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4.6– AS INTITULAÇÕES DE AFONSO HENRIQUES E OS PRIMEIROS TEMPOS DE FORMAÇÃO DA REALEZA MEDIEVAL, EM PORTUGAL

Carl Erdmann206, em 1935, retraçava com clareza os caminhos do trilho difícil que o reino de Portugal atravessava, com vista ao reconhecimento, por parte do Papado, do novo reino cristão liderado por Afonso Henriques . Num processo complexo, pleno de vicissitudes, ao qual não são alheios os processos de reorganização das dioceses localizadas, então no recém-formado reino de Portugal, com todas as subtilezas,

205 DMP, 355, p. 479.

próprias de uma luta entre vários poderes, destaca-se uma figura especial, especial pela determinação e inteligência com que lutou pelo reconhecimento papal do reino

português. Falamos de João Peculiar, bispo do Porto e arcebispo de Braga, que partilhou com Afonso Henriques a fundação do Mosteiro de Santa Cruz, embora oficialmente a criação dessa instituição religiosa seja atribuída ao arcediago D.Telo. João Peculiar foi sem dúvida um dos braços direitos de Afonso Henriques e a ele se atribui, embora sem ser possível comprová-lo, a coroação do novo rei e, acima de tudo, a luta pelo

reconhecimento papal do reino de Portugal, razão pela qual se deslocou várias vezes à Santa Sé. Numa dessas viagens teria concretizado a ideia de colocar sob a esfera do poder papal, o mosteiro de Santa Cruz, iniciando, deste modo a nova organização conventual do reino português.

A grande autoridade que alcançou, afirma ainda Erdmann, “...punha-a sempre ao serviço da sua pátria e do seu Príncipe.”207 Peculiar já não vivia, quando a Bula Manifestis Probatum de Alexandre III, em 1179, reconhecia finalmente os direitos de Afonso Henriques sobre o reino que fundara, mas o seu nome e a sua obra estão profundamente ligadas à criação e, sobretudo, à consolidação da independência portuguesa, relativamente ao reino de Leão.

Mas que relações podem existir entre este homem, membro do alto-clero com reconhecida autoridade eclesiástica, e a diplomática da chancelaria régia e , mais concretamente as, intitulações de Afonso Henriques nela utilizadas?

Acima de tudo a presença de João Peculiar afirma a existência de figuras que agiram como conselheiros de Afonso Henriques, situando-se na sua esfera de influência, e que, habilmente, contribuiram para consolidar a posição política do primeiro rei, posição muitas vezes fragilizada pelo constante clima de guerra e pela ameaça constante do reino de Leão e Castela. Anónimos ou não, mais ou menos empenhados do que João Peculiar, era possível que Afonso Henriques contasse com outros colaboradores e auxiliares no processo da sua afirmação política, como fora Ermígio Moniz na sua juventude ou era Fernão Peres Cativo, o seu alferes-mor a partir de 1130208. Pouco mais se sabe, a não ser que, entre os oficiais da cúria régia, a figura do chanceler vai

207 Ibidem, p.40.

assumindo um papel fundamental. Os chanceleres de Afonso Henriques eram todos membros do clero, à excepção de Julião Pais, oriundos de centros culturais como Braga e Coimbra, círculos de erudição bem conhecidos de João Peculiar.Contribuiram, através da organização da chancelaria régia e do controlo da produção documental, para

consolidar a imagem do rei, recorrendo a diversos mecanismos.

Os documentos da chancelaria régia podem assim testemunhar esse processo de construção da imagem da realeza, imagem que contribuiu decerto para consolidar a autoridade régia. A estabilização das fórmulas e dos elementos de validação tornaram gradualmente o diploma régio exclusivo da vontade do rei, revelando características únicas na forma de validar e na apresentação e composição dos seus elementos constituintes . Todos esses elementos revelaram a tendência para ser produzidos de acordo com uma construção política da imagem da realeza, realeza para a qual a afirmação da sua autoridade emergia, num contexto caracterizado pela fragmentação e privatização dos poderes.

O reinado de Afonso Henriques corresponde aos primeiros tempos do reino de Portugal. A sua chancelaria, incipiente talvez nos primeiros anos, teria dificuldade em organizar- se, perante o clima de guerra permanente. Mas detectam-se evoluções e a análise das intitulações régias contribuem para detectar esses processos que, embora subtis e aparentemente insignificantes, são reveladores de intenções políticas.

Se, nas primeiras décadas de governação, o chanceler Pedro Roxo, com ligações evidentes às tradições da chancelaria condal, recorria nas mesmas fórmulas, muitas vezes imitadas da produção documental leonesa, apresentando amplas variações nos termos e formulários utilizados, incluindo elementos que, mais tarde seriam

abandonados, como é o caso dos qualificativos e da referência ao ascendente, não deixava, no entanto, de referir o domínio, o território onde o rei exercia o seu poder, nem deixava de sublinhar a autoridade política de Afonso Henriques, nomeando-o de princeps, ou de realçar a sua estirpe régia através da menção de infans.

Mestre Alberto testemunha, por sua vez, um período em que a chancelaria régia é mais organizada, pese embora o facto da sua presença estar assinalada num período de grande instabilidade de fronteiras, com a guerra santa a dificultar momentos de paz, necessários

à organização do scriptorium régio.Mas é sob a égide deste chanceler que se uniformiza a fórmula-tipo de intitulação régia mais frequente na chancelaria do primeiro rei: Ego Alfonsus Portugalensium rex. Mestre Alberto abandonava decididamente os

qualificativos, mas ainda incluía com alguma frequência a referência aos antecessores régios, sendo evidente, no entanto, a sua preferência em denominar Afonso VI como rei e não como imperador, enquanto que, anos antes, Pedro Roxo nomeava o avô do

primeiro rei como imperador.

Pedro Feijão, por sua vez, introduzia uma inovação que seria adoptada com muita frequência, nos reinados posteriores. Trata-se da inclusão da fórmula devocional, na forma Gratia Dei na intitulação régia. Elemento de destaque nas concepções medievais da realeza e sinal de reconhecimento de um vassalo de Roma, Gratia Dei, seria uma das expressões que mais duraria na diplomática régia portuguesa.

Julião Pais com poucos documentos atribuídos, neste período, adoptava assim, tal como Pedro Feijão, uma nova fórmula de intitulação régia: Ego Alfonsus gratia dei

Portugalensium rex.

Os tempos tinham mudado. A presença de Pedro Feijão na chancelaria régia dá-se depois do episódio trágico de Badajoz. O rei doente e envelhecido, humilhado pela derrota e pelas masmorras de Fernando II, mudou-se para Lafões e depois para

Coimbra. Auxiliado na governação, pelo seu filho, Sancho, herdeiro do trono do reino de Portugal, não deixou, no entanto, de exercer a sua autoridade. Deste período datam alguns dos mais importantes documentos régios de Afonso Henriques, como os forais de Lisboa e de Santarém. A influência de Coimbra e da sua elite eclesiástica, culta e esclarecida, contribuiram decerto para a qualificação e para uma maior eficiência da chancelaria régia209.

Parece insignificante a evolução da intitulação régia na chancelaria de Afonso Henriques, mas com efeito não o é. Em 1179, seis anos antes da morte do rei, a Bula Manifestis Probatum reconhecia o rei, elogiando o seu intenso labor na conquista cristã de terras aos Mouros. Nesse documento, Afonso Henriques era descrito, citando José

209 Saul António Gomes, In limine conscriptionis : documentos, chancelaria e cultura no Mosteiro de

Mattoso210, “...como o intrépido adversário e propagador amigo da fé cristã, o bom filho e príncipe católico, um nome digno de memória, um exemplo digno de ser imitado pelos vindouros.” Nada que os seus diplomas, através dos chanceleres e escribas da sua chancelaria, não tivessem já afirmado, ao longo do seu reinado.

CAPÍTULO 5

AS INTITULAÇÕES DA CHANCELARIA DE

D.

SANCHO

I