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Os Estudos sobre a Utopia como referência para os Estudos sobre a Sociedade.

3. Caminhos da Utopia

Toda metodologia de pesquisa e estudo no trabalho de pós-doutoramento teve por inspiração alguns autores fundamentais pelos quais tracei o que chamo de “caminhos da utopia” na Universidade.

A primeira inspiração está no pensamento complexo de Edgar Morin e sua ecologia da ação. Para Morin, o ensino de disciplinas separadas e sem comunicação entre si produz fragmentação e dispersão dos conhecimentos. O pensamento utópico na universidade implicaria necessariamente nessa comunicação, já que qualquer conhecimento adquirido tem como fim último a humanidade.

Para Morin não existe um ensino sobre o próprio saber, isto é, sobre os enganos, ilusões e erros que partem do próprio conhecimento. Por isso ele defende a ideia de criar cursos de conhecimento sobre o próprio conhecimento. Os estudos que propus no pós-doutorado foram de encontro a essa proposição moriniana, quer dizer, uma pesquisa sobre o imaginário utópico constituído na própria universidade. Morin entende que a condição humana não pode estar ausente do ensino. E uma das dimensões dessa condição é exatamente essa de projetar o futuro, apesar de todo o incentivo contrário a isso, impulsionado por uma lógica de mercado da sociedade de consumo que enaltece o aqui e agora.

Para Morin chegamos, finalmente, à época em que já não há “salvação” nem se compreende que a ideia de “salvação” leva-nos à perdição; que não existe “luta final” nem promessa de uma sociedade futura que possa redimir todos os males ou fazer esquecer a dor dos que aqui estão. Os estados futuros dos sistemas complexos escapam ao nosso controle e previsão. O futuro é aberto, não-inequívoco. Significa então que não há mais espaço para a utopia? Muito pelo contrário! Abdicamos da ideia do “melhor dos mundos”, mas não da ideia de um “mundo melhor”. O homem não pode viver simplesmente o presente, pois no presente estão contidos o passado e o futuro. Contudo, a vida não é possível senão voltada para o futuro e o ser humano enquanto insatisfeito com o momento presente, experimenta o futuro como ausência.

“Vivemos prosaicamente quando fazemos aquilo que somos obrigados a fazer para sobreviver. Viver verdadeiramente é viver na intensidade da paixão, do amor, do jogo, da comunidade. Acredito que é preciso substituir a ideia de desenvolvimento, que se confia ao progresso tecno-econômico para assegurar o progresso humano, pela ideia de uma política de civilização, que nos conduz a reformar nossa própria civilização e a reconsiderar os princípios que a comandam e que, na minha opinião, conduzem-nos à esclerose, à regressão, em direção à catástrofe. De resto, não se manifestam mais em nossa civilização nem a esperança nem a solidariedade. A ideia de que um outro caminho é possível

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suscitaria uma ressurreição da esperança. Não mais a antiga esperança, fundada sobre a certeza do progresso, mas uma esperança consciente da aposta que ele comporta” (MORIN, 2002, p. 178)2.

Outra grande inspiração de interesse temático parte da antropologia filosófica contida nos textos de Ernest Bloch, pensador judeu-alemão falecido em 1977, o qual afirma uma concepção do ser humano como ser de pulsões, que pressionam na direção de sua satisfação. Ele foi uma espécie de exceção na filosofia dos começos do século XX, visto que o que atraiu sua reflexão não foram os ascendentes aspectos científicos e tecnológicos, como no caso dos marxistas evolucionistas ou dos neopositivistas em geral. O que fascinou Ernst Bloch, foram os elementos imaginativos, os “sonhos diurnos” de todos nós e como eles tinham o poder de modelar o comportamento e a cultura dos seres humanos.

Perguntas que levam em conta o significado da nossa existência são constantes e sempre perturbadoras, pois muito do que fazemos e as formas como agimos passam a não ter o mínimo sentido diante dessas grandes questões. Segundo Bloch, o que realmente importa é aprender a esperar, ao invés do medo e do temer. Esperar significa um ato apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso, embora a vocação da utopia seja muito mais voltada para o fracasso e por isso não perca a sua potência. No próprio mundo pode-se encontrar uma vida melhor e que seria possível. O ato de esperar não permite a resignação. Todo ser humano tem sonhos diurnos. O grande desafio é que estes se tornem mais claros. Compreendê-los enfim, é a tarefa primordial. Pensar é transpor, afirma Bloch, e essa transposição não leva ao mero imaginado abstratamente, mas ao transpor concreto já que o futuro contém o esperado. Muito se fala sobre o declínio do Ocidente, mas existe saída para a decadência. A esperança se contrapõe ao medo nesse sentido. Para Bloch, a falta de esperança é o mais insuportável e intolerável para as necessidades humanas, e por isso ele critica tão veementemente a posição niilista.

O sonho diurno impele a sonhar para a frente, quer dizer um sonhar carregado com conteúdos de consciência e com material proto-utópico que brota do interior do futuro. São conteúdos da consciência de algo futuro/vindouro e ao mesmo tempo, momentos desencadeadores de produtividade criadora. O “sonhar para frente” ainda não foi refletido. Há sonhos que adormecem e sonhos que acordam. A esperança, segundo Bloch, não aparece na história das ciências. Por isso, ele propõe entendê-la como um princípio que faz parte do

2 Entrevista de Edgar Morin a Alexis Lacroix publicada originalmente no jornal Le Figaro, em 21 de julho

de 2002. Traduzido por Nurimar Maria Falci, revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. Publicado na Revista Margem, São Paulo, n. 16, págs. 177-182, 2002, sob o título Edgar Morin: um virtuose que se opõe a qualquer interdição intelectual.

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processo do mundo enquanto o princípio utópico vai além, porque diz respeito à dignidade humana e à defesa que a filosofia deve ter a consciência do amanhã. Para Bloch, o que é desejado utopicamente guia todos os movimentos libertários. O ser humano é visto como um ser de pulsões que busca sua satisfação, e suas carências são sintomas de suas possibilidades ainda não realizadas.

Segundo Bloch, a esperança é a mais humana de todas as emoções. Acessível apenas a seres humanos, ela remete ao horizonte mais amplo e mais claro. A partir dessa premissa, Bloch formula o conceito de sonhos diurnos que constituem uma etapa preliminar do utópico, cujo significado remete a um ainda-não-consciente. Nunca nos livramos dos desejos. A “mania de querer o melhor” continua presente no homem como motivo de despertar e de futuro. Mesmo de olhos abertos as pessoas sonham, mas isso infelizmente ainda não é muito valorizado. Os sonhos de uma vida melhor fazem parte do gigantesco campo da consciência utópica. O sonho diurno encontra-se na dimensão utópica e o interesse revolucionário é o reconhecimento de quanto o mundo poderia ser bom ou a construção de outro mundo possível.

Essa construção em termos utópicos pode ser vislumbrada com a estudiosa da utopia Lucy Sargisson3 (2000), para a qual a utopia é vista como transgressão. Ela argumenta que nos espaços utópicos não está mais presente a perfeição e um ideal, mas esses espaços remetem à constante mudança, renegociação, imperfeição, e processo. Segundo a autora, a transgressão crítica desloca o significado construído por um sistema complexo e hierárquico da oposição binária e sugere uma abordagem alternativa que valoriza a diferença e multiplicidade.

A transgressão oferece novos espaços conceituais para reabordagem do mundo de uma maneira não-dualista que escapa ao impulso pelo desejo de possuir. Transgressão, então, é um fenômeno que pode ser descoberto em uma variedade de teorias. Não deve ser entendida como a dissolução da ordem binária para produzir uma unidade permanente; em vez disso, transgressão contesta as noções de ambiguidades e autenticidade. A transgressão ocorre como hibridismo, como transculturação.

Utopia aqui não se refere apenas a uma visão de uma sociedade futura, mas a uma capacidade, talvez disposição, para usar conceitos amplos, de ver a realidade e suas

3 É professora e pesquisadora em Estudos sobre a Utopia na Escola de Política e Relações Internacionais

da Universidade de Notthingan. Ela é uma grande defensora do estudo da utopia nas ciências sociais. Seus trabalhos e pesquisas incluem as eutopias (visões de uma boa sociedade) e distopias (cenários de pesadelo sobre o futuro) além de explorações imaginárias sobre o utopismo. Sua pesquisa incluiu publicações sobre o fundamentalismo religioso, estilos de vida alternativos, comunidades intencionais e feminista e teorias ambientalistas. Por utopismo, Lucy Sargisson utiliza o utopismo como um termo amplo e abrangente no qual se refere a uma forma de abordar o mundo e as formas de representear o que se percebe do mundo.

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possibilidades. Utopia não como atemporalidade, mas como oportunidade para fornecer alternativas e possibilidades com o intuito de fazer refletir sobre o atual “aqui e agora”. A função das utopias é servir como espelhos que refletem os problemas da sociedade e provocam a reflexão política e reavaliação nas transformações sociais.

Outra fonte de inspiração está na definição de utopia de Ruth Levitas4 (1991), como o desejo de uma melhor maneira de ser. Assim, utopia torna-se um gesto, um sentimento ou uma motivação. A utopia acaba por fazer parte de um processo sob o qual precisamos aprender a desejar. A utopia, por outro lado, é precisamente sobre o que deveria ser. Seu esforço é em tentar demonstrar a relação profunda entre sociologia e utopia em termos de método.

Também é impossível não destacar a obra do cientista social português Boaventura de Sousa Santos como um dos maiores defensores do uso da utopia como proposta de combate a ordem das coisas a partir das Ciências Sociais. Diante do agravamento dos problemas ambientais, sociais e até mesmo éticos dos últimos tempos, Sousa Santos propõe a formulação de uma utopia para enfrentá-los. O paradigma no qual estamos imersos nos impede de pensar o futuro, daí a utopia não como uma solução mágica, mas como uma ruptura epistemológica.

A utopia para Sousa Santos é a abertura para a exploração de novas necessidades e vontades humanas, uma chamada de atenção para o que não existe ainda. Um dos caminhos para possibilitar esta utopia é justamente a instauração de uma nova epistemologia. Essa é, para Sousa Santos, caracterizada a partir de quatro teses: todo conhecimento científico é conhecimento da sociedade e vice-versa; todo conhecimento é simultaneamente local e total; todo conhecimento é autoconhecimento; e todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. Assim, outras vozes e outros saberes são chamados a participar da constituição de um novo paradigma que tenha a utopia no horizonte.

São atributos desse novo paradigma por vir: uma nova relação entre a ciência e a arte; a reabilitação dos sentimentos e das paixões como forças mobilizadoras da transformação social; a aspiração a um conhecimento complexo, permeável a outros conhecimentos; a

4 Ruth Levitas é hoje um nome de referência no campo dos Estudos da Utopia. Doutorada pela

Universidade de Sheffield e Professora de Sociologia na Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha, Ruth Levitas tem dedicado a sua investigação a duas grandes áreas: a da teoria, definição e história do utopismo (com particular atenção à obra de William Morris), e a do pensamento político e social contemporâneo, centrando-se sobretudo nas implicações políticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão social. É autora de livros que se tornaram já uma referência para estas áreas de estudo, como The Concept of Utopia (1990) ou The Inclusive Society? Social Exclusion and New Labour (1998). Segundo Levitas (1990), a essência da utopia consiste na busca constante da felicidade, sendo a harmonia uma de suas pedras basilares.

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ampliação da racionalidade cognitivo-instrumental em direção a uma racionalidade mais ampla; e, por fim, uma redefinição da democracia.

Podemos concluir a partir daí a emergência da constituição de uma consciência utópica que dialogue com a já tradicional defesa da consciência crítica.

“A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente relativa. Por um lado, é chamada a atenção para o que não existe como (contra) parte integrante, mas silenciada, do que existe. Pertence à época pelo modo como se aparta dela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente utópica, ne medida em que a imaginação do novo é composta em parte por novas combinações e novas escalas do que existe. Uma compreensão profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação não colida com o seu realismo” (SANTOS, 2000, p. 323).

De maneira complementar, destaco também a concepção de universidade do antropólogo Darcy Ribeiro (1975), para o qual o pensamento da universidade fundamenta-se na mentalidade utópica. O signo da utopia, segundo Ribeiro é condição indispensável para alcance da realidade e essa realização se dá na construção do debate crítico, no confronto com os fatos e a história e na mudança da realidade social.

Em suma, esse é o cenário proposto para a construção de um caminho epistemológico na Universidade que tenha no seu horizonte o pensamento utópico. Como se pode observar, isso requer sem dúvida exercícios de transversalidade, transdisciplinaridade e uma inserção muito maior no paradigma da complexidade5.