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Tendo como baliza central a experiência dos sujeitos, Estudos Culturais é um campo teórico formado por um conjunto de ideias articulado a uma determinada formação (ou a uma condição histórica). Dito de outro modo, o que comumente é chamado de “contexto” não é encarado apenas como “pano de fundo” e sim como parte constituidora do objeto de estudo. A seguir passaremos a desdobrar algumas considerações apreendidas a partir de leituras que contribuíram para aproximações a tal campo teórico.

A origem formal dos Estudos Culturais se deu na Grã-Bretanha, nos anos 1960, mais especificamente a partir da criação do Centre of Contemporary Cultural Studies (CCCS), na

 

Faculdade de Língua Inglesa da Universidade de Birmingham. “As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS” (ESCOSTEGUY, 2011, p. 152).  

Os primeiros autores a se destacarem neste campo foram Richard Hoggart (fundador do CCCS) com seu livro “The Uses of Literacy”11 (1957), Raymond Williams com “Culture and Society”12 (1958) e E. P. Thompson com “The Making of the English Work Class”13 (1963). Como se pode observar, o campo dos Estudos Culturais não originou-se no estudo da Comunicação, seu primeiro foco surgiu na área da Literatura e Linguística, propondo, justamente, o “borramento de fronteiras” e a interdisciplinaridade como guia para a pesquisa dos fenômenos culturais. As três obras acima citadas têm como característica comum a proposta de considerar fenômenos culturais mais populares (ou mais “comuns” ou, ainda, “ordinários”) como dignos de atenção e pesquisa.

Estes autores, juntamente com Stuart Hall (que dirigiu o CCCS de 1968 a 1979) incentivaram o desenvolvimento da pesquisa das práticas de resistência destas “subculturas” (sem o caráter pejorativo do termo subcultura e sim no sentido da diversidade de culturas) e de análises dos meios massivos (os mass media) como importantes formadores da sociedade e de seus indivíduos. Além de ser um campo de estudos que mais aglutina do que exclui em seus princípios e conjunto de conceitos, é também na própria história de sua formação dos Estudos Culturais que se encontra também a pluralidade: autores de outras partes do mundo, na mesma época, esboçaram estudos que apontavam na mesma direção. Conforme Escosteguy (2013, p. 155),

[...] afirma-se que em outras localidades e em outros momentos podem ser identificadas “outras” origens para os Estudos Culturais. A existência de diferenças nacionais e a confluência de um conjunto particular de propostas de cunho teórico- político geraram outros exemplos de Estudos Culturais que desestabilizam a narrativa sobre uma origem centrada, sobretudo, em Birmingham, na Inglaterra (grifo do autor).

Para os Estudos Culturais a cultura está na centralidade do debate, considerando que os seres humanos são “instituidores de sentido” em todas as suas ações. Stuart Hall, um dos principais pensadores desta área, afirma que “toda a prática social tem condições culturais ou discursivas de existência” (1997, p. 34). Estudos Culturais é, portanto, um campo teórico       

11

Cf. HOGGART, R. As utilizações da cultura – Aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. Lisboa: Editora Presença, 1973. v. I e II.

12

Cf. WILLIAMS, R. Cultura e sociedade 1780-1950. São Paulo: Ed. Nacional, 1969. 13

 

formado por um conjunto de ideias articulado a uma determinada formação (ou a uma condição histórica).

A origem do termo “cultura” vem do latim colere, que significa “habitar, adorar e cultivar”. Logo passou a ser adotado também para designar o cultivo de qualidades mentais e, a partir do século XIX, o termo passa a ser usado “como a abstração de um processo, ou como o produto de um processo de desenvolvimento mental ou espiritual” (CEVASCO, 2001, p. 45).

Raymond Williams (1969), por sua vez, propõe a compreensão do processo cultural de um modo que não se “separe” o termo cultura em suas concepções “idealista” ou “marxista”. Sua proposta é por romper com a estagnação destas visões e pensar a cultura como sendo dinâmica e em constante transformação. Não só cultura como expressão do “espírito livre” do artista (concepção idealista), nem apenas como “reflexo” da base material sobre a superestrutura ideológica (concepção marxista), mas sim como processo e prática transformadora e em transformação. Segundo Hall (1997), podemos pensar o termo “cultura” também a partir do viés epistemológico, entendendo o “espaço” que ela ocupa em relação aos modelos teóricos de mundo que se apresentam a cada momento histórico.

A partir das considerações acima, e em meio a tantas reflexões que as mesmas provocaram, novas questões foram surgindo e realimentando a investigação em processo. Entre elas, destacamos: o que as transformações ocorridas no final do século XX provocaram em termos de contextos culturais? E, mais especificamente: a criação do NGA na Rede Globo de Televisão, reflete e semeia algumas destas transformações? Qual a possível contribuição dos Estudos Culturais para analisar o roteiro de um determinado programa de televisão? Nesse sentido:

[...] o autor [Raymond Williams] sugere que é preciso compreender os padrões existentes em um determinado modelo, as descontinuidades que se revelam e os modos através dos quais uma estrutura de sentimento atravessa gerações no tempo- espaço da vida social. Uma estrutura de sentimento pode ser compreendida como a cultura de um período; como o resultado de todos os elementos de uma organização geral visíveis em um modo de vida particular. Portanto, para que se possa compreender cultura, é preciso compreender também a comunicação e a

comunidade (OROFINO, 2006, p. 76, grifo do autor).

No campo das Teorias da Comunicação, por muito tempo se entendeu o processo comunicacional como “unilateral”: do Emissor ao Receptor, sem que este último fosse considerado como parte ativa do processo. A partir da metade do século XX, alguns novos parâmetros para analisar a comunicação foram propostos e, entre eles, dentro do campo dos

 

Estudos Culturais, o “Circuito Cultural de Johnson” (Figura 1) que coloca em xeque a pertinência do estudo em separado de cada parte do processo comunicativo, bem como de sua desvinculação das complexidades sociais a que ele se refere e que o constituem.

[O Circuito Cultural de Johnson permite] compreender que as relações que se estabelecem entre as partes que configuram a comunicação não são acessíveis a abordagens estreitamente definidas; indicar que os sentidos são produzidos em diversos momentos do circuito e, finalmente, preservar a dinâmica do processo comunicativo, integrando um conjunto de dimensões (ESCOSTEGUY, 2007, p. 133).

Figura 1 – Circuito da Cultura de Johnson  

Fonte: baseado em Johnson (1999, p. 35).

As quatro partes que formam o Circuito de Johnson são: a produção, o texto, a leitura e as culturas vividas. Por “Produção” (ou “Produtor”) entendem-se tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos das organizações e das pessoas que produzem o texto, não só em seus aspectos mercadológicos como também simbólicos e de biografia. O “Texto” contempla a preocupação com os mecanismos pelos quais os significados são produzidos, o tratamento das formas de modo abstrato. A “Leitura” é o espaço das práticas sociais de recepção, com o cuidado para não tender nem para a autonomia total do leitor e nem para a autoridade total do texto. As “Culturas Vividas” seriam o background tanto do leitor quanto do produtor, tentando identificar as conjunturas que os formam. Johnson chama a atenção para o significado das “setas” que apontam para os pontos 1 e 3 do circuito:

Em nossas sociedades, muitas formas de produção cultural assumem também a forma de mercadorias capitalistas. Neste caso, temos que prever condições especificamente capitalistas de produção (veja a seta apontando para o momento 1)

 

e condições especificamente capitalistas de consumo (veja seta apontando para o momento 3). Naturalmente, isto não nos diz tudo que temos que saber sobre esses momentos, que podem estar estruturados também de acordo com outros princípios, mas nesses casos o circuito é, a um só tempo, um circuito de capital (e sua reprodução ampliada) e um circuito de produção e circulação de formas subjetivas (JOHNSON, 1999, p. 35).

Neste sentido, será importante em nossa análise situar o “texto” em relação à instituição que o produz, no caso a Rede Globo de Televisão, e as condições para que ele tenha surgido e se afirmado como produto cultural. Através da práxis interdisciplinar defendida pelos Estudos Culturais, tentaremos encontrar estas relações e depreender daí novos significados para os elementos cômicos encontrados. Quanto às condições capitalistas de consumo a que aponta Johnson, a presente pesquisa apresentará um apanhado geral das condições econômico-sociais brasileiras na década de 1990, não adentrando em um estudo específico de recepção neste momento.

Entendendo que o pesquisador faz escolhas na abordagem de seu objeto, e que o circuito de Johnson é um “guia” para orientar este caminho, optamos, na presente pesquisa, por lançar nosso olhar com maior intensidade sobre três dos quatro pontos do modelo apresentado: produção, texto e culturas vividas - compreendendo que mais importante que dar conta do “todo” é entender e problematizar a relação entre as partes. Ainda que com esta ressalva, entretanto, o “espectador” será levado em conta na análise, uma vez que consideramos a “leitura” como parte essencial do próprio texto e do processo de comunicação. Nas palavras de Robert Kolker: “para um texto ser completo, ele precisa ser visto, lido, escutado por alguém” (2000, p. 10, tradução nossa). No caso de nosso objeto de pesquisa, voltado aos elementos do cômico nos diálogos de ACVP, entendemos como ainda mais importante o papel de quem assiste, já que o humor existe somente quando provoca o riso, e este riso é sempre “do outro”.

Para compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. [...] O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social (BERGSON, 2001, p. 6).