”. Porém, de acordo com Eco (1997) a coisa não funciona exatamente assim: o entendimento mútuo acerca do “ser” só é possível porque o “ser”, como condição primeira do discurso, impõe à linguagem a sua marca, reduzindo o universo do dizível às funções e propriedades características do “ser” (do “ser” enquanto “coisa- para-o-sujeito”, e não enquanto sujeito mesmo).

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são sempre prospectivadas, ligadas ao modo como estamos biológica, étnica, psicológica e culturalmente radicados no horizonte do ser. Estas características não impediriam os nossos discursos de adequarem o mundo, pelo menos a partir de certa perspectiva, sem que por isso sintamos satisfeitos com a quota de adequação obtida, de modo a sermos induzidos a nunca considerar senão as nossas respostas, mas quando afinal de contas parecem “boas”, têm de ser consideradas definitivas.

Mas o problema não é como chegar a acordo com o fato de se poder falar do ser de muitos modos. É que, uma vez identificado o mecanismo profundo da pluralidade das respostas, se chega à questão final, que se tornou central no mundo dito pós-moderno: se infinitas, ou pelo menos astronomicamente indefinidas, são as perspectivas sobre o ser, significa isto que uma vale a outra, que todas são igualmente boas, que toda a afirmação sobre o que é diz algo de verdade, ou que – como disse Feyerabend para as teorias científicas – anything

goes? [Eco 1997, pp. 52-53.]

Essa pergunta – que é fruto de uma insatisfação de Eco com as respostas vigentes nos paradigmas contemporâneos ao seu trabalho, entre os quais o pensiero debole, de Gianni Vattimo, que é abordado em (Eco 2007, pp. 517-53646) – aparentemente aponta para uma contradição com a primeira citação acima: ora, se o “ser” manifesta-se apenas na linguagem, como ele pode determinar as regras do jogo entre o que vale e o que não vale? Nesse sentido, se não há presença intersubjetiva do “ser” antes que se possa pensar e falar a

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Vale a pena citar um episódio particularmente interessante nesse debate entre Eco e o pensiero debole. Em 1988, ao lado de Gianni Vattimo, Eco participou da edição de um livro consagrado ao pensiero debole. Por conta disso, seu nome foi associado a essa corrente de pensamento, ainda que ele próprio afirme que sua contribuição ao livro não seguiu a esteira dessa corrente filosófica – e embora, como esta tese deixa claro, a maioria dos seus livros se afaste drasticamente dessa linha de pensamento. No capítulo “Il pensiero debole vs i limiti dell'interpretazione” (Eco 2007), Eco faz questão de dissolver qualquer dúvida, mostrando que ele nunca esteve filiado às ideias relativistas de Vattimo e outros. A citação a seguir é bastante esclarecedora do modo como Eco se opõe ao pensiero debole: “[i]o credo che persino il più 'debolista' dei seguaci del pensiero debole non dica che non esistono fatti, bensì che non abbiamo nozione di alcun fatto se non attraverso la serie delle nostre interpretazione – per cui non dobbiamo perdere tempo a investigari i fatti bensì a capire la mutevole storia delle loro rappresentazioni. Ma certamente il dibattio tra debolisti e no si gioca proprio sulla decisione se l'affermazione precedente debba concludersi a questo ponto o se non debba implicare come sua naturale prosecuzione la questione (a cui Pierce era sensibile) se, sullo sfondo della sequenza delle interpretazioni, non si erga sempre la presenza ineludibile di un oggetto

dinamico. Siccome l'idea di uma sequenza di interpretazioni si regge e ha senso solo se si ammetta che ci

sia qualcosa da interpretare, non avrà anche senso occuaparsi di questo qualcosa?” (Eco 2007, p. 520, destaques do autor).

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respeito dele, então não seria a princípio admissível imaginar que é o “ser” quem determina o jogo da linguagem, estando ele, pelo contrário, sujeito às imputações da própria lógica interna do funcionamento da troca simbólica (mas, longe de qualquer garantia metafísica de uma convergência de sentidos, valeria a pena ainda falar em lógica?). É evidente, então, que o problema que Eco levanta aqui diz respeito ao modo como, ao falarmos do mundo, podemos estar de acordo com as nossas descrições, conceitualizações e formulações, de um lado, e os fenômenos, de outro – ou seja, como podemos estar de acordo com relação aos nossos juízos factuais. Diante disso, a questão que surge é a seguinte: haveria, no âmbito do “ser” anterior à linguagem, constrangimentos ao juízo perceptivo e, consequentemente, ao discurso? E, na medida em que falar do “ser” é interpretá-lo, fazendo passar do âmbito empírico para o âmbito subjetivo da consciência e, em seguida, para o plano intersubjetivo da linguagem, haveria no próprio “ser” anterior a isso tudo limites para a sua interpretação? Eco também manifesta esta inquietação no seguinte trecho:

[s]e for princípio hermenêutico que não há fatos mas só interpretações, isto não exclui que nos possamos interrogar se não haverá por acaso interpretações “más”. Porque dizer que não há fatos mas só interpretações significa decerto dizer que o que nos parecem fatos são efeitos de interpretação, mas que toda a interpretação possível produz algo que, à luz de interpretações sucessivas, somos obrigados a considerar como se fosse um fato. Ou seja, dizer que toda figura vencedora do pôquer é construída por uma escolha (se calhar encorajada pelo acaso) do jogador, não significa dizer que toda a figura proposta pelo jogador seja vencedora. Bastaria que ao meu trio de ases ou outro opusesse uma sequência máxima, e a minha aposta demonstrar-se-ia falaciosa. Na nossa partida com o ser haverá momentos em que Algo responde com uma sequência máxima ao nosso trio de ases? [Eco 1997, pp. 56-57.]

Neste trecho, a noção de que o jogo da linguagem não pode superar a presença pungente do “ser” exterior a ela fica bem representada pela metáfora do pôquer. É como se o “ser” eventualmente não pudesse ser derrotado no próprio jogo da linguagem. Embora as regras de combinação das figuras do pôquer sejam arbitrárias – e o valor assumido por uma combinação qualquer dentro da estrutura dependa da conservação mútua dessa

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arbitrariedade primordial –, isso não significa que, diante de uma sequência reconhecidamente vencedora, possamos impor a nossa veleidade ao jogo. É preciso reconhecer que os fatos – mesmo que sejam fatos que corroboram as regras da linguagem – impõem-se aos participantes do jogo. Isso significa que, de algum modo, no entendimento de Eco, o “ser” conserva um tipo de “nervura”, de “pedestal”, como se, no mundo, houvesse uma pré-estruturação que indica linhas de resistência por onde podem passar, em primeiro lugar, a consciência individual de cada sujeito e, em seguida, a episteme e a linguagem. Isso faz com que, em alguns momentos, a interpretação do mundo não seja adequada às linhas de força, o que faz com que o discurso caia numa espécie de “mentira” deliberada ou, talvez, num “desvio categorial” (inconsciente ou não). E, ao pressupor que existem interpretações levianas ou equivocadas acerca do mundo, Eco está de algum modo rompendo com a noção de que a lógica cultural dos signos de algum modo determina o nosso reconhecimento do “ser”, para abraçar o próprio “ser” como fundamento da linguagem, instância onde devem existir barreiras mais ou menos explícitas que detêm o processo hermenêutico. Entre a arbitrariedade do jogo (das regras) e a manifestação dos fatos do mundo, situa-se a interpretação.

Essa ideia chega a Eco a partir de Peirce. Na sua resenha às obras de Berkeley, Peirce (1990, p. 321) admite que a arbitrariedade é característica de todo pensamento que tem o mundo como referente. Segundo o pragmatista norte-americano, isso se deve ao fato de que todo o pensamento é sempre circunstancial e dependente da inclinação do sujeito para com o mundo. Nesse sentido, sempre que houver um sujeito “de frente” para um “algo”, haverá um conhecimento provisório e parcial. Porém, para Peirce, apesar dessa inescapável condição provisória do conhecimento imediato do mundo, sempre há um inegável limite para além do qual a contingencialidade e a arbitrariedade não são capazes de interferir. Além disso, a diversidade das formulações a respeito do mundo não impede o acordo mútuo entre diferentes indivíduos – em vez disso apenas o adia. Mas esse adiamento não afeta, segundo o pragmatista americano, o acordo final sobre esse “algo”. E é isso que permite Peirce (1990, p. 320) afirmar que “[...] um ser humano qualquer tenha suficiente informação e pense o suficiente sobre uma questão qualquer, e o resultado será que ele chegará a uma certa conclusão definida, que é a mesma a que chegará qualquer outra mente nas mesmas circunstâncias suficientemente favoráveis.” Peirce (1990, pp. 324-325) ainda

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[é] a mesma natureza que na mente é universal e in re singular; pois se não o fosse, ao conhecermos algo de um universal nada estaríamos conhecendo das coisas, mas apenas de nossos próprios pensamentos, e nossa opinião não se converteria de verdadeira em falsa através de uma mudança das coisas. Esta natureza é concretamente indeterminada apenas na medida em que estiver na mente. Mas dizer que um objeto está na mente é apenas uma maneira metafórica de dizer que ele permanece, com o intelecto, numa relação de conhecido para conhecedor. Portanto, a verdade é que aquela natureza real que existe in re, à parte de toda ação do intelecto, embora seja em si mesma, à parte de suas relações, singular, é concretamente universal na medida em que existe para a mente. Mas esse universal só difere do singular no modo de ser concebido (formaliter), porém não no modo de sua existência (realiter).

Vê-se, portanto, que Eco e Peirce estão de acordo sobre o fato de que a variedade infinita de perspectivas sobre o mundo não cancela a possibilidade de acordo mútuo sobre o “ser”. Dito de outro modo, embora o “ser” esteja sempre aberto ao escrutínio do sujeito que o percebe, ele de alguma forma dá a palavra final. Com isso, é fácil para Eco afirmar que o “ser”, no seu plano pré-estrutural e pré-categorial, direciona o modo como podemos pensar e falar dele, em qualquer circunstância. E tal suposição deve repousar em uma das duas garantias epistemológicas abaixo:

(1) por um lado, os indivíduos são dotados de capacidades lógicas e mentais mais ou menos idênticas, de modo que eles podem chegar a conclusões verdadeiras e únicas dentro de condições as mais diversas – o que significa, em outras palavras, que a estrutura do pensamento (chamemo-la “lógica”, ou “mente”, ou qualquer outro nome que a ela se dê) é distribuída entre os indivíduos de forma minimamente igualitária. Nesse sentido, os “desvios” do conhecimento são devidos ou ao pouco tempo de exposição à coisa in re, ou a um atraso na cognição, ou até mesmo a uma interferência no contexto, que “embaça”, por assim dizer, as conclusões mais óbvias. E, se pensarmos assim, então não estaremos longe daquilo que Eco (1990 e 1992) implicitamente afirma, isto é, que, sendo o contexto de interpretação

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absolutamente favorável, qualquer resposta interpretativa desviante é um “uso”, decorrente seja de uma manipulação consciente, seja de uma desatenção no ato de percepção e consequentemente no ato de interpretação;

(2) por outro lado, pode-se admitir que a própria materialidade, a própria realidade, apresenta cortes preferenciais que interferem no modo como os sujeitos devem apreendê-la. Assim, a despeito do fato de que a capacidade de percepção e conceitualização possa ser, eventualmente, igualmente distribuída entre os sujeitos, no fundo é o próprio “ser” que instaura com a consciência individual uma interação que, de certo modo, “enforma” conteúdos lógicos e mentais que compõem o universo do dizível, conteúdos que, decerto, serão relacionados com formas

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