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3. GLOBALIZAÇÃO, COMPRESSÃO, IMAGINAÇÃO

4.2 Museografia, museologia, design

4.2.3 Museu e simulação – Baudrillard

Um museu pode ser descrito como uma redoma. Pode ser visto como uma gaiola dourada, onde conteúdos extraídos do seu lar temporalmente extinto, onde/quando outrora se definiam, são dispostos como parte da ânsia de conhecimento que caracteriza o Homem. Esta perspectiva caracteriza-se eventualmente por um alto nível de artificialidade, pois remete para um tempo e localização supostamente “autênticos” que não correspondem ao da exposição. Mesmo que o próprio edifício do museu corresponda ao conteúdo a apresentar, é transportado para um patamar externo ao original – se antes não era um museu, agora é disposto como sendo.

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Este ponto de vista é abordado por Baudrillard em “Simulacra and simulation”. São introduzidas as distinções entre “simular” e “dissimular”:

To dissimulate is to pretend not to have what one has. To simulate is to feign to have what one doesn’t have. One implies a presence, the other an absence. (…) Therefore, pretending, or dissimulating, leaves the principle of reality intact: the difference is always clear, it is simply masked, whereas simulation threatens the difference between the “true” and the “false”, the “real” and the “imaginary” (Baudrillard 1997: 3).

Resumindo, se o dissimilar encontra sempre um referente claro na realidade, ainda que oculto, o simular esbate a fronteira entre o referente e o simulado. Baudrillard relaciona a simulação com o conceito de museu, afirmando que, acompanhando a etnologia, se apresenta como uma dimensão adicional da vida, abordando tudo o que pertence ao seu domínio de uma forma invisível, “…like an omnipresent fourth dimension, that of the simulacrum.” (ibid: 8). Justifica ainda a exploração do passado com a necessidade do seu armazenamento:

Our entire linear and accumulative culture collapses if we cannot stockpile the past in plain view. (…) We require a visible past, a visible continuum, a visible myth of origin, which reassures us about our end. Because finally we have never believed in them (ibid: 10).

Baudrillard explica como o que é do domínio do passado é explorado indiscriminadamente para servir uma ansiedade do presente. Remete para uma caracterização de uma civilização violenta em relação a desvendar todo e qualquer segredo. Apresenta, nomeadamente, o exemplo das múmias: argumenta que não morrem de decomposição, mas sim de uma transposição do simbólico para a ordem da ciência, da história e do museu, sentenciando todos os antecedentes para uma revitalização científica. Refere ainda, em extremo, como o artificial é visto positivamente quando “optimiza” o passado:

…Americans flatter themselves for having brought the population of Indians back to Pre- Conquest levels. (…) They even flatter themselves for doing better, for exceeding the original number. (…) … for Indian culture, like all tribal cultures, rests on the limitation of the group and the refusal of any “unlimited” increase (…). …their demographic “promotion” is just another step toward symbolic extermination (ibid: 11).”

Esta artificialidade, representativa da do museu levada ao extremo, demonstra uma morte do simbólico, na circunstância irónica do esforço para evitar uma extinção. Há uma violação inevitável, uma invasão do simbólico, derivados do desejo de escrutinar racional e avidamente “tudo” com parâmetros científicos, ou seja, o “tudo” que participa do Homem, o escavar do que é do domínio do Homem e do que é do mundo fora do Homem (biologia, zoologia, “homem” com inicial minúscula). O “fora-de-Homem” requer o tratamento científico; os dados que dele derivam transformam-se em

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informação, que constitui o seu factor de exposição; as conclusões que pela inserção no panorama complexo do funcionamento do mundo natural (fenómenos) constroem o conhecimento mais ou menos objectivo. Por outro lado, o “dentro-do-Homem”, próximo da interpretação de Baudrillard, reduz a alguns estatutos objectivos o que outrora continha (ou se regulava por) pressupostos simbólicos: o bom estado, o não-deteriorado, a reprodução favorável (os Índios), o reconstituído. Se as múmias implicam o seu próprio significado através do “estar cerrado e enterrado”, é muito difícil defini-las na sua ausência sem o seu estudo. Múmias no museu não são múmias, dado que estão no museu. Observo aqui, na perspectiva de Baudrillard, uma particularidade quanto aos exemplos que aponta: tratam-se todos de “conteúdos” palpáveis (mesmo os Índios, definidos pela cultura, estão materializados no indivíduo de determinada tribo ou raça); daí que o físico seja friamente extrapolado do seu fundo não-físico. O físico requer um cuidado de manutenção (restauro, restrição da luz e humidade e ao toque “civil”), de modo a concretizar a visão anti-segredo referida por Baudrillard, que não permite transportar o ponto de vista simbólico.

Tomo ainda outra enunciação de Baudrillard: a “morte” do que é transplantado do “dentro-do-Homem” é inevitável. O seu contexto, experiência, quotidiano, são tão irrecuperáveis quanto o tempo. A múmia deixa de ser uma múmia, assim como um ornamento de cariz religioso deixa de o ser na ausência do crente que o enverga e compreende a sua virtude de amuleto.

Em síntese, o abandonar do simbólico é inexorável e tende a ser violentamente acentuado nos conteúdos materializáveis. Talvez uma solução resida no suporte dos conteúdos: pondo de parte a sua fisicalidade, pode renascer uma narrativa, pelo menos aproximada, do seu contexto/definição. Se o conhecimento da múmia estiver presente num artigo escrito, que justifique que existe uma múmia que está cerrada e enterrada porque tem de o estar, a múmia é vista como mais próxima de si mesma (claro que esta definição depende, paradoxalmente, da sua exploração e deslocação do repouso original). Neste sentido, o museu poderá intervir nas definições e contextualizações numa “simulação aumentada” (paralela à realidade aumentada). Ao assumir-se como artificial, pode tirar partido da mesma artificialidade para alcançar o simbólico, principalmente através do imaterial. Ao abandonar as restrições de conservação e apresentação e ao focar o imaterial, abre novas narrativas que, conscientes do artificial, abordem o simbólico. Apresentar algo que não se toca, mas sim sente (ou antes, sentia-se outrora e se potencialmente sente agora em segunda mão) pode ser um processo complexo, mas é uma tentativa na direcção oposta à de morte por alienação.

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