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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.6 Campo nas cantigas de amigo

Da mesma forma como nas cantigas de amor, o exame dos processos da transitividade nas cantigas de amigo também permite (1) reconhecer regularidades nas posições de participantes da donzela (eu-lírico), trovador, mãe e Deus; (2) perceber o posicionamento cortês de precador; e (3) através das duas análises transversais anteriores, pudemos listar estágios obrigatórios e opcionais do gênero.

O cenário construído nas cantigas de amigo revela um ambiente menos dramático e infeliz que o outro gênero lírico, todavia, cresce a tensão entre os participantes principais (donzela e trovador) e percebemos nitidamente que há certa frouxidão das amarras da cortesia nos cantares de amigo, pois:

1) têm caráter dialogado;

2) os participantes estão claramente no nível da ‘expectativa da ação’, ou seja, o prévio envolvimento amoroso entre donzela e trovador foi interrompido por algum motivo no passado e a donzela coloca-se na posição de cobrar atitudes do namorado, usualmente, seu regresso;

3) Deus deixa de ser a fuga do eu-lírico, aquele para quem se lamentar. Os intermediários nessa relação são a amiga (confidente) e a mãe. Nesse nível, vemos a mãe agindo contra e a amiga a favor dos namorados.

A figura de precador nas cantigas de amigo está presente tanto na voz da donzela (eu-lírico) quanto na voz do trovador (o namorado) – os tipos de processo mais recorrentes marcam a distinção entre cantigas de amor e de amigo. A primeira distinção entre os gêneros está na quase eqüidade de processos mentais, materiais e relacionais nas cantigas de amigo, respectivamente, 27,97%, 23,68% e 23,07%. Nas cantigas de amor a quantidade de processos mentais era bem mais acentuada (35,41%), portanto, nas cantigas de amigo, apesar da ligeira superioridade dos mentais, o eu-lírico (donzela) e o trovador não estão muito no campo experiencial de ‘sentir’ e ‘pensar’. Com a aproximação dos amantes, o contexto para a ação (processos materiais) ganha espaço. Já o papel de Experienciador é ocupado pela donzela na maioria das orações, mas não é quase exclusivo como nas cantigas de amor (com o trovador), fato esse que traz um tom mais democrático ao gênero, reflexo das relações de cortesia (c.f. princípio da

Logogênese; Thompson, 2004). Além disso, ocorre o clichê da imagem de ‘ver’ ou ‘ter visto’ o namorado (perceptivos), o sentimento penoso causado pela distância (emotivos) e o mútuo ‘querer’ estar perto (desiderativos). Afinal, o grande contraste entre os gêneros líricos, no que concernem os processos mentais, é: (1) uma considerável diminuição de ocorrências nas cantigas de amigo; (2) a relativa democratização do papel de Experienciador nos cantares de amigo, o que acarreta a diminuição da dramaticidade e negatividade das cantigas, haja vista que o foco das atenções não é somente um dos participantes, nem tanto o contexto para tal é tão desolador como é nos cantares de amor.

Os processos materiais, por sua vez, seguem os processos mentais no sentido de diminuir a negatividade e dramaticidade nas cantigas de amigo. As situações positivas para o trovador se equilibram com as situações negativas e, paralelamente, a donzela não é tão suprema na posição de Ator e o trovador não é mais constantemente Beneficiário ou Meta (recebendo o ‘fazer mal’ dela). No mais, o trovador precador tem maior liberdade para ‘fazer’, comprovando um outro nível nas relações de cortesia.

Os relacionais ratificam o que vem sido comprovado até aqui: as cantigas de amor e amigo são gêneros completamente distintos, refletindo diferentes posicionamentos líricos, inspirados em posicionamentos sócio-culturais, os quais se refletem nas escolhas léxico-gramaticais realizadas nas cantigas. Nas cantigas de amigo os processos relacionais diminuem a atmosfera negativa presente nas cantigas de amor, isto graças ao nivelamento de estados positivos e negativos presentes tanto para o trovador, quanto para a donzela. Aliás, a presença da donzela como Portador/Identificado é uma característica marcante das cantigas de amigo, já que esse quadro, nas cantigas de amor, é quase inexistente – nestas o trovador (eu-lírico) é quem sempre ‘está’ mal, ‘tem’ o mal ou ‘é’ mal agourado.

Os outros 25,24% de processos nas cantigas de amigo são variantes de, respectivamente, processos verbais (14,59%), existenciais (7,69%) e comportamentais (2,97%). O único contraste considerável entre os gêneros a respeito destes três processos é a quantidade de processos verbais nas cantigas de amigo que quase dobram as ocorrências nas cantigas de amor (8,29%). Como dissemos anteriormente, além do caráter dialogado, isso deve-se ao fato do trovador, nas cantigas de amigo, surgir repetidamente como aquele que manda ou mandou recado/mandado para a sua namorada, ou seja, fez-lhe promessa ou

talvez falsa promessa de voltar – o que, sob a perspectiva da cortesia, comprova um estreitamento de relações, ou seja, ratifica um posicionamento cortês diferente: o precador.

Nossa pesquisa foi também surpreendente no sentido de apresentar, com base em todas as análises transversais que fizemos, certas regularidades das cantigas, as quais, do ponto de vista da Lingüística, são entendidas como subestruturas (passos e movimentos) que constroem a estrutura maior do Gênero. Assim, a partir do levantamento dos processos nas cantigas de amigo e da observação do princípio da Ressonância (Thompson, 1998), reconhecemos estágios obrigatórios e opcionais nesses cantares.

Dissemos outrora que o gênero amigo apresenta ramificações (subgêneros) com características completamente distintas, entretanto, com base em nossos dados, somos capazes de dizer que todas trazem duas condições essenciais: (I) a namorada é/foi partidária da situação do amigo; (2) o trovador como precador, já tem a ‘permissão’ de ser sofredor, da mesma forma que a donzela. Portanto, temos como estágios obrigatórios nas cantigas de amigo:

1 – a distância entre os namorados, malquista por ambos, ou ao menos um deles;

2 – o rogo ou desejo da volta do namorado ou ainda o lamento pela ausência e a alegria devido ao iminente retorno (dele).

A variedade de subgêneros traz uma variedade de estágios opcionais. Em nosso corpus destacam-se os estágios opcionais vinculados aos participantes opcionais: mãe e amiga (confidente) da donzela. Esses estágios são: (I) a mãe agindo contra os namorados e (II) a amiga (confidente) trazendo recado do namorado e/ou aconselhando a amiga no sentido da união de ambos.