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CAPÍTULO III – DE RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS À POVOS E

3.2 O Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Em janeiro de 2013, a SEPPIR lançou o I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, para o biênio 2013-2014, com subtítulo “Em defesa da ancestralidade africana, por um Brasil sem racismo”. Neste Plano, os destinatários da política não tratados como religiosos de matriz africana ou povos de terreiro. Nem mesmo aparecem as palavras “religião” ou “terreiro”. É

utilizada apenas a expressão “Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana”, que são definidos como:

grupos que se organizam a partir dos valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços a comunidade (I PNCTMA, p.12). Além da definição desse grupo populacional a quem se destina a política, o texto de apresentação expõem o “objetivo primordial” do I Plano a “salvaguarda da tradição africana preservada no Brasil”, e ainda apresenta a divisão do Plano em três capítulos. No primeiro, faz a fundamentação legal e a caracterização sócioeconômica dos sujeitos de forma a justificar a política para o segmento específico; o segundo capítulo fala sobre a construção do Plano, enfatizando a parceria entre Estado e sociedade civil no processo de elaboração; e no terceiro capítulo, que afirma ser o núcleo principal do Plano, descreve o Quadro de Iniciativas e Metas, bem como os ministérios e órgãos responsáveis por cada uma das ações.

Estas Metas e Iniciativas são as ações pactuadas pelos órgãos que compunham o GTI, e que foram organizadas em três eixos. O primeiros deles, nominado de “Garantia de Direitos”, “reúne ações voltadas para a valorização da ancestralidade africana no Brasil, e para o enfrentamento ao racismo e à discriminação racial”. O segundo eixo, “Territorialidade e Cultura”, incorpora as ações sobre salvaguarda do patrimônio cultural, bem como aquelas voltadas para o mapeamento das casas tradicionais e a regularização fundiária. E no terceiro eixo, chamado de “Inclusão e Desenvolvimento Sustentável”, as ações são relacionadas à promoção da segurança alimentar, do reconhecimento e da valorização das formas tradicionais de saúde, além da ampliação do acesso desses grupos às outras políticas sociais do governo federal. Ainda que o texto afirme que o Capitulo 3 seja o núcleo central do Plano, são os capítulos 1 e 2 que mais nos dizem sobre o processo de reconhecimento desses sujeitos, ou seja, nos apresentam o trânsito nos espaços institucionais da política e as categorias jurídicas construídas, além da participação do grupo social nesse processo.

Na contextualização legal, o plano retoma brevemente a política de promoção da igualdade racial, colocando a CF como marco dessa política, além dos tratados internacionais de criminalização do racismo e de enfrentamento das desigualdades (entre os quais são citados a Convenção 111 da OIT, a Convenção sobre Todas as Formas de

Discriminação de 1969 e as Conferências Mundiais contra o Racismo). Ele enfatiza em âmbito interno o reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas, a criação da Fundação Palmares, e a lei 10639/2003, a partir da qual se coloca a educação para as relações étnico-raciais como tema prioritário das ações do I PNCTMA, afirmando que “sua implementação depende também da participação dos guardiões e das guardiãs da cultura negra no país, as lideranças tradicionais de matriz africana”.

O reconhecimento das lideranças de matriz africana, por sua condição de guardiãs da cultura negra, foi o caminho que descrevemos no capítulo anterior, por ocasião do detalhamento da política da igualdade racial e da inserção dessas lideranças em outros espaços da política pública. Ao mesmo tempo, a construção da temática de desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais, orientada pelo paradigma ambientalista e apropriada pelos movimentos sociais para a reivindicação de direitos territoriais, insere uma tensão fértil no processo de reconhecimentos dos povos de terreiro. A “tradição”, categoria chave de aglutinação da diversidade das coletividades em torno da política inaugurada pelo Decreto 6040, é aqui especificada como “tradição africana”, ou seja, se referem aos valores civilizatórios trazidos pelos africanos escravizados. No texto do I Plano, o conceito de povos e comunidades tradicionais de matriz africana enfatiza a manutenção desses valores e da cosmovisão como um “contínuo civilizatório africano no Brasil”. Interessa destacar que os espaços de manutenção desses valores civilizatórios africanos no Brasil são chamados de “territórios próprios”, substituindo a palavra “terreiros”.

A abertura conceitual possibilitada pela política de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais, qual seja, o reconhecimento de existências coletivas diversas, dentro da qual incluiria a pluralidade inerente às religiões afro-brasileiras, é encerrada na caracterização essencialista da “matriz africana” como sinônimo do “contínuo civilizatório africano no Brasil”. De fato, a categoria “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”, retomando a ideia de “contínuo civilizatório”, contribui para o reconhecimento das casas já legitimadas, por meio da simples demonstração de sua descendência direta dos africanos escravizados, o que também vale para aquelas que já fizeram um caminho de (re)africanização nos seus cultos90.

90 Para um aprofundamento sobre a (Re) africanização dos cultos afro-brasileiros, ver Reginaldo Prandi

É nesse movimento hermenêutico que o I PNCTMA recorta e fecha uma categoria específica - a tradição africana - dentre a variedade de existências coletivas tradicionais que puderam ser reconhecidas pelo decreto 6040/2007 e a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, fundamentando sua política no campo da igualdade racial, como já vinha sendo feito anteriormente, inclusive através do Estatuto da Igualdade Racial. Como sinal dessa continuidade na política, o próprio I PNCTMA dedica o item c do capítulo 1 para descrever o “Panorama geral das políticas públicas e das ações voltadas aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana”, enumerando além da política de segurança alimentar e da política de saúde integral da população negra, a própria política nacional de promoção da igualdade racial, afirmando que esta “dialoga diretamente com as suas demandas e necessidades, na medida em que o efetivo combate ao racismo exige a promoção e valorização dos conhecimentos tradicionais africanos e a garantia dos direitos cultuais da população negra” (I PCTMA, p.19).

Assim, a partir da fundamentação do Plano, parece haver uma continuidade na política destinada aos grupos praticantes das religiões afro-brasileiras através de uma categoria nova: “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”. Esta categoria opera a mesma limitação dos processos de reconhecimento anteriores, uma legitimação que ainda remete de alguma forma à ideia de pureza africana e que, por isso, não engloba a mistura e a pluralidade inerente às expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira. É portanto, uma categoria que tem a limitação de não ampliar os sujeitos reconhecidos.

No entanto, mesmo com estas limitações, a nova categoria amplia os direitos garantidos a estes grupos, através da centralidade da “territorialidade” para a compreensão de povos e comunidades tradicionais. Se, enquanto religião afro-brasileira, tratava-se de garantir o livre exercício dos cultos e práticas rituais, agora, como comunidades tradicionais, trata-se da exigência do direito de acesso aos recursos naturais (aí incluídos tanto os território dos terreiros em si como uso comum de espaços públicos, como parques e cachoeiras) necessários à sobrevivência e à reprodução da vida comunitária de forma integral e dos cultos e ritos como parte dela. Podemos dizer que a categoria da territorialidade resolve um problema central dos povos de terreiro, que até então vinham usando o inadequado instrumento jurídico do tombamento para a proteção dos seus terreiros.

É nesse sentido que o eixo 2, da Metas e Iniciativas, intitulado “Territorialidade e Cultura” define os “territórios tradicionais” como “os espaços necessários à reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica” e que eles “são a base da organização social e da identidade cultural dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana”. Portanto, “a questão fundiária e a preservação do patrimônio cultural são temas centrais para a promoção do desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana” (I PNCTMA, p. 36).

Se observarmos ainda o eixo 3 destas Metas e Iniciativas, que trata da “Inclusão Social e Desenvolvimento Sustentável”, verificamos a presença marcante do paradigma da política de desenvolvimento sustentável de povos tradicionais. Nesse eixo está a previsão da ampliação de acesso dos povos de terreiro às políticas sociais do governo federal, mas enfatizada a necessidade de “atenção às suas especificidades histórico-culturais”. Aqui são incluídas também a política de segurança alimentar e de saúde integral da população negra. Já a ação de distribuição de alimentos é enfatizada como uma ação emergencial, sendo prioritárias as iniciativas de inclusão produtiva e valorização das práticas tradicionais de saúde e alimentação, inclusive com apoio a projetos de agricultura urbana, além de promoção de pesquisas e projetos pautados na agroecologia objetivando trocas de saberes (I PNCTMA, p. 40-44).

Percebemos nessas iniciativas e metas que, embora o fundamento legal do Plano esteja nas normativas relacionadas à Politica de Igualdade Racial, há uma inegável ampliação dos direitos dos povos de terreiros, possibilitados pela abertura paradigmática da politica de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais, que em última instância estão fundadas pelo paradigma da diversidade cultural. Embora este paradigma já estivesse em vigor em âmbito internacional e nacional desde 2001, o I PNCTMA reconhece em suas considerações finais que:

O Plano Nacional representa, portanto, um avanço no horizonte da política de promoção da

igualdade racial e de enfrentamento ao racismo e à discriminação adotadas pelo Estado brasileiro.

Um marco no reconhecimento por parte do poder público de que o enfrentamento à extrema pobreza e à exclusão social devem caminhar em conjunto com as políticas de reconhecimento de

valorização da diversidade cultural e da tradição dos povos e comunidades que construíram a

sociedade brasileira (I PNCTMA, p. 49).

É possível afirmar que o paradigma da diversidade cultural - juntamente com o não menos importante paradigma do desenvolvimento sustentável - deve ser levado em conta nas políticas de promoção da igualdade racial. Isso leva ao questionamento acerca da

extensão da diversidade interna das minorias étnico-raciais reconhecidas por essas políticas. No nosso caso, é necessário a consideração da pluralidade interna desses povos e comunidades tradicionais de matriz africana e da consequente disputa em torno de um conceito que possibilite o reconhecimento dessa pluralidade.