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3. GLOBALIZAÇÃO, COMPRESSÃO, IMAGINAÇÃO

4.3 Museu e o imaterial

Referi de que modo o património, e consequente e crescente imaterialidade, participa na actividade do museu. A sua propriedade imaterial proporciona oportunidades, assim como desafios, quanto à sua aplicação museográfica; apesar do museu tratar normalmente daquilo que é material, principalmente nas funções de conservação e catalogação, os significados do que é exposto correspondem ao imaterial. Apresento aqui um exemplo concreto de uma transmissão de significado desligado da categoria material.

Ao visitar o London Museu em Março de 2009, deparei com uma pequena instalação com o objectivo de descrever o período da dizimação da Peste Negra em Londres, no século XIV. É constituído por uma cabina cilíndrica, com uma única entrada; não tem mais do que três metros quadrados, estando a parede interior pintada de preto. Nesta são projectados dois “filmes” simultâneos e adjacentes, acompanhados por conteúdos auditivos. As projecções variam entre a lenta passagem de uma lista de indivíduos tomados

pela Peste Negra (e mortos), ilustrações da época relativas à doença (particularmente sinistras e lúgubres) e infografias animadas sobre o alastrar da Peste negra pela Europa e chegada a Londres, entre outros. Na vertente sonora, ora se ouve uma lenta e sussurrada leitura de listas, ora breves descrições da doença, estatísticas de mortes consequentes da doença, frequentemente ambas as vozes simultaneamente.

A Peste Negra marcou o percurso histórico da cidade, à semelhança do resto da Europa. Apesar do carácter mórbido do contágio e morte, a sua importância como participante de um passado sobrepõe- se. No entanto, não existem “referentes reais” da Peste Negra. Ela não pode ser recolhida e suspensa numa parede; se pudesse, um contentor laboratorial que mostrasse a doença na sua dimensão biológica ia ser dissociada da tragédia que causou em Londres. A “exposição” da Peste Negra, com valor crítico e emocional embutido (“a Peste Negra matou muita gente e não tinha cura, dizimando grande parte dos habitantes de Londres”), recorreu a métodos museográficos associados ao segundo paradigma do museu. Envolve o visitante, angustia-o, convida-o a viver essa cicatriz da cidade. O Figuras 2a e 2b: Projecções da instalação sobre a Peste Negra no Museu de Londres.

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efeito que causa no visitante é o complemento da exposição, evidenciando a necessidade do museu do contacto para que a transmissão dos conteúdos seja eficaz (ou seja, perceber a tragédia da doença e reter ainda alguns dados relativos à mesma).

A instalação relativa à Peste Negra consegue traduzir o conceito imaterial, ou seja, não a bactéria, não o cadáver, nas sim o “trágico” da doença, através da experiência e da sinestesia (remeto aqui para um dos conselhos de David Dean quanto a aplicações museográficas, o de tentar provocar vários sentidos, se possível simultaneamente, além da visão). Noto aqui a predominância do discurso sobre o objecto, sublinhando conceitos para fornecer uma determinada disposição de ideias ou de espírito. De certa forma, orienta valores e ideias críticas.

Esta disposição ou orientação do discurso (“Peste Negra é má”) requer, ao fim e ao cabo, uma predisposição crítica para transmitir. Se se decidir projectar uma exposição sobre a Primavera, nunca seria sobre a Primavera em si (como se detém uma estação sazonal na mão?), mas sim sobre as suas manifestações. Se no caso da Peste Negra é mais fácil tornar-se adepto do lado negativo (praticamente sem alternativa), pode não se passar o mesmo noutras situações. Nas manifestações da Primavera, múltiplas variações podem surgir: um calendário, nas variáveis línguas (spring, printemps), flores a desabrochar, as bonecas tradicionais Martenitsa para um búlgaro e a animadora proliferação de saias curtas para um jovem. Se estas manifestações não passam de índices, podem mesmo ser acrescentados juízos de apreciação: se determinado indivíduo aprecia particularmente a Primavera, seja pelas flores, pelo bom tempo, ou pelas saias, um outro pode encarar a Primavera como um presságio de desconforto, se sofrer de alergias ao pólen. Deste modo, os conceitos imateriais acabam por ser sujeitos a juízos, dado que não apresentam um invólucro físico e imparcial, prova da sua existência trancada. No máximo, são os seus vários contextos associados que são postos em questão. Mas a representação de algo que é físico já por si está assegurada.

Se uma língua, um evento trágico ou uma estação do ano são encarados como conteúdo imaterial, a iconografia situa-se num escalão diferente de imaterialidade. Distingue-se principalmente pela variedade de manifestações, visto que se expressa, de uma modo fixo, num suporte gráfico. No entanto, dado que aquilo que transmite se pode isolar da sua base material (o desenho dos rendilhados de bilros autonomizam-se do naperon, assim como a forma distinta de uma caldeirão de três pernas se evade deste), acaba por abrir também um campo de avaliação crítica. A iconografia (tradicional ou não) acaba por, deste modo, se estabelecer a meio caminho entre a forma inflexível e a completa sujeição a critérios críticos. Isto é devido, tal como havia afirmado Augustín Santana, a categorização ou juízo daquilo que é exposto, incluindo o património imaterial, ser grandemente determinado pelos respectivos dispositivos de exposição – abrange cenário, interacção, ou contextualização diversa.

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1. A iconografia tradicional, na sua componente imaterial (ainda que se manifeste a um nível intermédio quando se observa um maior panorama de património), necessita de dispositivos museográficos concebidos com reflexão quanto às suas propriedades; apresenta vantagens para a construção de espaços convidativos e interactivos, contribuindo para o cariz lúdico do museu;

2. A mesma iconografia requer também uma reflexão quanto à componente crítica que apresenta; esta vertente pode ou não constar de um programa museológico, mas não deixa de entregar uma grande responsabilidade nas mãos do designer quando este apoia a museografia.

Apresento aqui outros dois exemplos, onde posso verificar a aplicabilidade de conteúdos imateriais e como esta propriedade participa numa construção crítica e mesmo museográfica nas exposições. Em primeiro, quero apontar o sistema “Mobium”, criado por Jin Hyun Park; foi instaurado no decorrer da reformulação do Onyang Museum of Cultural History, na Coreia, fundado em 1978. Aplicado num espaço que exibe mais de 20.000 artefactos, colmata uma falha de reconhecimento ou contextualização dos visitantes pós-revolução económica coreana, através da componente de “story- telling” personalizada.

Mobium integrates the museum’s collections with the use of media ranging from wireless tags to object-based information panels, from site-specific information kiosks to handheld devices (PDAs), from customized print-outs to websites available from both within and away from the museum. (…) The transmedia system becomes a personalized tour guide, creating a customized museum tour based on the story the museum visitor chooses (Park 2004: 285). Consiste essencialmente num projecto centrado em interfaces; o design incide a nível estrutural, narrativo, de personalização, não incidindo sobre a disposição do próprio material (comunicando com a mesma, no entanto). Trata-se da museologia (e)levada ao imaterial através da museografia.

Contemplando individualmente cada visitante, podemos sugerir que é um sistema museográfico/lógico dirigido às massas, inserindo-se no segundo paradigma de museu. Além disso, elimina a noção estática do primeiro paradigma, ainda que a componente dinâmica e interactiva se centre no visitante e não na colecção abrangente.

O Museu de Penafiel é um perfeito exemplo do desenvolvimento do conceito de museu e da optimização da atractividade através dos meios de representação museográficos. Revela um trabalho do âmbito museográfico da autoria de Francisco Providência. Posso referir, entre outros, o modo de apresentação de vestígios arqueológicos incompletos: os mesmos foram “reconstruídos” para o seu formato integral através de uma representação complementar. Partes restantes de esculturas incompletas foram “concluídas” através do delinear adicional do contorno da sua construção original, oferecendo uma noção da escultura completa através de um método de representação especialmente

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ponderado e concebido para este caso. Um outro exemplo é o método de exposição de uma lamparina antiga. O artigo está encerrado dentro de uma vitrina, num estado de penumbra; foi adicionada à lamparina uma chama em suporte holográfico, que “arde” constantemente no seu bico, o que dá a ilusão da lamparina se encontrar “em uso”. Olhando para ambos os dispositivos museográficos, ambos foram complementados através de uma “narrativa” do seu “ser” original: no primeiro, a sua componente formal; no segundo, o seu contexto funcional.