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3.4 Roteiro e diálogos

3.4.1 O diálogo cômico

É no capítulo 10 do livro de Rib Davis (2008) que encontramos destaque para o diálogo cômico, e o primeiro questionamento do autor demonstra o quanto um “manual” difere de uma pesquisa científica, ou de uma análise que busque se aprofundar para além do dia-a-dia de um roteirista. O autor pergunta: como a comédia funciona? Por que rimos? E responde:

Felizmente aqui nós não precisamos chegar a estas respostas. Assim como você não precisa entender de eletricidade para acender a luz, é possível escrever diálogos

       

de apresentação, mas, no essencial, a televisão continua oral, como nos primórdios de sua história, e a parte mais expressiva de sua programação segue dependendo basicamente de uma maior ou menor eloquência no manejo da palavra oralizada, seja da parte de um apresentador, de um debatedor, de um entrevistado, ou de qualquer outro” (MACHADO, 2003, p. 71, grifo do autor).

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Anotações pessoais a partir de curso de roteiro ministrado por Jorge Furtado. Curso realizado de 21 a 30 de maio de 2012, em Porto Alegre. Total de 15 horas/aula. Promovido por Casa de Cinema de Porto Alegre. Porto Alegre, RS.

 

cômicos sem saber todas as teorias de como funciona o humor. O que você precisa, sim, saber é onde encontrar as chaves para “acendê-lo” (DAVIS, 2008, p. 163, grifo do autor, tradução nossa).

É claro que também em nossa pesquisa não encontraremos todas as respostas para estes questionamentos, mas a ideia de misturar reflexão com prática nos parece ainda mais pertinente quando vemos o oposto disso, a segregação entre academia e mercado, nas páginas de livros como este. É entendendo que a busca pelas “chaves” será mais interessante justamente com o aprofundamento do olhar sobre elas, que o livro de Davis (2008) nos provoca e impulsiona. Apontaremos aqui as proposições de Davis (2008) sobre o tema do diálogo cômico, que muito colaboram em nossa reflexão. Para começar, ele lembra que é preciso distinguir “comédia” de “diálogo cômico” e que muitas das grandes comédias encenadas na história foram feitas sem uma linha sequer de diálogo, como as de Buster Keaton, ou Charles Chaplin. Além disso, mesmo com a presença dos diálogos, não é ela que sozinha confere o tom de comédia a um roteiro:

Algumas vezes o diálogo funciona virtualmente sozinho, mas, muito mais comumente, ele é apenas efetivo através da maneira com que a linguagem reflete o personagem, ou como ela tem um efeito sobre a trama, ou interage com outros elementos – visuais, musicais, ou outros. [...] O contexto em que os diálogos são apresentados é crucial. Além disso, o diálogo cômico não é uma sucessão de piadas: de fato, a exata mesma fala em dois diferentes roteiros pode ser engraçada em um e séria no outro (DAVIS, 2008, p. 162-163, tradução nossa).

A fala sozinha pode, portanto, não ser uma “piada” em si, mas ela será cômica quando confirmar, por exemplo, nossa visão sobre um personagem, e isto torna o diálogo profundamente entrelaçado com o que Davis (2008) chama de caracterização cômica. Davis (2008) aponta, ainda que rapidamente, para uma característica interessante da boas comédias: tendemos a rir mais quando o personagem não está tentando ser engraçado. Este elemento parece bastante pertinente para a análise de ACVP e une-se à ideia já apresentada de Bergson (2001, p. 109) de que “toda a distração é cômica”, formando, assim, um caminho para a criação de uma de nossas categorias de análise, como veremos adiante. Para finalizar, Davis (2008) retoma uma de suas principais afirmações: o diálogo deve estar a serviço da trama e da caracterização e não pode ter a responsabilidade de fazer todo o “trabalho pesado”; e é realmente o contexto que se torna crucial para que o humor possa emergir. Davis (2008) está se referindo aqui aos elementos intra-roteiro como “contexto” e decidimos, nesta pesquisa, ampliar este contexto para o que se observa “extra-roteiro” e que nos parece contribuir na construção do cômico em ACVP.

 

É na tentativa de compreender melhor estes elementos que, antes de entrar na análise dos trechos de diálogo selecionados, convidamos o leitor a percorrer conosco o circuito inspirado por Johnson, aplicado ao objeto ACVP, fazendo uma trajetória que contempla as culturas vividas, o produtor e o texto, sempre levando em conta o público, que permeia todos os pontos do percurso.

 

4 NÚCLEO GUEL ARRAES: CULTURAS VIVIDAS, PRODUTOR E TEXTO

Este capítulo dedica-se a explorar três pontos do Circuito da Cultura de Johnson, sendo que, no que se refere ao “texto” apresentamos aqui apenas uma abordagem descritiva para que a análise em profundidade do mesmo seja feita no capítulo 5. Como “culturas vividas” entendemos que seria interessante apresentar algumas características da década em que a série ACVP foi produzida e exibida, no final do século XX, especificamente no Brasil, através da Rede Globo de Televisão. Compreendendo alguns parâmetros socioculturais brasileiros deste período, e debruçando o olhar sobre a programação televisa de então, parece possível construir uma ponte sólida que liga-se ao surgimento do NGA. Em seguida, quando referimos o “produtor”, é o momento de conhecer “quem” escreve, seja descrevendo o NGA, quanto aprofundando-se na figura do próprio coordenador, Guel Arraes, sua trajetória pessoal e escolhas profissionais. Além de Guel, parece importante referirmo-nos a outros dois colaboradores diretamente ligados à série/objeto de análise: Jorge Furtado e Luis Fernando Verissimo. É a combinação destes três “produtores” (para utilizar o termo de Johnson) que parece formar a base de construção do próximo item do circuito: o “texto”. Conforme relatado anteriormente, este subcapítulo dedicado ao texto descreve a série em linhas gerais, como uma primeira aproximação ao objeto de pesquisa que será analisado no capítulo que segue.

[...] não é possível uma história que não seja elaborada para mostrar como os processos televisivos e sociais se constituem específica e mutuamente a ponto de não existir, senão de modo simplificadamente e convencionado, televisão e sociedade como dois campos distintos. A televisão na sociedade e a sociedade na televisão não existem como meros reflexos de um no outro, mas como balizas dinâmicas, intercambiáveis, negociáveis e em disputas. É essa a dialética que não se pode perder (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 8).