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4.4 A construção passiva do PB

4.4.1 Eventualidades compatíveis com a construção passiva

O primeiro grupo de verbos que designam eventualidades compatíveis com o significado da construção passiva é o grupo dos verbos de ação/causação. Esse grupo pode ser dividido ainda em duas grandes classes: a dos verbos necessariamente agentivos e a dos verbos causativos/agetivos. Os verbos necessariamente agentivos designam um evento transitivo prototípico e, portanto, são verbos cujo significado lexical é alto em transitividade. Eles designam um evento de ação entre dois participantes, em que X direciona essa ação e causa um tipo de afetação em Y. Por exemplo, o verbo cortar designa um evento em que X age e causa um corte em Y. O participante X é, portanto, a fonte da ação de cortar, enquanto que o participante Y é o alvo. Os verbos necessariamente agentivos, embora possuam em comum o significado de ação, diferem em relação ao tipo de afetação provocada. O tipo de afetação provocada não interfere na compatibilização do verbo com a construção passiva, importando apenas que exista a noção de direção de ação e consequente afetação. Assim, todos os verbos necessariamente agentivos se integram com a construção passiva, não importando se seu significado especifica apenas uma afetação geral, como em (209)-(211); um benefício, como em (212)-(214); uma criação, como no caso de (215)-(217); uma mudança de lugar, como mostram (218)-(220); ou uma mudança do tipo locatum, como mostram (221)-(223):

(209) Os brinquedos foram ajuntados pelas crianças. (210) O violão foi afinado por José.

(211) A carne foi cortada por Maria. (212) Paulo foi absolvido pelo juiz. (213) Maria foi acolhida pela mãe.

(214) O vizinho foi acudido pelos bombeiros. (215) A música foi composta por Marisa Monte. (216) A tese foi escrita por Maria.

(217) Esse carro foi fabricado pelos italianos.

(218) Os documentos foram arquivados pelo estagiário. (219) O dinheiro foi embolsado pelo policial corrupto. (220) Os quadros foram emoldurados por um amigo meu. (221) O ladrão foi algemado pela polícia.

(222) O menino foi agasalhado pela mãe. (223) O cavalo foi selado pelo funcionário.

A segunda grande classe dos verbos que designam ação/causação é composta por verbos causativos/agetivos, que não designam necessariamente uma ação, podendo designar tanto uma eventualidade de ação, associada a um agente prototípico, quanto uma eventualidade de causação, associada a uma causa, mas não a um agente. Por exemplo, o verbo quebrar designa uma ação/causação em que um participante X, sendo um agente ou uma causa, provoca uma mudança de estado no participante Y. O resultado associado ao significado desses verbos é sempre de mudança de estado, seja ele físico ou psicológico. Esses verbos também designam eventualidades compatíveis com o significado da construção passiva, não importando se a mudança provocada é de estado físico como mostram (224)-(226), ou psicológico, como mostram (227)-(229):

(224) O vaso foi quebrado por João. (225) A janela foi aberta por Maria.

(226) O registro foi fechado pelo síndico. (227) Maria foi acalmada por João.

(228) A menina foi alegrada pelos palhaços. (229) Antônio foi assustado pelo cachorro.

O segundo grupo de verbos cujos significados designam eventualidades compatíveis com o significado da construção passiva é o dos verbos de processo. Para esse grupo, analisou-se, representativamente, a classe dos verbos de obtenção, que designam um evento em que X obtém Y de certo modo, a ser especificado por cada raiz verbal. Há dois tipos de verbos nessa classe: os verbos que se integram prontamente com a construção passiva e os verbos que se integram com a construção dependendo da composição de sentidos com os outros itens lexicais que a preenchem. Por exemplo, o verbo vencer designa uma eventualidade em que X obtém Y vencendo. A raiz desse verbo especifica que, para vencer algo, tem de haver interesse ou esforço de X. Assim, verbos como vencer designam, por si só, uma eventualidade direcionada de X para Y. Sendo compatíveis com a noção de direção, esses verbos são compatíveis com a construção passiva, como mostram os exemplos:

(230) Esses bens foram acumulados por meu pai. (231) Esse carro foi adquirido por meu pai.

(232) A vaga de emprego foi conseguida pelo profissional mais qualificado. (233) Os documentos foram obtidos pelo despachante.

(234) Meus documentos foram reavidos pelo despachante.

O verbo ganhar, por outro lado, embora também designe uma eventualidade em que X obtém Y, não especifica uma direção da eventualidade de X para Y. Entretanto, dependendo da composição de sentidos desse verbo com o participante Y, a noção de direção pode emergir. Por exemplo, em X ganhou um presente, não se pode dizer que o participante X direcionou a eventualidade de ganhar para o participante um presente. A

eventualidade de ganhar um presente não acarreta nenhum envolvimento ou interesse por parte de X, e, portanto, não há direcionamento da eventualidade descrita pelo verbo de X para Y. Consequentemente, essa composição de itens lexicais não é compatível com o significado da construção passiva:

(235) *Um presente foi ganho por ele.

Por outro lado, no caso de X ganhou a aposta, a composição dos sentidos de ganhar com o participante a aposta faz emergir um direcionamento de X para a aposta. Para ganhar uma aposta, é preciso que X se empenhe, tenha interesse ou simplesmente faça a aposta. Portanto, a eventualidade de ganhar uma aposta é direcionada de X para Y, sendo compatível com o significado da construção passiva:

(236) A aposta foi ganha por Maria.

Outros verbos do tipo de ganhar são:

(237) A encomenda foi recebida por João. / *Um tapa foi recebido por João. (238) Muitas dívidas foram contraídas pela empresa. / ?A doença foi contraída por Maria.

O último grupo de verbos que designam eventualidades compatíveis com a construção passiva é o dos verbos de estado de experiência. Esses verbos designam uma experiência direcionada de X, o experienciador, para Y, o objeto da experiência. Por designarem uma eventualidade direcionada entre seus participantes, esses verbos também são compatíveis com o significado da construção passiva, como mostram os dados:

(239) Maria foi amada por João.

(240) O professor foi respeitado pelos alunos.

(241) Esse sapato foi cobiçado por todas as mulheres. (242) As atrizes foram invejadas por todos do estúdio. (243) O assassino foi odiado por toda a comunidade.