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A manufactura da camisola poveira terá começado na primeira metade do século XIX, altura para a qual remontam os seus primeiros registo. Inicialmente, era tricotada em Azurara e Vila do Conde e apenas bordada na Póvoa de Varzim pelos pescadores mais velhos. Gradualmente, passou a ser bordada pelas mulheres das famílias dos pescadores da Póvoa de Varzim, e finalmente completamente concebida por elas na mesma cidade:

Quem começou a bordá-las a ponto de cruz? Possivelmente, segundo Santos Graça, os velhos “Lobos do Mar”, que também marcavam outras peças de vestuário, não com ponto de cruz, mas com outro que visualmente se confunde com ele (…).

«Posteriormente, foram as mulheres que, à compita, e com os seus conhecimentos de crochet, a que chamavam renda, e de marcar (fazer letras em ponto de cruz) começaram a dedicar-se a bordá-las, aparecendo, então, desenhos muito belos, bordados, que hoje não são repetidos (Costa 1987) .»

Hipoteticamente, as esposas dos pescadores tricotavam e decoravam com bordados as camisolas destinadas ao seu respectivo, que serviam posteriormente de elemento de distinção dos outros pescadores aquando da saída do mar. Além disso, sugere-se que os pontos das malhas seriam únicos, cada um correspondendo a uma família. O uso da vestimenta era reservado aos homens. Originalmente, os motivos bordados seriam puramente figurativos, devido ao comum analfabetismo entre as famílias de pescadores. Quanto à combinação única de cores, sugere-se que uma das influências terá sido o fato usado pelos "homens de respeito" (outros juízes populares), de fazenda branca de lã, bordado a vermelho, que posteriormente contagiaria a formatação do traje.

A 27 de Fevereiro de 1892 ocorre um trágico naufrágio, no qual falecem cerca de 120 pescadores (não só oriundos da Póvoa de Varzim, mas também de Caxinas e Vila do Conde), devido a um temporal inesperado. Consequentemente, foi instaurado um luto popular, que decretava a abolição de qualquer vestuário garrido, tal como o traje festivo branco da Póvoa de Varzim, no qual se inseria a

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camisola poveira. Esta foi então dada como extinta até 1936, ano em que o etnógrafo Santos Graça provou o seu remoto uso e promoveu o seu regresso, com a criação do Grupo Folclórico Poveiro. Numa transcrição de uma carta de Santos Graça estão patentes os motivos pelos quais optou pelo traje branco festivo: este era o mais típico da Póvoa de Varzim, em parte pela cor invulgar.

Na organização do Grupo Folclórico Poveiro procurei, entre os trajes anteriores ao dia da desgraça em 1892 (…) lembrei-me então da linda camisola poveira, branca bordada a duas cores, preto e vermelho (…). Fui feliz nessa escolha (…). Hoje vendem-se aos milhares de camisolas poveiras e as nossas bordadeiras não têm podido atender as encomendas que lhes fazem (Santos Graça 1956).

A vestimenta adquiriu destaque e divulgação ao ser envergada pelos participantes do Grupo Folclórico Poveiro, sendo a camisola a peça de maior relevância. A autenticidade da mesma foi posta em questão (nomeada e principalmente no jornal Primeiro de Janeiro), devido à sua beleza e singularidade, mas sugere-se que Santos Graça conseguira de facto comprovar o seu percurso histórico e prévia utilização.

Foi dada particular relevância e divulgação às experiências quotidianas da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim com a estreia do filme Ala-Arriba!, em 1942. Realizado por José Leitão de Barros e de argumento assinado por Alfredo Cortez, constitui um misto de ficção e documentário. Terá sido financiado pelo Secretariado da Propaganda Nacional, pelo Comissariado do Desemprego e pelo Ministério das Obras Públicas. Ala-arriba! demonstra um comum espírito de iniciativa de exibição, fomentação e orgulho das práticas tradicionais caracteristicamente portuguesas no período do Estado Novo em Portugal.

Seguiu-se nas décadas de meados de século XX uma grande procura e consequente fabrico da camisola poveira, resultando num elevado número de vendas e exportações, principalmente nas décadas de 60 e 70. No entanto, nas décadas seguintes verifica-se o declínio das mesmas, estando agora a sua venda praticamente reservada a círculos turísticos.

Semelhanças horizontais

Costuma-se dizer: «onde há redes, há rendas»(Deolinda Carneiro 2009).

Inevitavelmente, surgem semelhanças entre a camisola poveira e outros adereços de vestuários de diversos contextos locais tradicionais. Por exemplo, tomando somente a camisola sem os bordados, assemelha-se muito à camisola tradicional da característica das ilhas Aran, na costa Oeste da Irlanda, principalmente pela complexidade das malhas e pela origem em comunidades piscatórias. A mesma

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encerra ainda uma função de identificação, pois cada combinação de pontos de malhas corresponde a um clã.

Entre os vários trajes do litoral português verifica-se que existem muitas semelhanças entre a sua totalidade, nomeadamente pelo uso de lã lisa e da cobertura da cabeça (como é o caso do traje da Nazaré). Talvez se possam descrever como semelhanças inevitáveis, pois acabam por servir propósitos funcionais muito próximos entre as localidades, dada a actividade piscatória, o clima e as condições ambientais. Por exemplo, o uso da lã justifica-se pela sua capacidade de manter o calor corporal, mesmo quando molhada, explicando a recorrência do material em zonas litorais. Numa relação menos complexa do que a afinação funcional conjunta, a proximidade geográfica poderá ter sido determinante para as semelhanças entre as comunidades piscatórias.

Material e tecnologia

Inicialmente, a camisola era tricotada à mão, uma tarefa algo morosa. Ainda que actualmente poucas pessoas dêem continuidade à actividade, na sua maioria as camisolas são tricotadas à máquina. A exclusividade da lã no têxtil não tem sido seguida à risca, especialmente no que respeita a algumas exportações. Enquanto que as camisolas destinadas a países escandinavos mantêm a lã grossa na sua constituição, as que são requeridas para a zona mediterrânica (ou por pedido particular) são elaboradas numa lã mais fina. Além disso, parte das camisolas manufacturadas dividem o material entre a lã e o acrílico, provavelmente não só pelo factor térmico mas também pelo preço de fabrico (e consequentemente de venda) mais baixo. É ainda pertinente referir que as camisolas usadas pelos integrantes do rancho poveiro são elaboradas em lã sintética, de modo a tornar a vestimenta mais leve e facilitar a dança.

Formação

A Câmara Municipal da Póvoa de Varzim tem organizado formações de longo prazo para transmitir a técnica da manufactura das camisolas poveiras, principalmente com o objectivo de reinserção profissional e atenuar nível o desemprego pela fomentação de negócios próprios. No entanto, dado que é uma iniciativa remunerada ao longo da sua duração, frequentemente a actividade não é prosseguida no fim da formação, o que questiona a própria eficácia da mesma no que toca à transmissão técnica. Apenas um quarto das mulheres que frequentaram o curso prosseguiram com a actividade.