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2.2.3 Análises baseadas na noção de raiz

2.2.3.2 Cançado e Godoy (2009, 2010)

Cançado e Godoy (2009, 2010) propõem relacionar dois níveis de representação lexical dos verbos: o nível sintático-lexical, proposto por Hale e Keyser (inicialmente em 1993, sendo re-elaborado em 2002), e um nível semântico-lexical, representado pelas decomposições em predicados semânticos primitivos, propostas com base em Rappaport-Hovav e Levin (1998) e Levin e Rappaport-Hovav (1995, 1999, 2005, 2009) e Cançado (2010). O nível sintático-lexical representa a estrutura argumental dos verbos e funciona, na interpretação das autoras, como a ligação entre uma semântica lexical e a sintaxe propriamente dita. Segundo Cançado e Godoy, o que relaciona as estruturas sintático-lexical e semântico-lexical é a noção de raiz, presente em ambos os níveis: na sintaxe lexical de Hale e Keyser, a raiz é representada por meio de uma categoria gramatical; na semântica lexical, ela equivale a uma categoria ontológica. Segundo as autoras, a coincidência terminológica da palavra “raiz” nas propostas de Levin e

Rappaport-Hovav e Hale e Keyser não é gratuita. Elas afirmam que Levin e Rappaport- Hovav entendem as estruturas de Hale e Keyser como uma versão “sintática” da decomposição de predicados. Portanto, o objetivo principal de Cançado e Godoy é construir uma proposta de mapeamento entre a sintaxe e a semântica.

Para nossos propósitos, será relevante mostrar, primeiramente, apenas a explicação de Hale e Keyser para a alternância causativa, e não toda a teoria dos autores. De início, é importante observar que a sintaxe lexical de Hale e Keyser se atém ao argumento interno, pois a sintaxe do argumento externo é atribuída pelos autores à sintaxe propriamente dita, estando, portanto, fora do escopo da teoria proposta por eles. Segundo os autores, os verbos que participam da alternância causativa, como clear, são derivados de um adjetivo. A estrutura assumida para esses verbos é uma em que há a projeção de um Spec, uma exigência de raízes de natureza adjetival25:

(34) V DP V

V A

A presença da posição de especificador (o DP em (34)) na estrutura sintático-lexical projetada pela raiz A é responsável por sua transitivização, explicando por que verbos como clear alternam. Abrindo a posição de Spec, essa estrutura sintático-lexical, ao ser encaixada na estrutura sintática propriamente dita, permite acomodar dois argumentos – um interno, gerado em Spec V (V2 na estrutura completa mostrada abaixo), e um

externo, sempre presente no nível sintático (Spec V1):

25

Segundo Hale e Keyser (2002), um adjetivo requer um argumento, o que é interpretado na teoria como uma exigência da posição de Spec.

(35) V1 DP V1 V1 V2 DP V2 V2 R

Por outro lado, Hale e Keyser mostram que verbos que não participam da alternância causativa, como dance e laugh, são verbos denominais, morfologiamente relacionados a nomes, e, portanto, associados a uma estrutura cuja raiz é um nome. Segundo eles, nomes não requerem um especificador e, portanto, não apresentam uma estrutura que projeta Spec:

(36) V V N

A ausência da posição de Spec não permite que a estrutura sintático-lexical projetada pela raiz desses verbos seja transitivizada, pois, ao ser encaixada na estrutura sintática propriamente dita, poderá acomodar apenas um argumento, o externo. É a ausência da posição de Spec que explica, portanto, porque os verbos denominais não participam da alternância causativa. Em outras palavras, a explicação de Hale e Keyser para a alternância causativa é de natureza puramente estrutural.

Cançado e Godoy propõem, então, uma proposta de mapeamento semântico conjugada à teoria de Hale e Keyser, a fim de acomodar generalizações de natureza semântica. As autoras partem de um refinamento da representação dos esquemas de evento associados aos verbos. Tomando os verbos cujas raízes codificam resultado (seguindo Rappaport e Levin, 2010), as autoras refinam essa classificação, sugerindo diferentes tipos de resultado codificados pelos verbos. Os verbos de resultado são

subdivididos em dois grandes grupos: os verbos de mudança de estado e os verbos de ação.

Baseadas em Parsons (1990), as autoras explicam que verbos que denotam uma mudança de estado acarretam necessariamente o sentido de: become ADJ, em que há um adjetivo relacionado ao verbo. Evidências dessa relação são dadas pelas autoras através do seguinte teste, em que as sentenças em (a) acarretam sua respectiva sentença em (b):

(37) a. O João quebrou o vaso.26 b. O vaso ficou quebrado. (38) a. A filha preocupou a mãe. b. A mãe ficou preocupada. (39) a. O calor amadureceu a banana. b. A banana ficou madura.

Semanticamente, um adjetivo corresponde a um estado, podendo ser representado pela categoria ontológica STATE. Levin e Rappaport-Hovav (1995, 1999, 2005, 2009) e Rappaport e Levin (1998) fornecem a seguinte representação semântica para esses verbos:

(40) v: [[X ACT] CAUSE [Y BECOME <STATE>]]

As autoras agrupam os verbos em (37) a (39) em uma só classe, porque todos eles participam da alternância causativa uniformemente. Entretanto, Cançado e Godoy observam haver diferenças semânticas mais finas entre os verbos dessa classe, propondo três subclassificações. Baseadas em Cançado (2010), as autoras observam que, além dos verbos do tipo em (36) expressarem uma mudança de estado, eles

também expressam uma opcionalidade no que se refere à agentividade27 do participante X. Segundo Cançado (2010), esses são verbos causativos/agetivos, e apresentam o predicado primitivo ACT, responsável por propriedades de agentividade, apenas opcionalmente:

(41) v: [[X (ACT)] CAUSE [Y BECOME <STATE>]]

Em outras palavras, verbos causativos/agetivos não requerem que seu participante X seja necessariamente interpretado como um agente:

(42) João quebrou o vaso (por um descuido)/ (deliberadamente).

Outros verbos de mudança de estado causativos/agetivos, segundo Cançado e Godoy, são: amassar, apagar, entortar, estragar, fechar, queimar, rasgar, etc.

Já os verbos do tipo apresentado em (38), veiculam, além da mudança de estado, uma concepção de evento em que, segundo Cançado (1995, 2010), o participante X não é, de forma alguma, interpretado agentivamente. Esses são, segundo Cançado e Godoy, verbos estritamente causativos. Uma evidência de seu caráter puramente causativo (e nunca agentivo) é o fato de não aceitarem um instrumento:

(43)*A filha preocupou a mãe com uma faca.28

A distinção entre verbos causativos/agetivos e verbos estritamente causativos parece ser relevante para a construção passiva. Conforme as autoras observam, verbos estritamente causativos não se compatibilizam com a construção passiva:

27 Nesse caso, a agentividade de um participante é dada por sua associação a ACT. Um participante apresenta agentividade se, na representação semântica do evento descrito pelo verbo ao qual está associado ele é um argumento do predicado primitivo ACT. Uma noção de agentividade mais ampla será utilizada na análise da construção passiva, no capítulo 6.

(44) a. O vaso foi quebrado por João. b. * Maria foi preocupada por João.

A representação semântico-lexical proposta pelas autoras para verbos estritamente causativos é mostrada em (45). Nessa representação, o predicado primitivo ACT não está presente:

(45) v: [[X] CAUSE [Y BECOME <STATE>]]

Com base em Cançado e Amaral (a sair), Cançado e Godoy classificam os verbos do tipo apresentado em (39) como incoativos. Elas propõem uma representação semântica para esses verbos em que o predicado primitivo CAUSE aparece entre parênteses, marcando sua opcionalidade. Essa representação semântica, mostrada abaixo, indica que a mudança de estado é o principal sentido lexicalizado por esses verbos e pode ser opcionalmente motivada por uma causa:

(46) v: ([X] CAUSE) [Y BECOME <STATE>]

Segundo as autoras, para verbos incoativos, X pode ser acrescentado ao verbo como argumento de CAUSE, cujo sentido não é inerente ao verbo.

Incorporando a distinção entre verbos externamente causados e verbos internamente causados de Levin e Rappaport-Hovav (1995), Cançado e Amaral (a sair) explicam que verbos incoativos como amadurecer não podem ser tratados como verbos causativos/agetivos porque os primeiros explicitam uma mudança de estado que se deve a um processo interno ao participante Y. Por outro lado, verbos causativos/agetivos como quebrar explicitam uma mudança de estado que se deve a um processo que ocorre externamente ao participante Y, não dependendo dele para se efetivar. Com base em Levin (2009), Cançado e Amaral também explicam que verbos incoativos referem-se a um tipo de evento que apresenta uma “motivação” como causa,

ou seja, algo que cria o ambiente propício para a ocorrência do processo. Entretanto, o processo em si só irá se desenrolar se o participante Y, que passa por esse processo, tiver propriedades inerentes que o efetivem. Por causa disso, elas consideram que esses verbos são também estritamente causativos, como os verbos do tipo de preocupar, mas diferem destes últimos por uma razão morfossintática: verbos incoativos, ao contrário de verbos estritamente causativos, não permitem, sistematicamente, a ocorrência do clítico se29 na construção incoativa:

(47) *A banana se amadureceu.

Tendo refinado as representações semânticas para a classe de verbos de mudança de estado e proposto três subdivisões semânticas para essa grande classe, Cançado e Godoy partem para a explicitação do mapeamento dessas subclasses na sintaxe. Segundo elas, as três classes de verbos de mudança de estado, possuindo como raiz ontológica a categoria semântica STATE, projetam uma estrutura sintático-lexical cuja raiz é a categoria sintática A(djetivo). Em outras palavras, a categoria semântica STATE corresponde, na estrutura sintático-lexical, a um adjetivo. Sendo a raiz um adjetivo, sua estrutura sintático-lexical, segundo a proposta de Hale e Keyser (2002) é uma em que há a projeção da posição de Spec. A presença de Spec, por sua vez, licencia a possibilidade de um argumento alternante, prevendo a ocorrência da alternância causativa para todos os verbos de mudança de estado. Assim, as subdivisões semânticas propostas por Cançado e Godoy para os verbos de mudança de estado não têm relevância para a sintaxe, entretanto, podem ajudar a explicar, segundo as autoras, outros fenômenos semânticos.

A segunda grande classe de verbos de resultado analisados por Cançado e Godoy é a dos verbos de ação. Esses são verbos que descrevem conceptualizações de evento

29 Cançado e Amaral (a sair) analisam mais detidamente a questão da ocorrência do clítico se com verbos incoativos em contraste com verbos causativos, ponderando sobre as propostas encontradas na literatura para explicar esse fenômeno. Não entraremos em detalhes por não ser relevante para esta pesquisa, mas

agentivas, ou, nas palavras de Cançado e Godoy, têm um agente implícito em seu sentido, sendo classificados como verbos estritamente agentivos. Além disso, as autoras afirmam que suas representações semânticas são complexas, compostas por dois subeventos relacionados por uma causação. Segundo elas, o primeiro subevento é a ação do agente e o segundo subevento é o resultado da ação, denotando algum tipo de afetação no segundo participante, mas não uma mudança de estado. As autoras realçam que os verbos de ação estudados não participam da alternância causativo/incoativa e são, essencialmente, verbos denominais, ou seja, relacionados morfologicamente a um nome.

Cançado e Godoy reconhecem três tipos de verbos de ação no PB: location (mudança de lugar) e locatum, seguindo descrição de Clark e Clark (1979) e Hale e Keyser (2002), e verbos benefactivos. Embora as três subclasses estejam relacionadas à mesma categoria sintática N(ome) e, consequentemente, à mesma estrutura sintático- lexical de Hale e Keyser, Cançado e Godoy mostram que essas subclasses apresentam paráfrases diferentes e certas distinções semânticas que podem ser captadas por meio da decomposição de predicados. Segundo as autoras, verbos de location possuem a paráfrase: colocar algo/alguém em (lugar). Por exemplo, o verbo hospitalizar é um verbo de location porque apresenta a seguinte paráfrase: colocar alguém no hospital. Em outras palavras, o nome ao qual o verbo se relaciona denota um lugar. As autoras propõem a seguinte representação semântico-lexical para os verbos de location:

(48) [[X ACT] CAUSE [Y BECOME [IN <PLACE>]]]

Os verbos de locatum, segundo Clark e Clark (1979), são semelhantes aos verbos de location, mas diferem quanto à posição que o nome que dá origem ao verbo ocupa em sua paráfrase com esse nome. Por exemplo, para verbos de location como engavetar, a paráfrase é colocar Y na gaveta. Já para verbos de locatum, como amanteigar, a paráfrase é colocar manteiga em Y, em que o nome manteiga aparece como complemento do verbo da paráfrase. Contudo, as autoras optam por seguir a

paráfrase proposta por Hale e Keyser (2002:20) para verbos de locatum, que, no caso de amanteigar, é: prover Y com manteiga. Hale e Keyser consideram sua paráfrase mais adequada com base no seguinte raciocínio. Se a paráfrase de Clark e Clark estivesse correta, em que amanteigar o pão corresponderia a colocar manteiga no pão, então seria possível formar algo como *enlivrar a gaveta, cuja paráfrase, por semelhança, seria colocar livro na gaveta. Naturalmente, isso não é possível. Assim, concordando com Hale e Keyser, Cançado e Godoy propõem a seguinte representação semântica para verbos de locatum:

(49) [[X ACT] CAUSE [Y BECOME [WITH <THING>]]]

Seguindo o mesmo raciocínio de Hale e Keyser em relação aos verbos de locatum, Cançado e Godoy adotam a mesma paráfrase para verbos benefactivos: prover Y com N. Assim, para verbos benefactivos como presentear e patrocinar, a paráfrase adequada, segundo as autoras, seria: prover Y com presente/patrocínio. A representação semântica proposta pelas autoras para os verbos benefactivos é, portanto, a mesma dos verbos de locatum:

(50) [[X ACT] CAUSE [Y BECOME [WITH <THING>]]]

Segundo as autoras, o que difere verbos de locatum de verbos benefactivos é a raiz, que denota o que é dado e atribui a Y um papel de beneficiário.

Por fim, as autoras mostram que os três tipos de verbos de ação vão projetar uma mesma estrutura sintático-lexical, cuja raiz é um N(ome). Em outras palavras, Cançado e Godoy mostram que as raízes ontológicas PLACE e THING são mapeadas em uma estrutura sintático-lexical de Hale e Keyser cuja raiz é N(ome). Essa semelhança de mapeamento explica, segundo as autoras, duas características dos verbos de ação em geral: sua origem nominal e a não participação na alternância causativa. Portanto, a subclassificação proposta por Cançado e Godoy para verbos de ação também não

apresenta uma motivação sintática, sendo apenas a divisão entre verbos de mudança de estado e verbos de ação de relevância para a sintaxe. As autoras observam que essa sobreposição de representações semânticas em apenas determinada estrutura sintático-lexical é esperada, visto que o mapeamento entre semântica e sintaxe é de natureza “muitos para um”, ou seja, há mais categorias semânticas/ ontológicas do que categorias sintáticas para codificá-las.

2.2.3.3 Conclusões

Rappaport Hovav e Levin (2010) propõem uma distinção entre verbos que lexicalizam maneira e verbos que lexicalizam resultado que se mostra relevante para a alternância causativa. Essa distinção explica de forma mais natural a participação na alternância causativa do que a proposta de Ciríaco e Cançado (2009), que propõem que um verbo deve ser compatível com um desencadeador indireto para poder participar da alternância causativa. Com a análise de Rappaport Hovav e Levin, essa explicação se segue mais naturalmente: verbos que não participam da alternância, como carregar e levar, parecem ser verbos que especificam a maneira como a ação é realizada, estando associados, portanto, a raízes de maneira, que modificam o predicado ACT. Como eventos não podem ser argumentos de ACT, então esses verbos não alternam. Em outras palavras, fica demonstrado, com a análise de Rappaport-Hovav e Levin que apenas verbos de mudança de estado alternam, possuindo uma raiz associada à categoria ontológica STATE e ao predicado primitivo BECOME. Cançado e Godoy (2009, 2010), incorporando a distinção entre verbos de maneira e verbos de resultado de Rappaport Hovav e Levin (2010), refinam as classes semânticas dos verbos cujas raízes codificam resultado para o PB, contribuindo para a descrição do léxico verbal do PB e também para esta pesquisa em particular, principalmente porque muitas classes de verbos analisadas nesta pesquisa seguem a divisão proposta pelas autoras. Ainda, ao adotarem a representação da opcionalidade de ACT para verbos causativos/agetivos de Cançado (2010), Cançado e Godoy avançam em relação a Rappaport-Hovav e Levin na

descrição dos verbos causativos. Esse refinamento permite a codificação, na representação de um esquema de evento, da distinção entre agente e causa.