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A partir das premissas teórico-metodológicas apresentadas neste capítulo, surge uma questão determinante para o presente trabalho: existe um “jeito Guel Arraes” de fazer televisão? E, em caso positivo, seria esta uma produção somente possível em um tempo e um

 

espaço? É possível identificar, na escrita dos roteiros do NGA, as características do tempo e da cultura que a constituem?

Os Estudos Culturais defendem que nos definimos através de processos de representação e de identificação e, como afirma Hall (1997, p. 40) “toda a prática social tem o seu caráter discursivo”. A partir disso – e do conjunto de leituras apresentados até aqui −, levantamos a hipótese de que o NGA (através não só de seus roteiros, mas talvez “a partir” deles) consolida-se como um espaço que contempla características que, para Grimson (2011), estariam na base dos Estudos Culturais: as relações da cultura com a hegemonia, a legitimidade de “objetos menores” na pesquisa e a transdisciplinaridade como horizonte.

Num primeiro momento foram assistidos na íntegra 16 dos 21 episódios que formam a série ACVP14. Vários deles mais de uma vez. À leitura de bibliografia nos temas: humor, comédia, roteiro, diálogos, antropologia brasileira, análise fílmica e estudos culturais; foi somada uma entrevista com Guel Arraes e o acesso a alguns roteiros “impressos” da série, pertencentes ao acervo da Casa de Cinema de Porto Alegre. Estes roteiros impressos, no entanto, eram versões iniciais e embrionárias dos programas que foram de fato ao ar e, portanto, mostraram-se não tão eficientes para nossa pesquisa que se baseia nas palavras de fato “ditas” pelos personagens em cena15. Vale observar, no entanto, que diversas cenas estão exatamente iguais tanto no roteiro impresso quanto no episódio exibido, o que nos serviu para analisar o quanto de improviso há ou não entre o que se escreve e o que se filma no NGA.

A partir das leituras foi criada uma lista de categorias relativas a elementos de comicidade que podem ou não estar presentes em um roteiro de comédia: repetição, inversão, quiprocó, inteligência>(maior que) emoção, drama na comédia, dimensão ética e agenda dos personages. Estas categorias serviram para guiar nosso novo olhar sobre os episódios, selecionando, a partir daí, 26 trechos de 12 episódios da série, a saber: “Pais e Filhos” (1995), “Casados e Solteiros” (1995), “Apenas Bons Amigos” (1995), “Sexo na Cabeça” (1995), “Mãe é Mãe” (1995), “Menino ou Menina” (1995), “O Pesadelo da Casa Própria” (1995), “A Próxima Atração” (1996), “O Grande Amor da Minha Vida” (1996), O Mistério da Vida Alheia” (1996), “As Idades do Amor” (1996), e “Drama” (1996)16.

Um dos critérios de seleção destes trechos foi a percepção, de nossa parte, de que – além de possuírem algumas das características indicadas pelas categorias previamente       

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Os episódios estão disponíveis on-line na internet. Os links para cada um deles estão nos apêndices desta pesquisa. Apenas o episódio “Pais e Filhos” não pôde ser assistido na íntegra por não estar disponível inteiro na internet, sendo possível apenas assistir seu primeiro bloco, com cerca de 20 minutos.

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Uma das versões impressas, no entanto, foi citada no capítulo 3 para ilustrar uma das fases da escrita do roteiro (a chamada “escaleta”).

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selecionadas – eles também dialogavam com a camada “cultural” de nosso olhar sobre eles. Ou seja, os 26 trechos escolhidos poderiam instigar uma análise que levasse em conta aspectos formais e de conteúdo, integradamente. A escolha por assistir a apenas 16 dos 21 episódios da série foi ter deixado de fora os episódios que não têm Guel Arraes como autor e/ou diretor (ainda que nestes seis episódios não assistidos ele seja creditado como diretor geral do Núcleo).

No que diz respeito à aproximação metodológica ao nosso objeto de pesquisa, portanto, esta pesquisa entende que, de maneira simultânea e complementar, pode ser possível analisar os diálogos de um roteiro de comédia levando em conta elementos tanto mais próximos do estruturalismo quanto de contexto cultural. Entendendo que a cultura “diz respeito a um lugar a partir do qual posicionar-se para pensar a sociedade” (ESCOSTEGUY, 2011, p. 15), esta pesquisa tenta aliar ferramentas metodológicas tanto do campo da Análise Fílmica quanto dos Estudos Culturais, problematizando assim esta complexa relação e, a nosso ver, ampliando a discussão sobre o tema proposto.

A seguir passaremos a um capítulo dedicado a apresentação de alguns conceitos que perpassam toda a presente pesquisa: narrativa, humor e comédia, televisão, roteiro e diálogos. Não é nossa intenção esgotar os temas citados, pelo contrário, a ideia é perceber a complexidade com que eles devem ser observados.

 

3 NARRATIVA, HUMOR, TELEVISÃO, ROTEIRO E DIÁLOGOS

Neste capítulo apresentaremos alguns conceitos que cercam e constituem nosso objeto de pesquisa: narrativa, humor, comédia, roteiro e diálogos. Para cada um deles tentaremos traçar um breve histórico, bem como apresentar suas principais características a partir da leitura de diversos autores sobre os temas. De acordo com a metodologia de pesquisa apresentada no capítulo anterior, estabeleceremos contornos amplos ao redor do objeto de pesquisa, para mais tarde tentar compreendê-lo dentro de sua formação histórica e social.

Com relação à narrativa, a ideia é conhecer suas origens na humanidade e aprofundar sua consolidação através do surgimento da dramaturgia no mundo ocidental. Também o surgimento dos enredos cômicos no teatro grego e brasileiro parece importante na construção de uma base para nosso conhecimento a respeito da comédia televisual brasileira do final do século XX, da qual tratamos nesta pesquisa.

Ao tratar de narrativas cômicas, é imprescindível conhecer as origens dos termos “humor” e “comédia” e, neste ponto, nos apoiamos de forma consistente na leitura de Henri Bergson, em seu consagrado livro “O Riso” (2001). Outros autores foram trazidos para complementar e apresentar diferentes visões do tema. Salientamos, em seguida, a importância do estudo da televisão, muitas vezes renegado a um espaço “menor” dentro da pesquisa acadêmica. Para complementar este capítulo, trabalhamos com algumas noções de roteiro audiovisual e de diálogos para roteiro, a partir de cursos realizados pela autora, mas principalmente a partir de literatura a respeito dos temas.

A ideia é, portanto, estabelecer um apanhado amplo − porém sabidamente sempre incompleto −, do que se pesquisa em torno dos principais temas apresentados no presente trabalho. Acreditamos ser essencial para a construção de uma análise sobre os diálogos da série ACVP, o conhecimento de sua formação histórica como gênero narrativo de comédia e do diálogo em si como elemento que compõe a cena de um roteiro audiovisual.