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2 DELINEAMENTO TEORICO E CONCEITUAL DA INVESTIGAÇÃO

2.4 O CAMPESINATO NEGRO NO BRASIL

A presente subsessão objetiva disponibilizar ao leitor apontamentos de natureza sócio histórica no sentido de compreender o significado atribuído a categoria campesinato negro, enfatizando prioritariamente sua origem e utilização, ainda alvo de inúmeras controvérsias. Nesse sentido utilizaremos dos pressupostos da pesquisa bibliográfica e, subsidiariamente da pesquisa documental a partir do acervo da Fundação Palmares, no que tange a reconhecimento de comunidades negras.

No cenário brasileiro e latino americano, apontamos um conjunto de estudos, majoritariamente oriundos da história e da antropologia que se notabilizaram pela sistematização que sustenta a existência de “protocampesinato escravo”, concebido a partir de um conjunto importante de estudos que matizam e apresentam diferentes formas de produção, ainda que incipientes, dos trabalhadores escravizados no período anterior a Lei Áurea.

Destacamos aqui os estudos de Sidney Mintz e Ciro Flamarion Cardoso datados da década de 197015 que sustentam o conceito de protocampesinato

15 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Sobre los modos de producción colonias de América In:

ASSADOURIAN, C. S. et al. Modos de producción en América Latina. 3.ed. Buenos Aires: Cuadernos de Passado y Presente, 1975a, p. 135-159.

______. El modo de producción esclavista colonial en America. In: ASSADOURIAN, C. S. et al.

Modos de producción en America Latina. 3.ed. Buenos Aires: Cuadernos de Passado y Presente,

1975b, p. 214-216.

______. A brecha camponesa no sistema escravista. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura,

escravo, identificando-o como trabalhadores escravizados que executavam atividades agrícolas realizadas de forma autônoma nos sistemas de parcelas, praticadas nas horas de folga no interior das plantations.

As referidas abordagens contrapõem noção bastante consolidada e que começou, pós década de 1980 a ser contraposta por estudos fundados em fontes documentais constantes em arquivos regionais e locais, no sentido de relativizar uma perspectiva monolítica que negava a importância, quiçá a existência de atividades autônomas dos cativos no Brasil, no interior das plantations. Ciro Flamarion assevera em seus estudos da necessidade de se viabilizar, seja lá de qual modo fosse, a alimentação da escravaria, o que ocorreu em inúmeros casos responsabilizando ao próprio trabalhador escravizado pela produção de gêneros alimentícios.

Flamarion assevera que a motivação para estudos desse fenômeno decorreu da publicação de artigos de Stuart B. Schwartz, em 1977, estudos esses que apontavam a existência de documentos relacionados ao incidente ocorrido no Engenho de Santana, onde os escravos redigiram suas condições para a volta ao engenho, após as fugas em 1789-1790. Para Flamarion Cardoso: “As condições incluíam com clareza que esses escravos estavam acostumados a praticar sua própria agricultura e a vender alimentos em Salvador.” (CARDOSO,1987, p.116)

Os primeiros apontamentos sobre esse fenômeno, qual seja o protocampesinato negro, são apresentados no capítulo “A brecha camponesa no sistema escravista”, presente na obra “Agricultura, escravidão e capitalismo”, que chegou aos leitores em 1979, tem do provocado um conjunto de controvérsias bastante expressivas.

______. As concepções acerca do ‘sistema econômico mundial’ e do ‘antigo sistema colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘extração de excedente’. In: AMARAL LAPA, J. R. do (org.). Modos de

produção a realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p.109-132.

______. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Sobre essa questão achamos oportuno referir o arrazoado de Linhares e Silva,16 no sentido de que a dificuldade de tratar dessa questão, por parte dos estudiosos da questão agrária brasileira, decorre da reduzida atenção que a temática da agricultura para o auto consumo teve no período em tela, qual seja o período colonial, questão esta que se estende aos dias atuais, ainda que já tenhamos um conjunto de indicativos que permitem discutirmos a existência de um protocampesinato escravizado, o que é tratado por Cardoso como: “[...] uma das maneiras através das quais um campesinato veio a existir no Brasil desde a colônia” (CARDOSO,1987, p. 119).

A título de contraditório à postura que sustenta a existência deste protocampesinato sistematizado nos estudos de Cardoso, asseveramos um de seus mais expressivos críticos, Jacob Gorender, que em 1983, na Revista Estudos Econômicos, publicou um artigo contrapondo a sistematização de Cardoso, nos pontos que passamos a destacar. Para Gorender:

1. As características principais do modo de produção escravista colonial deixavam pouca margem para atividades relativamente autônomas dos cativos, desta forma, não poderiam mudar sua estrutura.

2. A inexistência do conceito de “brecha camponesa” capaz de explicar parte da estrutura vigente, constituindo-se um erro teórico.

3. Na visão de Jacob Gorender, sequer existia um “setor camponês distinto na plantation”. Desta forma, ao trabalhar em um lote cedido pelo proprietário o escravo estaria submetido da mesma forma ao regime da ordem escravocrata.

4. Jacob Gorender afirma que a inconsistência das questões levantadas por Cardoso se deve à falta de utilização das categorias: modo de produção e formação social. Ou seja, uma relação direta à dualidade das classes em tensão.

16 Cardoso refere-se à obra intitulada “História da agricultura brasileira”, de autoria de Maria Yedda

Não nos cabe, nesse contexto, desqualificarmos as importantes contribuições de Jacob Gorender na obra clássica o “O Escravismo colonial”17, ainda que devamos ratificar os arrazoados de Cardoso, em resposta a essas criticas para quem a existência da brecha camponesa não significou, e nem poderia, uma ameaça à ordem escravista, de tal sorte a modificar e impactar o modo de produção escravocrata. Flamarion Cardoso enfatiza que a ideia de brecha está relacionada diretamente à um espaço ocupado pelo escravo, dentro do sistema vigente, que lhe permitiu possibilidades outras de uma pontual autonomia, jamais constituindo-se em um mecanismo que tivesse desestabilizado o sistema escravista.

Flamarion assevera que conceber dessa forma permite compreendermos, ao fim e ao cabo a origem e a história do campesinato brasileiro, em seu sentido ampliado, sendo que a perspectiva de Gorender sobre a temática acaba por provocar a negação de todos os exemplos conhecidos e da importância das atividades autônomas dos escravizados, o que decorre, em parte, à ideia de que para além da produção de seus próprios alimentos, também tinham a possibilidade de comercializarem alguns excedentes sendo capazes de angariar recursos para a compra de suas alforrias, o que já encontramos evidencia de ter ocorrido como evidenciam as pesquisas de Maria Yedda Leite Linhares e Eduardo Silva18.

Feitas essas considerações de cunho histórico, salientamos que existe um conjunto expressivo de estudos que tratam da temática do campesinato negro, entre os quais se destaca a pesquisadora Maria do Carmo Brazil, da UFGD em Mato Grosso do Sul, trabalhos esses feitos por historiadores no sentido de identificar uma articulação entre os fenômenos do “quilombo”, “remanescente de quilombo” e “comunidade negra rural” (2006, s/p).

17 Destacamos que a obra referida é um importante paradigma para estudos que trabalham com a

temática da escravização e seus desdobramentos raciais. Citamos as referencias do estudioso da temática, prof. Dr. Mario Maestri, da UPF para quem essa obra representa efetivamente uma “revolução copernicana” nas abordagens dessa natureza.

18 Refere-se o autor ao artigo “A função ideológica da “brecha camponesa”, in Anais da IV Reunião da

Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica; ao livro “Barões e escravidão”, publicado pela Nova Fronteira, em 1984, e à matéria publicada no Jornal do Brasil (1985) intitulada: “Entre Zumbi e Pai- João, o escravo que negocia”. Acrescentamos o livro escrito em parceria com João José Reis, com o título “Negociação e Conflito”, uma obra de referência que trata, entre outras questões, da brecha camponesa como elemento importante nos processos de negociação no interior da ordem escravista. A referida obra encontra-se na bibliografia ao final desta tese.

Para ela, a história dos afro-brasileiros no período colonial é uma história marcada por entraves absolutos à autonomia do trabalhador escravizado daí resultando a tese de que o predomínio da monocultura restringia a economia do escravizado à frágil condição de subsistência, aqui utilizada no seu sentido objetivo, de tal sorte a conceber o campesinato como uma categoria que só se operacionaliza com a chegada dos trabalhadores livres estrangeiros no Brasil, pós 1824, deslegitimando dessa forma as análises que tratam dos impactos dos dispositivos da Lei de Terras de 1850, no que tange a exclusão da população negra do acesso a terra que permanece sob o monopólio da elite proprietária.

Tanto a população negra quanto pequenos produtores, caboclos, posseiros, intrusos foram impedidos de acessar às terras, e, por conseguinte, aos meios de produção independente. “[...] até agregados que ocupavam precariamente alguns espaços nos grandes latifúndios [que] foram gradativamente expulsos da terra graças ao avanço da produção mercantil”. (BRAZIL, 2006, s/p) Estudo importante sobre esse cenário no Rio Grande do Sul, ainda que não tenha na população negra seu foco de análise é a dissertação de mestrado de Luís Augusto Farinatti.19

Os autores que se filiam a tradição historiográfica que sustenta efetivamente a existência deste protocampesinato negro disponibilizam elementos que viabilizam a compreensão da idéia contemporânea de quilombos, tradição que nos dias de hoje vem ganhando relevo, - conforme atesta os dados estatísticos da Fundação Cultural Palmares e do INCRA.

Nesse sentido cabe salientar que, como não poderia deixar de ser, essas análises e contrapontos marcam os recentes estudos sobre história agrária brasileira, onde grupos desde sempre invisibilizados passam a ser tratados como protagonistas de importantes processos, sustentando inclusive que camponeses negros livres desenvolveram suas experiências camponesas, adquiridas ainda quando se encontravam em cativeiro, não sendo incomum no caso brasileiro, trabalhadores escravizados que tenham recebido em forma de doação por parte dos

19 Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul

senhores, parcelas de terras Na maioria dos casos estudados por Guimarães estas terras:

[...] permaneceram em comum, por algum tempo, sendo a sua produção realizada mediante a associação dos condôminos, que além de cultivarem suas porções de terras complementavam a renda alugando sua força de trabalho aos vizinhos mais abastados. (GUIMARÃES, 2011, p.39)

Para além das lutas pela permanência nas terras, as análises de Guimarães revelam as práticas de uso e ocupação de terras por parte de escravos e ex- escravos na referida região. Proprietários de pequenas áreas de terras, com parcos recursos, plantavam suas roças provavelmente conforme suas próprias experiências no cativeiro, ou seja, nos dias de folga, nas horas destinadas ao repouso. Isto se dava, tendo em vista a necessidade de complementação da renda familiar, o que os obrigavam a buscar o trabalho nas fazendas vizinhas, como: “[...] assalariados, posseiros ou meeiros”. (GUIMARÃES, 2011, p.39)

Outras formas de complementação da renda, percebidas pela autora, era a extração de madeiras e a caça. Observa a autora, que a ocupação de terras por parte dos escravos e ex-escravos, naquela região, não se verificou em função da retração das forças capitalistas, da desagregação das plantations ou fora dos seus limites, mas sim, conviveu ao lado das grandes lavouras de café e no período marcado por sua expansão, da mesma forma podemos identificar no sul do Brasil com atividade pecuária.

Não obstante, com relação às terras ocupadas por eles, diferentes destinos foram constatados por Guimarães dependendo do contexto em que se localizavam, ou seja, do valor e das possibilidades de valorização. Assim, na medida em que a herança se constituía em muitas terras e cativos, ou de outra forma quando encampavam expressivas extensões de terras em matas ainda não exploradas, o conflito e a disputa pelo domínio de tais áreas foram imediatos.

Para a autora, quando:

As terras herdadas, embora em uma região economicamente dinâmica, estavam em área sem valor de mercado, os libertos se mantiveram na mesma até que estas sofreram valorização. Nas regiões de grande lavoura, onde há também registros de doações de terras para libertos, a exemplo dos casos em estudo, ainda no período escravista, as terras dos libertos acabaram devoradas pelos interesses econômicos dos seus vizinhos ricos e influentes. (GUIMARÃES, 2011, p.40)

Os apontamentos de Guimarães viabilizam certo grau de generalização em relação ao desenvolvimento de nossa tese, pois aponta a situação de agrupamentos sociais que se fixaram em locais de difícil acesso foram mantidas relativamente isoladas e protegidas da especulação imobiliária, cenário esse que vem se modificando. Cabe destacar que assim como em nosso estudo, a comunidade manteve-se, primordialmente tomando por base a produção comunitária articulada por laços de parentescos entre os membros da comunidade, contexto esse que vem sendo reorientado, que será objeto de análises mais detalhadas.

Por intermédio das reflexões históricas e sociológicas de autores presentes neste capítulo foi possível identificar a existência da categoria campesinato negro, sendo esta derivada em seus primórdios de um campesinato escravizado onde os africanos feitorizados ocuparam pequenas áreas de terra no interior da propriedade de seus senhores.

Com relação à categoria em análise, tratamos de diferenciação de modos específicos presentes nas relações de produção centrada no núcleo familiar tendo como base social uma estrutura comunitária referendada nas relações de reciprocidade, aliada a grupos camponeses a partir dos referenciais fornecidos pela premissa étnica, constituindo assim o que se pode denominar de campesinato negro, com todas as características que a define, cuja única diferença em relação a outros camponeses, constitui-se na formação étnica afro-brasileira de seus componentes, característica essa relativamente nova e instrumentalizada por diferentes grupos no interior da comunidade.

Assim, o conceito de comunidade negra rural foi utilizado para caracterizar grupos sociais formados por negros, a partir do uso comunitário das terras, em princípios de igualdade e reciprocidade, afiliação por critérios de cor, bem como por laços de parentesco, constituindo-se desta maneira uma identidade específica afro- brasileira.

Segundo nossas análises, esta identidade singular era, e ainda é, utilizada em oposição a outros grupos caracterizados por diferentes e/ou semelhantes práticas econômicas constituindo, no entanto, territorialidades distintas, prioritariamente em razão da área em estudo ser lindeira de reservas indígenas e áreas de assentamento da reforma agrária, como veremos na sequência.

A comunidade objeto de estudo caracteriza-se por grupos que se identificam com relação às formas de produção e uso da terra, mas que se consideram diferentes quanto ao fator étnico. Como dissemos anteriormente: camponeses no seu sentido genérico, e camponeses negros em sentido estrito. De fato, a diferenciação básica aqui referendada se relaciona diretamente à dualidade brancos/negros, a partir das premissas do racismo e do preconceito, constituídas no longo período marcado pelo fenômeno da escravidão racial da era moderna.

2.5 CARTOGRAFIA

A compreensão adequada sobre a atividade cartográfica que foi desenvolvida com a comunidade negra do Distrito do Vão Grande em Barra do Bugres-MT, é de suma importância para a investigação que estamos desenvolvendo, sendo essa a principal ferramenta para compreender a comunidade negra em processo de assunção quilombola, bem como potencializar sua pertença quilombola, fortalecendo, em um processo simbólico, a própria existência da comunidade como tal. Nesse sentido organizamos esse capítulo em três seções, a saber: Da Cartografia a Cartografia Geográfica Crítica; Cartografia Social; auto-cartografando o Vão Grande