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Caminhada dos Terreiros de Pernambuco: entra em cena o “Povo de Jurema”

CAPÍTULO III – DE RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS À POVOS E

4.2 Caminhada dos Terreiros de Pernambuco: entra em cena o “Povo de Jurema”

A “Caminhada dos Terreiros de Pernambuco” é um dos mais importantes eventos unificados das comunidades tradicionais de terreiro do estado. É organizado pela Articulação Caminhada dos Terreiros de Pernambuco (ACTP) que desde 2007 reúne lideranças, participantes e simpatizantes das religiões de matriz africana, que caminham em cortejo pelas ruas do centro de Recife reivindicando o fim da intolerância religiosa e do racismo. Interessante notar que as motivações da caminhada, o fim da intolerância religiosa e o racismo, são bandeiras de unidade com o movimento negro como vimos anteriormente.

Participamos da VIII Caminhada que aconteceu no dia 04 de novembro de 2014. A concentração oficial do ato público aconteceu no Marco Zero, centro histórico de Recife. Porém, informados pelas redes sociais que a concentração do Povo de Jurema seria na Rua da Guia (localizada também no centro histórico, duas ruas de distância do Marco Zero), para lá nos deslocamos e nos encontramos com alguns participantes que também esperavam. Poucas pessoas presentes. Em torno de dez juremeiros e simpatizantes, dentre eles dois coordenadores do QCM. Todos com trajes típicos da Jurema (os homens com camisa branca ou colorida, calça branca e o chapéu do mestre; as mulheres com camisa branca e saia rodada colorida), traziam seus cachimbos, fumo, bebidas que seriam

102 Reportagem que foi transmitida pela Rede Globo disponível em

ofertadas às entidades e também uma faixa com o slogan “A Jurema merece respeito”. Abaixo da mensagem a indicação dos organizadores “Quilombo Cultural Malunguinho” e também o desenho de um negro e de um índio ao lado da mensagem principal (Apêndice - Figura 17).

O coordenador do QCM, Alexandre L’Omi L’Odò, deu início a uma pequena liturgia de saudação às entidades sagradas da Jurema através de toadas, defumação dos presentes e oferenda de bebidas para as entidades. Antes, explicou que a Rua da Guia é um lugar histórico e sagrado para o Povo da Jurema, porque ali viveram e trabalharam muitos mestres quando estiveram em terra. Por isso a escolha deste local para o início do ato. Explicou que não tiveram tempo para mobilizar outros juremeiros, a maioria dos municípios do entorno, que esperava que no ano seguinte fosse diferente, mas que ainda assim não deixariam de realizar o ato que era importante para o povo da Jurema e também para as entidades. Posteriormente, o grupo seguiu para se juntar ao ato maior que percorria as ruas do Recife com um grande trio elétrico em que vários sacerdotes ao microfone entoavam cantos de louvação aos Orixás.

O Povo da Jurema faz seu próprio ato de concentração na Rua da Guia desde 2010, quando foram proibidos pela coordenação do evento de fumarem seus cachimbos na caminhada. A proibição se deu após a publicação de uma foto no jornal “Folha de Pernambuco”, em que L’Omi e outro juremeiro apareciam com seus cachimbos na Caminhada dos Terreiros de 2009 (Anexo 1). L’Omi reconhece inclusive a importância desta notícia para o crescimento do movimento do Povo de Jurema:

Porque foi a partir dele [Edson], e de uma foto que saiu no jornal Folha de Pernambuco, que a luta pela Jurema cresceu mais ainda, quando a gente sofreu preconceito porque a gente foi com cachimbo pra “caminhada dos terreiros”. Então foi Pau Guiné depois daquela foto meu velho! (Alexandre L’Omi).

De fato, como reação a esta proibição, em 2011 foi lançada a “Rede Nacional do Povo da Jurema”. E em 2012 foi lançada a campanha “A Jurema merece respeito!”. Ambos os lançamentos foram realizados durante a Caminhada dos Terreiros, e através de atos públicos com elementos litúrgicos na Rua da Guia.

Em entrevista para o Diário de Pernambuco em 2011, a respeito da V Caminhada, L’Omi criticava o que ele chamava de “nagocentrismo” e nos indica os elementos do conflito que fez com que o Povo de Jurema passasse a se organizar de forma autônoma:

“Uma caminhada que deveria ser democrática se tornou só do candomblé”. E ainda: “Não queremos nos excluir. Queremos agregar, mas para isso é preciso que a coordenação reveja o evento no seu caráter político. E ainda, durante o pequeno ato na Rua da Guia, L’Omi demostrou sua indignação enquanto falava da proibição da fumaça dos cachimbos:

A gente não tá dentro de uma gira, pra querer separar a Jurema dos Orixás, né? Dentro do terreiro tudo bem. Cada um no seu momento, cada um na sua história. Dentro do terreiro não se questiona isso. Agora a gente tá aqui num ato público, no meio da rua. Se fosse assim, por causa de questão de fumaça de cachimbo, mandava apagar todos os espetinhos por onde fosse passando, as pessoas fumando cigarro nas parada de ônibus, né? Não é fumaça?

Apesar da proibição, quando os juremeiros se juntaram aos outros manifestantes na VIII Caminhada, eles seguiram com a faixa “A Jurema Merece Respeito” e com seus cachimbos acesos durante o percurso oficial (Apêndice - Figura 18). Ainda assim, percebemos que alguns manifestantes torciam seus rostos ou olhavam com desaprovação para os juremeiros com seus cachimbos. Ainda que a maioria dos participantes estivessem vestidos a caráter como se preparados para os ritos, a reação demonstrava que o cachimbo não era tratado como uma indumentária como as outras. Perguntei a um dos juremeiros ao que ele atribui essa reação. Ele me respondeu que era “o preconceito mesmo”. O que percebemos é que de fato, o preconceito ainda existe e especialmente internamente entre os povos de terreiro.

Durante a Caminhada pude conversar também com dois participantes para além dos juremeiros. Os dois são amigos de infância e percorriam a Caminhada juntos. Um deles ocupa uma importante função no Sítio do Pai Adão103 e o outro é padre na cidade de João Pessoa. Enquanto percorríamos as ruas do Recife antigo abarrotadas, acompanhando o trio elétrico que impunha um lento ritmo à caminhada, meus colegas de caminhada me mostravam os locais que frequentavam quando eram criança e falavam das transformações da cidade. Me mostraram onde se localizava o terreiro de Pai Adão, antes de se deslocar para o Sítio no período das reformas urbanas da década de 1930. Mostraram a igreja em que ambos foram coroinha. O amigo que é do sítio do Pai Adão, fez o sinal da cruz ao entrar na igreja, e contou do período que saía escondido após a meia noite para ir ao xangô. Ele falava sobre o passado, entusiasmado com o movimento na rua: “Isso aqui, sair na rua assim, não podia não. Isso aqui é muito recente!”.

103 O Sítio do Pai Adão é a mais tradicional casa de culto aos Orixás de Pernambuco. De acordo com alguns

Após o fim do percurso oficial da Caminhada havia um palco destinado à festa, onde se ouvia as cantigas e saudações às entidades da Jurema. Nesse momento, as pessoas dançavam, algumas bebiam e algumas fumavam seus cachimbos. Distinguia-se de uma festa de rua comum, como muitas que acontecem no Recife, apenas pela grande quantidade de médium incorporados por suas entidades, sobretudo pelos mestres. Merece destaque que os toques em saudação às entidades da Jurema ficaram restritos a este momento final e festivo do evento. Durante o percurso, no carro de som oficial, ouvia-se quase que exclusivamente os toques em louvação aos orixás, e a maioria deles em língua Iorubá.

O palco da louvação às entidades da Jurema foi montado pelos organizadores do evento, mas a festa não era considerada parte da programação do ato político. A festa só se iniciou após o fim do percurso. Houve uma distinção entre os espaços. De um lado, o percurso da caminhada, o espaço oficial do ato político onde predominava os Orixás. De outro lado a festa, o espaço oficioso, o espaço da subversão, da não-ordem, onde predominava a Jurema. E, ao mesmo tempo que são espaços separados, são espaços complementares porque ambos foram montados pelos organizadores. Essa distinção percebida na Caminhada dos Terreiros reproduz a lógica interna de convivência das tradições dentro dos terreiros. Em posteriores visitas de campo que realizamos em alguns terreiros pudemos comprovar essa prática de separação ritualística, ao mesmo tempo da complementaridade do trabalho espiritual.

Os atos protagonizados pelo Povo de Jurema durante a Caminhada dos Terreiros na rua da Guia evidenciam uma busca pela alteração desses lugares estabelecidos. A luta pelo reconhecimento do Povo de Jurema mostra-se então como uma transição do oficioso para o oficial. E, se o oficial é aqui culto ao Orixá, há indicações de que a fronteira com o Xangô (o modelo ideal de culto ao Orixá) representa um elemento essencial na emergência da Jurema. O que ocorre é que a separação sempre existiu dentro dos terreiros, mas foi sempre negada publicamente. O que ocorre agora é uma marcação dessa fronteira no espaço público.

A análise dos momentos na Caminhada dos Terreiros nos mostra que essa marcação de fronteira se dá através da utilização de elementos culturais capazes de promover tanto uma identificação própria quanto uma distinção com relação aos outros povos de terreiro, especificamente com o Xangô. O cachimbo, elemento litúrgico essencial da Jurema, é deslocado de sua função original e no ato público funciona como sinal

diacrítico marcador da fronteira com outros povos de terreiro. A Rua da Guia é espaço sagrado para a Jurema mas é também deslocado de sua função original e cumpre a função de legitimação da autonomia da mitologia da Jurema e sua necessária valorização no contexto público. A faixa com o slogan, o lançamento da campanha “A jurema merece respeito” ,bem como o lançamento da Rede Nacional da Jurema são atos públicos dentro de ato maior _ a Caminhada dos Terreiros _ e são tanto direcionados para o público geral como também para o público interno, os outros povos de terreiro.

4.3 Encontro de Juremeiros e Juremeiras em Alhandra: peregrinação à Meca dos