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2.3 A construção medial

2.3.2 Propostas para a construção medial

2.3.2.3 Cambrussi (2007, 2008)

Cambrussi propõe uma análise polissêmica para a construção medial tendo como base a teoria do Léxico Gerativo, de Pustejovsky (1995). Essa teoria propõe decompor o léxico de forma estruturada e relacionar os sentidos em uma composição de significados lexicais, ao invés de enumerar e distinguir os itens lexicais por meio de conjuntos de traços semânticos. Nessa teoria, a informação lexical possui os seguintes níveis de representação: a estrutura argumental, a estrutura de evento, a estrutura qualia e a estrutura de herança lexical, que, estando interligadas, produzem a interpretação composicional das palavras em diferentes contextos. Portanto, ao assumir o modelo de Pustejovsky, Cambrussi assume que o léxico é altamente estruturado e o sentido dos itens depende das relações de composição com outros itens ou expressões. Nessa perspectiva, a autora assume que expressões mediais e expressões incoativas constituem uma só construção, mas com dois sentidos relacionados.

Segundo a teoria adotada pela autora, a estrutura de evento de um item lexical possui uma especificação de núcleo. No caso dos verbos que se integram à construção medial, a autora assume que a falta de especificação do evento núcleo na estrutura de eventos do verbo gera polissemia e, consequentemente, diferentes estruturas sintáticas possíveis. Por exemplo, um verbo como cozinhar, segundo Cambrussi, possui uma

estrutura de eventos complexa, da qual se pode prever as possibilidades de alternância entre uma construção transitiva, uma incoativa e uma medial:

(81) Estrutura de eventos de cozinhar EA = [ARG1= x:ind ARG2= y:ind] EE = E1= e1: processo

E2= e2: estado Núcleo = e1, e2

QUALIA = causativo_lcp

Formal= cozinhar_resultado(e2,y) Agentivo= cozinhar_ato (e1,x,y)

Segundo a autora, “há, para cozinhar, um ato de ‘cozimento’ marcado pelo qualia agentivo e o estado final de ‘cozido’ marcado pelo qualia formal”. A autora explica que, com o evento 1 (e1), referente ao ato de cozimento, interage mais diretamente o argumento X, correspondente ao agente. Com o evento 2 (e2), referente ao estado final, interage mais diretamente o argumento Y, correspondente ao tema. Como ambos os subeventos estão listados no atributo ‘Núcleo’, um não depende do outro para se realizar sintaticamente. Trata-se, portanto, de um verbo alternante entre uma construção que exprime como núcleo do evento o ato de cozimento e uma construção que exprime como núcleo do evento o estado final:

(82) Maria cozinhou o feijão. (83) O feijão cozinhou. (84) Feijão cozinha fácil.

Segundo Cambussi, tanto em construções mediais (84), quanto em construções incoativas (83) e transitivas (82) tem-se o mesmo verbo cozinhar, mas com destaque para facetas distintas de seu sentido: a construção transitiva destaca todo o processo de

cozimento, enquanto as construções incoativas e mediais referem-se apenas à parte final do processo. Essa situação caracteriza a polissemia verbal.

Por outro lado, verbos que não possuem uma estrutura de eventos complexa não alternam entre construções mediais, incoativas e transitivas. A autora fornece exemplos com os verbos saber e usar, que, em sua estrutura de eventos, contêm apenas um subevento:

(85) saber:

EA = [ARG1= x:ind ARG2= y:ind] EE = E1= e1: estado

QUALIA = estativo_lcp Formal= saber(e1,x,y) (86) usar:

EA = [ARG1= x:ind ARG2= y:ind] EE = E1= e1: processo

QUALIA = processo_ lcp Formal = usar(e1,x,y)

A autora reforça que uma estrutura de eventos que apresenta apenas um subevento só tem uma opção de núcleo matriz, e, consequentemente, só pode se realizar sintaticamente de uma forma, que, nesse caso, é a transitiva:

(87) Ele sabia matemática. / *Matemática sabia. / *Matemática sabe fácil. (88) João usou o carro. / *O carro usou. / *Carro usa fácil.

Entretanto, essa análise é ainda insuficiente para explicar a construção medial, pois não a diferencia da incoativa. Assim, a autora passa à análise de algumas propriedades distintivas das mediais, como a genericidade, o uso do modificador adverbial e a interpretação atribuída à construção. Cambrussi observa que incoativas

são sempre marcadas temporalmente, ao passo que médias são inicialmente restritas ao tempo presente não marcado ou gnômico51, o que favorece a leitura genérica das expressões mediais. Baseando-se em Costa (1990), a autora observa que “sentenças construídas no presente gnômico são incompatíveis com a imperfectização, ou seja, o fato expresso pelo verbo é atemporal e referido de maneira global, sem possibilidades de partitura interna”. A autora ainda diferencia construções mediais com SN nu e SN pleno no que diz respeito à genericidade que veiculam:

(89) a. Lápis aponta fácil. b. Este lápis aponta fácil.52

Segundo Cambrussi, construções mediais com SN nu, como mostrado em (a), apresentam duas leituras: i) para qualquer x, se x é lápis, x é facilmente apontado; ii) para qualquer agente x, se x apontar lápis, x o fará fácil/facilmente. Já construções mediais com SN pleno, como mostrado em (b), apresentam apenas a leitura de genericidade para o agente implícito: para qualquer agente x, se x apontar este lápis, x o fará fácil/facilmente. Entretanto, não vemos essa diferença de interpretação. Em realidade, ambas as construções mostradas acima apresentam a leitura de que lápis ou este (tipo de) lápis aponta facilmente, com a possível inferência de que é fácil para alguém apontar lápis.

Segundo Cambrussi, a modificação adverbial não é obrigatória em construções mediais do PB:

(90) a. Esse piso não limpa. b. Nenhum piso limpa. c. Batata doce assa. d. Essa batata doce assa?53

51

Ou seja, dotado de teor moral.

52

Exemplos de Cambrussi, p. 108, (122).

53

Entretanto, esses exemplos não nos parecem totalmente aceitáveis como instâncias da construção medial, a não ser que estejam inseridos em um contexto específico, algo como “batata doce assa, mas cenoura não”. Portanto, vamos considerar o modificador como parte integrante da construção, como tentativa de garantir que o corpus desta pesquisa seja composto apenas de ocorrências totalmente aceitáveis na língua.

Em síntese, Cambrussi reconhece como características definidoras da construção medial: a leitura genérica para o agente implícito e a interpretação de propriedade intrínseca para o tema. Quanto à interpretação de um agente implícito, já explicamos se tratar de uma inferência, que pode ser possível também para a incoativa. Já a leitura genérica e a interpretação de propriedade são aspectos de significado que parecem realmente distinguir a construção medial da construção incoativa. Entretanto, para Cambrussi, esses aspectos de significado não são suficientes para distinguir incoativas e mediais como construções separadas. Para a autora, mesmo sendo as interpretações distintas, trata-se de uma só construção na língua. Nesta tese, tomamos a direção contrária e assumimos que, como há motivação semântico-pragmática para se distinguir as construções, com base no que mostram os dados, então elas podem ser descritas como construções independentes.

2.3.2.4 Conclusões

As propostas apresentadas contribuem para o estudo da construção medial desta tese em muitos aspectos. Com o trabalho de Fagan, realça-se a importância dos aspectos semânticos e da conceptualização associada a uma descrição de evento para a caracterização desse fenômeno nas línguas; a importância de se investigar a natureza das descrições de evento associadas à construção medial – se voltados para o agente ou para o processo; e a importância de se reconhecer a função de desfocalização do agente da construção medial, tanto para se explicar essas propriedades da construção, quanto para se entender a ocorrência do clítico em PB. Kageyama explicita como a função de desfocalização é atendida, assumindo a função específica de estativização para a medial.

Cambrussi contribui ao mostrar propriedades semânticas importantes da construção medial no PB, especialmente a genericidade e a leitura de propriedade.