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2.2-A CAMINHO DA CENTRALIZAÇÃO DO PODER RÉGIO: OS PODERES DA ESCRITA

A monarquia medieval, em Portugal, apresenta características muito específicas. Se em grande parte foi influenciada pelo direito romano que sublimava o carácter público dos poderes investidos na personagem do princeps, foi, por outro lado, influenciada pela monarquia neogoda, que embora de carácter electivo, apresentava vestígios fortes de

patrimonialização dos poderes régios. A monarquia asturiense consagrava

definitivamente o princípio da sucessão régia e os reis leoneses tomaram-lhe o exemplo.

A realeza portuguesa foi assim modelada por diversos elementos, seguindo no essencial a natureza das suas origens leonesas. De carácter essencialmente militar nos primeiros tempos de definição de fronteiras do Reino de Portugal, a monarquia guerreira de que fala José Mattoso conseguiu travar significativamente o regime senhorial-feudal, sem nunca pôr em causa, no entanto, a natureza do poder dos senhores da alta-nobreza e do alto-clero. Aliás, ele próprio, o rei, era um senhor feudal, “...o único grande senhor feudal60…”, o mais importante do Reino, um dominus rex , o mais rico detentor de terras e de privilégios, e como tal reconhecido pelas várias comunidades que constituíam um território ainda em construção.

Os destinos da construção do reino de Portugal estavam intimamente ligados não somente ao alargamento e à consolidação do território, por via da guerra com os muçulmanos, mas também ao processo de fortalecimento do poder real, processo de complexidade política notória, tendo em conta a extrema fragmentação política característica desta época. Genericamente, a realeza adoptou uma atitude de

compromisso com os grupos sociais mais poderosos ao mesmo tempo que favoreceu camadas menos privilegiadas, em particular relacionadas com a nobreza ou mesmo com as elites urbanas medievais. Os monarcas medievais reconheceram, desde cedo, a importância de se rodearem de hábeis oficiais, específicos da Cúria régia. Esses oficiais régios – os mores - iriam ter um papel importante no processo de consolidação do poder real .

Nos primeiros tempos do Reino de Portugal, entre os principais oficiais da Cúria, destacaram-se o Mordomo, o Alferes e o Chanceler. Os dois primeiros rivalizaram na preferência e no prestígio alcançados perante a realeza e foram sempre desempenhados por membros da alta-nobreza que acumulavam outras funções, nomeadamente, na tenência das terras. O cargo de Chanceler já existia no reinado de Afonso Henriques e, à semelhança do exemplo dado pela incipiente chancelaria condal, exigia que os seus membros dominassem certos saberes e aptidões, que não eram obviamente inerentes à

60 José Mattoso, Identificação de um País, Ensaio sobre as Origens de Portugal, I-Oposição, Lisboa,

condição nobre. A condição social dos chanceleres era distante da alta-nobreza e

aqueles que conhecemos pertenciam a sectores da nobreza menos privilegiados,ao clero ou a outros estratos sociais menos conhecidoscomo era o caso de Mestre Alberto.61

Entre esses saberes inclui-se o conhecimento das leis, da retórica e o domínio da língua latina escrita, especificamente da ars dictandi, conjunto de conhecimentos relacionados com a produção de documentos. Responsáveis pelo conteúdo dos documentos assim como pela aposição dos sinais de validação, os vários cancellarius que se foram sucedendo, desde os primeiros tempos do Reino de Portugal, deixaram as suas marcas pessoais: o seu nome, o seu estilo e a sua concepção do poder régio e das leis, leis que provavelmente aprenderam no estrangeiro, nomeadamente na Universidade de

Bolonha62. Nas Universidades os novos conhecimentos, resultantes do novo interesse suscitado pelo renascimento do estudo do direito romano, beneficiavam o poder régio.

Mestre Julião, chanceler de Afonso Henriques, Sancho I e Afonso II poderá ser um dos casos referidos63. Nascido em Coimbra, com origens prováveis nas camadas mais baixas da nobreza, Mestre Julião desempenhou um papel fundamental na organização da chancelaria régia nos primeiros anos da formação de Portugal. Pelos seus bons serviços terá sido compensado, ele e seus familiares, com vários privilégios, testemunhados em vários documentos referentes a doação de terras. A importância crescente de um novo tipo de servitium, ligado ao oficialato régio, contribuiu para que as relações entre o poder régio e a escrita se tornassem determinantes.

Julião morreu em 1215, depois de cerca de três décadas ao serviço da chancelaria régia: Julião começaria como chanceler do príncipe Sancho até que, a partir de 1183, substitui definitivamente o nome de Pedro Feijão na documentação da Chancelaria do rei Afonso Henriques64. A sua presença constante na documentação do rei D.Sancho I65 é patente

61 Armando Carvalho Homem, “A Corte e o Governo Central” in Nova História de Portugal, vol.3:

Portugal em Definição de Fronteiras. Do Condado Portucalense à crise do século XIV (dir.Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques), Lisboa, 1996, p. 535

62 Cf. Hermínia Vilar,“Do Arquivo ao Registo. O Percurso de uma Memória no reinado de Afonso II”,

Penélope, nº 30/31, 2004. pp.33-34.

63 Ibidem.

64Cf Rui Azevedo, A Chancelaria Régia Portuguesa nos séculos XII e XII, Linhas Gerais da sua

Evolução, Parte I, Diplomas de D.Afonso Henriques, Coimbra, 1938, .

65Em cerca de trinta e seis por cento da documentação da chancelaria de Sancho I está presente a

na reconhecida qualidade intrínseca e extrínseca dos documentos expedidos pela Chancelaria régia durante este período. Ainda esteve ao serviço de Afonso II, nos

primeiros anos do seu reinado e o seu sucessor, Gonçalo Mendes, decerto terá aprendido com o prestigiado Mestre as regras necessárias para prestar um serviço adequado às exigências políticas de uma realeza em pleno processo de afirmação.

De um modo geral, as transformações da Chancelaria régia durante o período em que Julião esteve à frente do cargo são muito significativas, tendendo a uma cada vez maior estabilização de fórmulas textuais e à crescente uniformização dos critérios de

validação. Marcelino Pereira salienta a especificidade da formação e da função de Julião, relativamente ao que era exigido noutros scriptoria privados, mormente nos de natureza clerical: “... a formação de D.Julião era diferente da do clero, sobretudo religioso, mas também porque essa formação exigia do chanceler o respeito pelos moldes legais na redacção documental. E quando, no começo do texto, usa exórdios ou, antes do dispositivo, formula motivos, escolhe frequentemente tipos mais ou menos uniformes, para não prejudicar com rodeios as ideias do acto régio.”66

Mas, mesmo assim, as arengas que faziam parte dos textos dos documentos saídos da Chancelaria da Corte, sob a responsabilidade de Mestre Julião contêm elementos bastante significativos sobre a natureza dos actos do rei. Nessas arengas, onde o recurso a fórmulas e a usos mais ou menos estereotipados de retórica são evidentes, houve, no entanto, oportunidade para o chanceler defender as suas concepções sobre os poderes da escrita na governação. Como refere José Mattoso, analisando uma das arengas de Mestre Julião: “...exprime-se a ideia de que os actos régios devem ser escritos para servir de exemplo a todos e não se apagarem da memória dos homens. O mesmo autor continua: Pressupõe-se ainda com mais força a concepção de que os reis devem agir de maneira a não serem, mais, esquecidos, para se tornarem como que o modelo e a referência de todos.”67

66Marcelino Pereira, “O Latim da Chancelaria de D.Sancho I”, Separata da Revista Portuguesa de

História, Tomo XIV, Coimbra, 1975,p.411.

67 José Mattoso, Identificação de um País, Ensaio sobre as Origens de Portugal, 1096-1325,II-

A escrita, “...essa importante tecnologia do intelecto e da tradição...”68 acompanhará assim o processo de abstracção e de racionalização das concepções de poder régio. Nas mãos de hábeis Chanceleres e notários, a escrita tornou-se uma forma de recomendar as acções do rei, não como simples orientação ética, mas como lei, a lei escrita que

inspirava o rei a controlar a posse das terras e outros privilégios do clero e da nobreza. A escrita foi assim utilizada para transmitir a superioridade do rei na sociedade

medieval, permitindo associar a relevância das suas acções à sua necessária pervivência através do tempo e assinalar que uma das principais prerrogativas da soberania régia era a obrigatoriedade da lei escrita.

A escrita dos documentos régios revela também elementos que se associavam à imagem soberana dos reis. A palavra escrita ajudava a exprimir os poderes carismáticos da realeza, poderes próprios de um chefe, como escreveu José Mattoso: “O rei é o chefe por excelência. Recebe da sua linhagem marcada pelo selo divino, virtudes especiais que tem obrigação de cultivar. A distinção entre ele e os nobres reside sobretudo aí.”69

O carisma era transmitido pelos antepassados de estirpe régia e exprimia-se em virtudes que eram evocadas por rituais, por símbolos associados à realeza, por acções sempre recomendadas, transformadas em lei e próprias da soberania régia. O nome do rei transportava esse carisma e expressava outras dignidades régias que concorriam para a definição do conceito de realeza na Idade Média.

68 Jack Goody, A lógica da escrita e a organização da sociedade, 1987, Lisboa, p.188. 69José Mattoso, Ibidem, p.79.

CAPÍTULO 3