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2 METODOLOGIA: HISTÓRIA ORAL

2.6 O CAMPO

Minha imersão em campo durante o período de um ano foi elemento central desta investigação. Um tempo de escuta e conexão profundas em que colhi entrevistas, visitei vilarejos, assentamentos, cidades e kibutzim45. Compartilhei das dores e do pão. Participei de

celebrações e marchas e visitei enlutados. Contribuí com a colheita de azeitonas e saboreei os frutos maduros à sombra da figueira. Não foram poucas as vezes em que voltei para casa com um litro de azeite novo em garrafa de refrigerante e um pacote de zatar46 caseiro colhido nas montanhas e seco ao sol. Ocupei a cama de filhos ausentes servindo o exército e do quarto blindado colado à cerca que separa mundos. Retornei a fim de compartilhar o que vi, o que experenciei e, acima de tudo, o que escutei que vai no coração daquelas que me receberam.

O registro de testemunhos a respeito de experiências emocionais de mães vivendo em meio ao conflito israelense-palestino será tema focal de minha análise, permeado por minhas impressões e observações a respeito do ambiente, das relações e de meu próprio processo interno. Inicialmente, a coleta dos depoimentos foi prevista para ser realizada em três atos. No primeiro, planejei entrevistar igual número de mães originárias de cada um dos dois grupos em questão. Apesar da assimetria de forças israelense e palestina, onde o primeiro é um Estado constituído e o segundo uma aspiração a libertação nacional, me parecia apropriado que guardasse um equilíbrio numérico em minha amostragem, princípio que mantive até o fim. O segundo estágio seria cruzado, quando pretendia observar a reação das entrevistadas frente a um vídeo ou gravação de voz, resultante do registro do depoimento daquela que lhe significasse o "outro lado do conflito". E, finalmente, em um terceiro momento, organizaria um encontro presencial com o grupo todo.

45 Plural de kibutz, fazenda comunitária.

O modelo parecia muito instigante, mas, quando aplicado à realidade, não funcionou. Não contava com atrasos decorrentes da situação de conflito, refletindo a instabilidade da região. Esta, entranhada na vida diária, onde fatos com frequência ramificam-se em um sem número de consequências, tornou a mudança de planos uma constante à qual tive que me adaptar. A certa altura decidi, mesmo sem ter completo o rol de testemunhos da primeira etapa, arriscar dois cruzamentos. A primeira depoente reproduziu o texto da entrevista da fase anterior, sem demonstrar qualquer comoção frente à figura que lhe falava em vídeo, e a segunda cancelou nosso encontro. Tais exemplos me sugeriam que um excesso de situações de entrevista formal corria o risco da fadiga, sem trazer algum resultado prático. A terceira fase ainda me faz sonhar, mas não julguei justo criar expectativas de uma continuidade, sem que eu pudesse honrá-la, uma vez que deveria retornar ao Brasil no final do período de coleta de dados. À época, consultei o Professor Daniel Bar-Tal que me orientava em campo, e concluímos que melhor seria se me dedicasse exclusivamente à primeira etapa.

O desafio, porém, ainda era considerável. Minha identidade e meus valores aparentemente traziam algo de determinante à possibilidade de conexão ou a recusa de contato, sendo que aquilo que se processava entre uma e outra habita a esfera da complexidade das relações humanas. Para muitas palestinas, minha origem judaica e o fato de residir do lado israelense já sugeriam de antemão um estereótipo que me aprisionava e ao qual deveriam resistir. Para várias israelenses, meu encontro com palestinas supostamente nos colocava em polos políticos antagônicos, gerando desconfiança. Ultrapassar estas barreiras e me colocar verdadeiramente em posição de escuta plena foram questões medulares, que serão melhor desenvolvidas mais adiante.

Os anos prévios de ativismo, por outro lado, foram essenciais em me prover uma extensa relação de contatos. Através deles, pude iniciar os trabalhos e ampliar minha rede. Nos casos em que uma entrevistada em potencial já fazia parte de meu círculo ou me era diretamente apresentada, fazia um primeiro contato por telefone, e-mail ou pelas redes sociais, e nosso encontro não tardava a acontecer, dependendo apenas de um acerto de agendas. Outras vezes, implicava em uma ou duas reuniões prévias em algum café a fim de que nos fizéssemos mais confortáveis para uma conversa que traria à tona a intimidade de dores profundas. No entanto, quando um ou dois intermediários nos separavam, nem sempre este encontro se concretizava, apesar dos esforços daqueles que se dispunham a ajudar. Sem ter acesso à construção dos delicados fios de confiança, não foram poucas as vezes em que tive que aceitar a negativa a meu convite sem a possibilidade de qualquer movimento. Em outros casos, quando tivemos ocasião de alguma aproximação, novas oportunidades se abriram, e aquelas que se mostravam

relutantes a princípio, aceitaram participar do projeto. Nestes casos, entretanto, limitava-me a esclarecer os propósitos da pesquisa, sem, em momento algum, exercer qualquer pressão ou tentativa de convencimento.

Conduzi entrevistas em profundidade com onze mães israelenses e o mesmo número de palestinas em idades que variavam de 24 a 85 anos, com uma concentração maior entre os 45 e 50, a respeito de sua história de vida, autopercepção e imagem daquele que lhes era tido como o inimigo47. As palestinas eram todas muçulmanas e provenientes de Jerusalém Oriental/al- Quds, cidades e vilarejos da Cisjordânia, e em um caso, de Gaza48, enquanto as israelenses, todas judias, vinham de cidades de diversos portes de norte a sul do país e um kibutz, além de assentamentos na Cisjordânia. Todas as entrevistadas provinham de classe média com pouca ou nenhuma variação de status social entre si.

Em depoimentos semiestruturados, segui um roteiro básico que me auxiliava, acolhendo, porém, a espontaneidade nas situações em que isto me pareceu pertinente. As sessões foram em sua maioria individuais, sendo que duas foram realizadas em pequenos círculos familiares e, no caso específico do Conselho de Mulheres de Jub ad-Dib, a entrevista foi grupal. Os encontros duraram de 40 minutos a duas horas, e as entrevistas foram realizadas em sua maioria em inglês, tendo contado, quando necessário, com o auxílio de uma tradutora. Em quatro situações, entretanto, duas com palestinas e duas com israelenses, o idioma utilizado foi o português. Uma entrevista extra foi realizada com a ativista Yvonne Deutsch a respeito de iniciativas feministas israelenses que incluem em sua agenda a pauta antiocupação, cujo teor me auxiliou na construção dos capítulos sobre feminismos e contextualização histórica. Outros dois depoimentos de israelenses foram descartados a fim de que se mantivesse o equilíbrio numérico. Salvo pouquíssimas exceções por questões de ordem prática, os encontros aconteceram na casa das entrevistadas, com a intenção de fazê-las sentir à vontade e em segurança, e durante os depoimentos solicitava que os homens da casa se ausentassem da sala, o que não foi possível em um caso, sendo sua interferência também elemento de avaliação. A entrevistada de Gaza foi ouvida ao telefone devido à impossibilidade de encontro presencial, uma vez que eu, cidadã israelense, não tinha permissão para visitar este território, e sua entrada em Israel é bastante dificultada. A fim de transitar legalmente, segundo a lei israelense, por

47 Segundo a classificação proposta por Slim et al (1998), trabalhei com um misto de entrevista do tipo "História

de Vida" e "Depoimento Temático".

48 O foco deste trabalho está nos dois grupos sociais majoritários que representam o conflito israelense-palestino

de uma forma mais ampla: judias israelenses e palestinas muçulmanas que vivem sob cerco em Gaza, e ocupação na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Nem as palestinas que vivem em território israelense, tampouco as cristãs dos Territórios Ocupados foram estudadas.

áreas da Cisjordânia sob controle palestino49, providenciei autorização junto ao exército cada vez que necessário. Uma última entrevista com Cali ainda foi realizada por skype, quando eu já retornara ao Brasil, devido à potência de sua experiência, que prometia somar enormemente ao corpo do trabalho.

Todos as sessões foram registradas em áudio e, apenas uma parte, em vídeo, respeitando a disposição de cada depoente. As gravações foram todas transcritas para posterior análise. Identificarei as entrevistadas somente pelo primeiro nome ou por sua inicial, quando assim solicitado. No caso de duplicidade, utilizarei a inicial do sobrenome para fazer a diferenciação. Finalmente, busquei combinar nesta amostragem a maior diversidade social possível a fim de matizar ao máximo meu registro, consciente, ainda assim, da impossibilidade de preenchimento de todos os hiatos. Mais adiante, tratarei das vozes como também dos silêncios, e do que escutei entre um e outro.